quarta-feira, junho 12, 2024

As vinte e sete Europas


Comecemos pelo que parece mais evidente: salvo a decisão de Emmanuel Macron de dissolver o parlamento francês, com consequências que o tempo se encarregará de esclarecer o sentido, as votações para o Parlamento Europeu não trouxeram consigo fortes surpresas. 

A extrema-direita e os seus aparentados subiram, como era expectável, mas, como também já se previa, essa subida não chegou a números que ameacem reverter ou fazer perigar o equilíbrio tradicional das famílias políticas no seio da União Europeia. 

Há muitos anos, um célebre jornalista francês escreveu o livro “As Vinte Américas Latinas”, onde escrutinava as diferenças nacionais que caraterizavam uma realidade sub-continental que, vista à distância, muitos teimavam em tomar como uma unidade. Ao observar os resultados destas eleições, no conjunto dos países daquilo que se designa como União Europeia, apetece-me falar nas “Vinte e Sete Europas”. É que as agendas de interesses e de preocupações que mobilizaram os eleitorados de cada país, podendo ter algumas similitudes entre si, acabam por ser diversas nos equilíbrios nacionais que espelham. 

A geopolítica, a prosperidade relativa e a composição humana de cada Estado, com consequências na expressão partidária das vontades nacionais, desenham esse ser mutante que é a União Europeia. Até o modo como os resultados desta eleição se refletem na política interna de cada Estado, em alguns provocando convulsões (como em França ou na Bélgica), em outros não gerando consequências (como em Portugal), sublinha essa forte diversidade. 

A Europa é um “puzzle” estranho, em que as peças se vão subdividindo, tornando cada vez mais difícil a tarefa de o completar. Não vale a pena ter ilusões: por muito que fatores comuns possam conjunturalmente servir de cimento (foi o Covid, está a ser a Ucrânia), há “Europas” diversas em muitas e decisivas áreas (Direitos Humanos, respeito pelo Estado de Direito, políticas identitárias, migrações, refugiados, política de segurança e defesa, transição energética, posição face a alargamentos futuros). A hierarquia das angústias coletivas diverge de país para país e nada indica que caminhe no sentido de uma harmonização, de molde a poder criar uma sólida agenda comum de respostas, crescentemente consensual. Bem pelo contrário. 

Estas eleições foram disputadas sob o pano de fundo de o seu resultado poder vir a ser decisivo para a condução geral da política europeia. Lamento muito, mas isso é um “trompe l’oeil”. Quem dirige a União Europeia é o Conselho Europeu, constituído pelos governos nacionais. O Parlamento Europeu, que foi a votos, tem poderes muito limitados, para além da sua agenda “vocal”. Salvo na ratificação do nome do presidente da Comissão, o parlamento continua a ser um órgão secundário no quadro institucional da União. Acresce que um maior equilíbrio entre as forças políticas que se sentam no hemiciclo acabará, muito possivelmente, por redundar numa maior dificuldade em aí gerar consensos futuros. E isso funcionará em detrimento da força da instituição. 

O Parlamento Europeu não pode ser dissolvido, o que lhe induz uma espécie de irresponsabilidade política com uma valia quinquenal. A sua “accountability” só se fará em 2029, e apenas pela confirmação ou saída dos titulares agora eleitos. Pode assim dizer-se que a grande importância deste ato eleitoral foi ele ter servido como uma espécie de sondagem à popularidade interna dos respetivos governos nacionais. Alguns tiraram disso consequências, outros não foram obrigados a isso. 

Na Europa, contudo, não somos todos iguais. As decisões nacionais não têm um valor equivalente. A circunstância do presidente francês, na sequência deste sufrágio europeu, ter decidido convocar eleições legislativas, depois do seu partido ter obtido metade dos votos de uma força de extrema-direita, acaba por ser um facto com imenso relevo. O que dali resultar terá uma imensa relevância, não apenas para a França, mas para todos nós. Os tempos estão perigosos, mas a vida é mesmo assim.

(Artigo publicado de 11 de junho de 2024, a convite do "Jornal de Negócios")

8 comentários:

Luís Lavoura disse...

Quem dirige a União Europeia é o Conselho Europeu, constituído pelos governos nacionais. O Parlamento Europeu, que foi a votos, tem poderes muito limitados, para além da sua agenda “vocal”. Salvo na ratificação do nome do presidente da Comissão, o parlamento continua a ser um órgão secundário

Pois. Muito bem escrito.

