Portador amigo trouxe-me um exemplar do magnífico livro recém-publicado sobre o Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, que a respetiva direção teve a gentileza de me oferecer. O antigo embaixador português no Brasil agradece muito a atenção.
Recordo, nesta ocasião, o que, há poucos meses, escrevi para o "Jornal de Letras ", a convite de José Carlos de Vasconcelos, um artigo a que dei o título "O Real Gabinete no tempo". Ele aqui fica:
"Quando a vida profissional me proporcionou alguns anos como embaixador no Brasil, levava comigo a curiosidade de tentar perceber um pouco melhor aquela que havia sido a mais histórica e duradoura aventura migratória portuguesa pelo mundo.
Já conhecia, embora muito ao de leve, aquele país onde iria representar Portugal, mas sabia, como todos fomos educados a saber, que essa experiência fora única e deixara uma marca singular, em todas as dimensões, desde logo na língua.
A França, a América, a África do Sul ou a Venezuela, com a África colonial pelo meio, haviam sido algumas das paragens de destino de muitos e muitos milhares de compatriotas saídos do retângulo europeu, o mais das vezes pela pior das razões: pela necessidade.
Mas o Brasil era manifestamente um caso diferente e, fazendo parte integrante dessa experiência ímpar, havia uma obra - cultural e assistencial - de que havia ficado uma muito interessante marca edificada, em várias cidades do país. É que a comunidade portuguesa no Brasil, desde tempos idos, tinha cuidado em criar uma rede de acolhimento e acompanhamento das sucessivas levas dos portugueses que ali aportavam, que acabava por funcionar como uma imagem de prestígio para a própria presença dos que os tinham antecedido.
De toda esse património de memória, que consegui conhecer em toda a sua extensão, de Belém a Salvador, do Recife a São Paulo, com outras marcas menos significativas e algumas outras já desaparecidas ou em acentuado declínio, o Real Gabinete do Rio é um caso sem par.
Num edifício de desenho eclético, onde prevalece um neomanuelino com distorção transatlântica, que recorda um pouco a estação do Rossio ou o hotel do Buçaco, aí repousam centenas de milhares de livros em língua portuguesa, de que o Gabinete é hoje, a uma grande distância, o maior repositório existente fora de Portugal.
Infelizmente, o Real Gabinete não é muito conhecido dos brasileiros, nem sequer dos muitos turistas portugueses que, no Rio, lhe preferem o Calçadão, Ipanema ou o Leblon. Situado numa zona que veio a tornar-se algo periférica, só lentamente começa agora a surgir nos itinerários turísticos e culturais.
Em tempos idos, para os portugueses desafetos ao regime ditatorial que vigorou no seu país até 1974, o Real Gabinete representava também uma certa "colónia" de matriz saudosista, que tendia a confundir o respeito pelo nosso passado com a adesão a quantos utilizavam esse mesmo passado como arma de arremesso contra os que pretendiam forçar os caminhos do futuro.
Com o passar do tempo, as clivagens atenuaram-se. Foi com gosto que, quando vivi no Brasil, constatei ter-se criado uma relativa consensualização em torno do Real Gabinete, erigido em marca comum da presença portuguesa. O retrato de Salazar ainda anda por lá, mas é agora um fantasma que já não assusta ninguém. E caras bem democráticas da nossa colónia passeiam-se hoje por lá e frequentam-lhe as cada vez mais abertas atividades.
Em 2008, aquando das comemorações dos 200 da chegada da Corte ao Brasil, tomei a iniciativa de propor a realização de uma cerimónia no Real Gabinete, na presença dos então chefes de Estado dos dois países. Não foi fácil ver isso aceite pela parte brasileira, mas levei a minha teimosia até ao fim.
Recordo para sempre o olhar espantado de Lula da Silva, a observar, com visível deslumbre, aquele bizarro mas magnífico espaço, recheado de um património cultural cujo impacto no seu país ele seguramente não tinha experimentado até então. Nesses breves instantes, o antigo operário nordestino Lula da Silva, mas também o líder de um PT que sempre alimentou nichos de endémica lusofobia, bem como o presidente que sempre se mostrou simpático para com Portugal, todos eles, os três, se terão reconciliado um pouco com essa coisa sempre polémica mas incontornável que é o peso da História. A qual, goste-se ou não, foi comum."
3 comentários:
Por essa última razão apresentada é que o retrato do Salazar lá tem lugar!
Belíssimo texto e fotografia.
Peço desculpa sr. Embaixador pelo atrevimento mas aqui deixo o link do Real Gabinete Português de Leitura.
https://www.realgabinete.com.br/
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