Recordo-me que, quando Luís Castro Mendes iniciou as suas crónicas semanais no "Diário de Notícias", fiquei com alguma curiosidade em perceber o tom que ele iria escolher no fixar dessa sua nova aventura na escrita. Conhecia-lhe já a prosa, a sua limpidez, a riqueza vocabular, o fluir fácil e elegante do estilo, saído de alguém para quem a produção de textos constitui um óbvio ato de prazer. Logo ficou claro que, por opção própria, iam ser crónicas abertas, sem tema fixo, no pleno exercício da liberdade do autor, ao sabor dos estímulos da conjuntura e dos humores do dia. Enfim, no verdadeiro espírito das crónicas num jornal. Desde muito cedo, dei por mim a pensar: isto, daqui a uns tempos, pode vir a resultar num livro muito interessante. Não me enganei, ele aí está.
Diplomata por profissão e por vocação, o Luís manteve sempre uma segunda vida, que o acompanhou e que ele soube bem harmonizar com a primeira: a poesia. A regular produção poética, que já vinha da juventude, foi-o seguindo nas suas andanças pelo mundo, garantindo-lhe uma espécie de pouso de recuo lúdico que, para além de dever ser profundamente enriquecedor, é visivelmente fautora da sua realização pessoal. Digo isto porque nunca pressenti que o Luís fosse um poeta cuja pena se arrastasse por angústias e pela sofrida descoberta alambicada das palavras, tiradas estas a ferros, em horas penosas, olhando a folha branca. A sensação que tenho, até porque ele o confessa, é que o nosso autor adora cultivar a escrita poética e retira dela um prazer saudavelmente egoísta - e isto é dito no bom sentido -, antes de altruisticamente a fazer partilhar. E já lá vão muitos livros!
Por tudo isso, o Luís não necessitava de uma experiência na prosa para se realizar na escrita. Mas este seu tempo na crónica, ao que sei sem minimamente lhe ter atenuado a vocação poética essencial, abriu-lhe um espaço complementar de intervenção pública. Para quem o conhecia menos bem, estas crónicas vêm revelar algumas facetas interessantes da sua forma de olhar a vida. Para quem o conhece melhor, estes textos ajudam a perceber o modo como ele vai encarando o mundo que evolui à sua volta. E não deixam de ser uma revelação.
Habituado a uma infância e juventude itinerantes, por virtude da profissão do seu pai, o nosso autor veio também a escolher como destino uma atividade onde mudar de casa, de quando em vez, é uma das regras do jogo. Daí que as referências às viagens, às cidades, aos lugares, ao sentido saltitante de vida surjam, com frequência, em muitos dos seus textos. Se já na sua poesia isso era visível, as crónicas vieram a dar mais expressão a esse seu deslumbre pelos encontros com novas realidades, com contrastes e experiências. Dito isto, ao reler estas crónicas, constato que o Luís, embora sensível aos ambientes onde o percurso profissional o conduziu, preserva-se sempre bastante e opta por não "go native", fugindo ao tropismo dos que vivem a carreira diplomática deslumbrados com as cores da "National Geographic".
Uma das curiosidades que eu tinha, na observação do início destas crónicas, era perceber o modo como o Luís iria passar a trabalhar, nos textos, a sua faceta de cidadão politicamente empenhado. Uma passagem breve pelo governo havia culminado, em termos institucionais, uma vida em que o posicionamento ideológico, se bem que nunca escondido, esteve sensatamente atenuado, por muitos anos, por óbvio dever de ofício. As crónicas permitiram fazer vir ao de cima alguém que se confessa ser na razão um radical, embora no temperamento seja um moderado. A esquerda corre-lhe nas veias, uma constante indignação com as quebras na decência cívica é visível na rejeição de um certo mundo que vive nos antípodas daquilo que ele sente como desejável para o Portugal de Abril, que desde há muito o orienta e o faz combater a indiferença. Com elegância mas com firmeza, as crónicas de Luís Castro Mendes zurzem, quando oportuno, quem ele acha que merece ser zurzido. E acha bem, digo eu.
Dos textos, das citações e dos nomes, resulta uma saudável obsessão do autor em torno dos livros. Na vida do Luís, os livros, os livros lidos, estão um pouco por todo o lado: ocupam muitas horas e muitas estantes, fruto de uma desesperada e infrutífera tentativa, quase renascentista, de conseguir acompanhar o que de bom é publicado, aqui e lá fora, com a França bastante nesse horizonte. Devo dizer que, não estando próximo de muitas das suas opções temáticas, tenho uma infinita compreensão e solidariedade por esta angústia, que conheço bem, que arruina a bolsa mas ilumina os dias. Como fruto dessas suas experiências, o autor revela-se atento, cuidadoso e escrupuloso nas referências que partilha, dessa forma enriquecendo as crónicas e partilhando generosamente as suas leituras.
Acabado o livro, fico com a sensação de que Luís Castro Mendes se assume, por inteiro, nestes seus textos. Quero com isto dizer, por exemplo, que ele não hesita em carrear para as suas crónicas a alegria da vida familiar, gozada neste seu novo tempo. Aqui ou ali, pode não disfarçar alguma melancolia que o avançar do calendário lhe traz. Mas, do que deixa escrito, resulta o retrato claro de quem se sente de bem com o que a vida lhe trouxe, ou melhor, com aquilo que nela soube e pôde construir. As crónicas de Luís Castro Mendes espelham alguém que olha os dias que aí vêm, para todos nós, já sem algumas das ilusões geracionais, mas com notas permanentes de esperança e de otimismo. E delas transparece uma imensa e invejável felicidade no usufruto daquilo que o presente lhe proporciona.
(Texto do prefácio que fiz para "Tentação da Prosa", livro de crónicas de Luís Filipe Castro Mendes)
3 comentários:
Ler textos como este prefàcio é um salutar banho de cultura. Chegado ao fim, apetece pedir mais...
Pergunta sobre prosa, a pretexto do período que segue:
"A regular produção poética, que já vinha da juventude, foi-o seguindo nas suas andanças pelo mundo, garantindo-lhe uma espécie de pouso de recuo lúdico que, para além de dever ser profundamente enriquecedor, é visivelmente fautora da sua realização pessoal."
Há por ali um erro de concordância, certo?
Talvez discorde ...
MJ
Não faz sentido dizer coisas que já foram ditas e muito bem ditas.
Portanto faço minhas as palavras do Sr. Joaquim de Freitas.
Livro a comprar, sem dúvida, pelo que aqui está dito não tenho muitas dúvidas, nunca tenho dúvidas quando as pessoas escrevem sobre a vida que viveram e vivem, fujo das que escrevem sobre a vida que nunca viveram nem vivem e isso vê-se logo quando não se andou e anda por cá por ver andar os outros.
Infelizmente há cada vez menos das primeiras e cada vez mais das segundas nos escaparates das livrarias.
Enviar um comentário