O Parlamento Europeu não serve praticamente para nada, a não ser para aprovar votos (de pesar, de congratulação, de crítica, de recomendação) quase todos ridículos e inconsequentes.

Luís Lavoura disse...

Uma demonstração do pouco valor prático das eleições europeias é que os dois grandes derrotados delas - Macron em França e Scholz na Alemanha - estão agora a preparar, alegremente e como se nada se tivesse passado, quem serão os próximos presidentes da Comissão Europeia e do Conselho Europeu.

Anónimo disse...

Sim, o reduzido poder legislativo do Parlamento Europeu é o espelho de esta União Europeia, construção oblíqua cujas motivações, meritórias, são tão enviesadas quanto a natureza humana dos seus vários criadores e mentores.
Curiosamente esta União Europeia está a dever muito da sua novel União ao aguerrido Sr. Putin. Escrita escorreita em linhas tortas?. Agradecimentos?.

Carlos Antunes disse...

De acordo com o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (art.º 294.º) o processo legislativo ordinário da UE consiste na adopção conjunta, pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho de actos legislativos em geral, na sequência de uma proposta da Comissão Europeia.

Com a introdução do processo de co-decisão (Tratado de Maastricht) o Parlamento passou a ser co-legislador em pé de igualdade com o Conselho, excepto nos casos em que se apliquem os processos legislativos especiais.

O Tratado de Lisboa passou a designar o processo de co-decisão como processo legislativo ordinário e aumentou os domínios políticos aos quais este processo é aplicável, reforçando assim os poderes do Parlamento.

Ou seja, se o Parlamento Europeu e o Conselho não chegarem a acordo sobre um diploma legislativo, não haverá uma nova lei. No domínio legislativo, o seu poder é paralelo ao do Conselho.
Não me parece, por isso, que o Parlamento possa ser considerado um órgão secundário com poderes muito limitados.
Admito, no entanto, que posso estar errado!

balio disse...

Eu gostaria de saber quem é que decidiu aumentar as taxas alfandegárias sobre os automóveis elétricos produzidos na China, conforme ontem foi anunciado.
Não terá sido o Parlamento Europeu, uma vez que este ainda se encontra inoperacional. Quem foi, então?
Quem me souber esclarecer, agradeço.

Anónimo disse...

Os tempos estão perigosos? Hum, hum, porque será que os tempos estão perigosos? Isso não convém dizer. Mas nós sabemos porque é que os tempos "estão perigosos". Se não nos convém aceitar e dizer os porquês dos tempos estarem perigosos, é porque somos coniventes com as causas de os tempos estarem perigosos. Mais lhe digo: viva Marine Le Pen, ao menos essa já percebeu o principal motivo de os tempos estarem perigosos. Outros, enfim, continuam convenientemente e do meu ponto de vista cobardemente, a enfiar a cabeça na areia.
Cumprimentos
M. Prieto

Carlos Antunes disse...

Bailo
Foi a Comissão Europeia, à semelhança do que já tinham feito os EUA e a Turquia, que invocando que a indústria de veículos elétricos da China beneficia de subvenções estatais, prejudicando assim os construtores europeus, decidiu que as importações de veículos eléctricos chineses passarão a ser taxadas provisoriamente, as da BYD em 17,4%, da Geely em 20% e da SAIC em 38,1%.
Caso as conversações com as autoridades chinesas não consigam resolver a questão, essas taxas tornar-se-ão definitivas a partir de 4 de Julho próximo.
O mais natural é que a China, como retaliação, venha a aplicar taxas aduaneiras às Importações de alguns produtos da UE.
Cumprimentos

Luís Lavoura disse...

Carlos Antunes, obrigado pela resposta.
Portanto, a Comissão Europeia tem autoridade para, sem dar paleio aos chefes de Estado nem ao Parlamento Europeu, aumentar as taxas alfandegárias sobre os produtos que lhe apetecer? Alterando dessa forma os preços que os cidadãos têm que pagar pelos produtos que desejam?
É-me surpreendente que assim seja. Num Estado normal, os impostos e taxas, incluindo alfandegárias, são - suponho eu - objeto de decisão legislativa, e não discricionariedade de um qualquer órgão executivo.
Se é como o Carlos Antunes descreve, vemos bem o nível de democraticidade que reina por esta União Europeia.

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