Muito se tem falado do deserto do Sinai, por estes dias. Zona de alto risco em matéria de segurança, atravessá-lo passou a ser uma aventura insensata e, ao que a imprensa reporta, já quase impossível para viaturas civis. Mas não era assim, até há pouco tempo. A história que aqui conto, tem já uns bons anos.
O assassinato do primeiro-ministro israelita, Itzak Rabin, havia interrompido subitamente a visita oficial que o então presidente português, Mário Soares, fazia a Gaza, que se sucedia a uma estada em Israel. Nessa manhã de 6 de novembro de 1995, saíramos da Faixa de Gaza para o Egito, pela "pesada" fronteira de Rafah, onde Israel mantinha então um controlo, politicamente muito sensível para os palestinianos. Um avião posto à disposição pelo governo egípcio iria buscar-nos à cidade de El-Arish, umas dezenas de quilómetros adiante, onde era suposto almoçarmos, num hotel de praia sobre o Mediterrânico. Mário Soares, insistiu em tomar um banho e alguns o acompanhámos. Ainda hoje guardo umas belas fotos do Rui Ochoa, com Mário Soares, Alfredo Duarte Costa e eu, vestidos com uns longos calções emprestados.
O assassinato do primeiro-ministro israelita, Itzak Rabin, havia interrompido subitamente a visita oficial que o então presidente português, Mário Soares, fazia a Gaza, que se sucedia a uma estada em Israel. Nessa manhã de 6 de novembro de 1995, saíramos da Faixa de Gaza para o Egito, pela "pesada" fronteira de Rafah, onde Israel mantinha então um controlo, politicamente muito sensível para os palestinianos. Um avião posto à disposição pelo governo egípcio iria buscar-nos à cidade de El-Arish, umas dezenas de quilómetros adiante, onde era suposto almoçarmos, num hotel de praia sobre o Mediterrânico. Mário Soares, insistiu em tomar um banho e alguns o acompanhámos. Ainda hoje guardo umas belas fotos do Rui Ochoa, com Mário Soares, Alfredo Duarte Costa e eu, vestidos com uns longos calções emprestados.
À época, era nosso embaixador no Cairo, Eduardo Nunes de Carvalho, uma simpática figura da nossa "carreira", onde é crismado pelos amigos com o "nickname" de "Iá", pessoa por quem tenho uma grande estima. É um homem de sorriso permanente, de uma agudeza fina de espírito, muito culto e educado, uma das boas "cabeças" que serviu a nossa diplomacia. Tinha, porém, como todo o ministério sempre soube, uma relação algo desligada com as coisas e, em especial, com o tempo, com distrações e atrasos que se tornaram lendários. Nessa manhã, tinha vindo ter conosco, de carro, do Cairo, depois de uma jornada de várias horas, através do Sinai. E chegou a tempo do almoço, depois do nosso banho.
Na nossa viagem de avião para a capital egípcia, o embaixador acompanhou-nos, naturalmente. O seu carro, com o motorista, regressaria pelo mesmo caminho, atravessando o deserto do Sinai. Chegámos ao Cairo a meio da tarde. Mário Soares, a senhora e o ajudante de campo foram para uma "guest house", posta à sua disposição pelo presidente egípcio. O resto da delegação, de que faziam parte deputados e algumas figuras da vida pública portuguesa, foi instalar-se num hotel. Depois de acomodar o presidente, o embaixador juntou-se-nos e por ali foi ficando, à conversa.
A certo ponto, vi que Nunes de Carvalho era chamado a um telefone, na esplanada onde estávamos. Era Mário Soares. Estaria "farto" do isolamento da "guest house" e queria juntar-se-nos, para jantar. Sugeria ir ter conosco ao hotel e que, ainda antes do jantar, todo o grupo português fosse conhecer a residência oficial, situada umas centenas de metros adiante, um andar bem simpático, com uma varanda sobre o Nilo, na ilha de Zamalek.
Notei que o embaixador começou a titubear na conversa, resistindo à ideia, dizendo que já não havia muito tempo, explicando que tinha a sua mulher fora do Cairo, para além de outros pretextos de ocasião, que me pareceram pouco convincentes. Ora a sua casa era a residência oficial do Estado e nada mais natural seria que acolher, ainda que para uma simples bebida antes do jantar, o chefe do Estado e os seus convidados. A minha estranheza era tanto maior quanto Nunes de Carvalho era um "homem com mundo", que gostava de receber e recebia bem, como eu próprio tivera oportunidade de testemunhar noutros lugares.
Notei que o embaixador começou a titubear na conversa, resistindo à ideia, dizendo que já não havia muito tempo, explicando que tinha a sua mulher fora do Cairo, para além de outros pretextos de ocasião, que me pareceram pouco convincentes. Ora a sua casa era a residência oficial do Estado e nada mais natural seria que acolher, ainda que para uma simples bebida antes do jantar, o chefe do Estado e os seus convidados. A minha estranheza era tanto maior quanto Nunes de Carvalho era um "homem com mundo", que gostava de receber e recebia bem, como eu próprio tivera oportunidade de testemunhar noutros lugares.
A conversa entre o embaixador e o presidente, com o último a fazer aquilo que eu presumia ser uma contínua pressão para a aceitação da ideia que tivera, foi-se prolongando, com Nunes de Carvalho, entre risadas nervosas e frases incompletas, tentando dissuadir Mário Soares. Até que, finalmente, o ouvi retorquir: "Ó senhor presidente! É que temos um problema, que nos impede, em absoluto, de ir lá a casa". Fiquei curioso. E, depois de mais uma gargalhada, sempre muito mais de nervos do que de graça, gaguejando de embaraço, esclareceu: "É que eu - desculpe ter de dizer-lhe! - deixei as chaves de casa no meu carro, que está a atravessar o deserto do Sinai, e que só chega daqui a umas horas..."
A verdade é que o embaixador, não sonhando com a hipótese da sua residência ter de ser "mobilizada" na ocasião, e na ausência da sua família, havia dispensado o pessoal. Sendo já tarde e, para mais, estando sem motorista, num tempo em que pouca gente tinha telemóvel, seria impossível andar à procura, pelo dédalo do Cairo, das segundas chaves da casa. E lá jantámos nós, com o nosso embaixador como convidado, no antigo Gezirah Palace, hoje um Marriott, construído para a inauguração do canal do Suez, em 1869, um evento que, à época, foi testemunhado localmente por um viajante português que muita graça achava aos episódios da diplomacia que serviu - José Maria Eça de Queiroz.
A verdade é que o embaixador, não sonhando com a hipótese da sua residência ter de ser "mobilizada" na ocasião, e na ausência da sua família, havia dispensado o pessoal. Sendo já tarde e, para mais, estando sem motorista, num tempo em que pouca gente tinha telemóvel, seria impossível andar à procura, pelo dédalo do Cairo, das segundas chaves da casa. E lá jantámos nós, com o nosso embaixador como convidado, no antigo Gezirah Palace, hoje um Marriott, construído para a inauguração do canal do Suez, em 1869, um evento que, à época, foi testemunhado localmente por um viajante português que muita graça achava aos episódios da diplomacia que serviu - José Maria Eça de Queiroz.
7 comentários:
Mau "sinai" quando o acesso a uma residência oficial / embaixada está dependente de um único par de chaves (talvez houvesse outro mas estava em passeio).
Pessoal doméstico, nada.
Uma representação diplomática com pinta de mera marcação de presença, mas que não deixou de merecer uma visita (involuntária?) do nosso papa-léguas...
A história é engraçada mas, sinceramente, não sei se seria de ser contada...
Oh, coitado do Senhor que aflição.
Conheço bem o Iá Nunes de Carvalho e estou a imaginar a cena toda. Relato fantástico Senhor Embaixador, mais um. Espero um dia ver estas histórias todas coligidas num livro que serei dos primeiros a comprar
não percebo bem porque não esclareceu imediatamente o problema.
Atravessar o sinai deve ser bem bonito, montanhas, deserto, biblia, moisés, tabua dos 10 mandamentos, o mar vermelho que se abre e deixa passar os bons e afoga os maus, a cor amarela, a secura, o castanho, as noites estreladas, o calor, os carros a aquecer, os camelos de vez em quando, isto em tempos supostamente de paz ou historicos.
"Sinais" dos tempos... Se o PM fosse o Sócrates era o joging (zito) no dédalo do Cairo. Assim, com o MS, foi o banhito nas águas quentinhas, como ele gosta... tipo Maotsétung... Ha, grandes chefes!...
Ainda não "havia" défice... Agora é só manta rota...
Senhor embaixador.
Gostei de ver comop tudo saiu bem!
Diplomacia é isto tambem.
com amizade Monica
Conhecia a história.Sei tb q a residência do Embaixador no Cairo não tinha o nível desejável para uma representação do país, razão pela qual o referido Embaixador se sentia algo constrangido e já estava a tratar da transferência para um local adequado. Acabou por o conseguir, embora tivesse servido fundamentalmente os seus sucessores (e a imagem do país).Sei tb q, apesar da situação relatada, a viagem presidencial correu muito bem, o Presidente ficou muito agradado e o referido Embaixador recebeu condecoração tradicional.
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