sábado, setembro 22, 2012

Manifestação


A manifestação patriótica corria a preceito, naquele entusiasmo encenado com que o Estado Novo conseguia, numa sustentada coreografia, colocar o povo nas praças, para as fotografias que, no dia seguinte, "A Voz", o "Novidades", o "Diário da Manhã" (que a oposição citava sempre sem o til) e o inefável "Diário de Notícias" trariam na primeira página, a testemunhar o "inquebrantável apoio de Portugal à política de Salazar". O qual, diga-se, raramente se dignava estar presente nesses exercícios, deixando ao "venerando Chefe de Estado", Américo Tomaz, a função de pobre catalisador das emoções orquestradas. "Paletes" de autocarros, pagas pelo erário, arrebanhavam patriotas ocasionais, de fato e gravata, através das cidades, vilas e aldeias, que eram dispensados dos empregos e tinham ração garantida para o dia, empunhando faixas que espelhavam a imensa diversidade dos "sindicatos" do regime.

Não fosse tudo isso ter, por detrás, uma longa ditadura e uma sangrenta guerra colonial e até poderia ter alguma graça, dando origem a comédias a preto-e-branco. Não sendo as coisas assim, não podendo Peponne discutir com don Camillo, o humor político disponível tinha de ser procurado nos ridículos do regime.

Nesse dia, naquela Braga de onde o efémero Gomes da Costa arrancara num famigerado Maio, concelebrava a mobilização das hostes António Santos da Cunha, uma avantajada figura da "situação", homem de voz tonitruante, que, durante anos, desempenhou as funções com que o regime controlava as coisas por lá: foi presidente da União Nacional, presidente da Câmara municipal e Governador civil. Já não recordo em qual destas duas últimas funções atuava na ocasião em que, como era hábito, ressoavam, nos discursos, saídos da velha varanda bracarense onde aquelas cenas sempre se oficiavam, as imaginativas referências ao Portugal "pluricontinental e pluriracial" ou "do Minho a Timor" (o que vinha geograficamente a jeito), as loas à sabedoria histórica do "senhor presidente do Conselho", no meio do gongorismo retórico com que o regime organizava a turbamulta tresmalhada, sob o olhar fardado dos polícias e os ouvidos, atentos e dispersos, dos "pides".

António Santos da Cunha atiçava, nessas horas, o patriotismo oficioso, com intervenções entre os vários discursos, feitas de menções às figuras presentes ou a quantos fosse importante lembrar na ocasião, apelando às hostes para, individual e nominalmente, os saudarem. O ausente Salazar e o chefe de Estado recolhiam, como era natural, o grosso da coluna dos aplausos e dos "vivas", mas os ministros e outros dignitários presentes recebiam também, à escala da sua importância, uma quota-parte dessas conclamações. Tudo era feito com conta e peso, medido o nível das personagens. Santos da Cunha, que era um hábil profissional desses instantes, sabia bem o que fazia, organizando sempre em pormenor essa estudada improvisação.

Um qualquer obscuro subsecretário de Estado (o Estado Novo só criou a figura de "secretário de Estado" bastante tarde), vindo de Lisboa na comitiva do "venerando chefe de Estado", ter-lhe-á, a certo momento da manifestação, lançado um olhar inquisitivo, como que a demandar que o seu nome também fosse sufragado pelo vozeirão do edil e pelo subsequente eco da multidão. Santos da Cunha olhou-o, e não conseguindo atenuar o seu tom habitual, sossegou-o, à distância, com os "bês" do Norte, numa frase que ficou no anedotário da "situação":

- O "bibinha" de Vocência, senhor subsecretário de Estado, sai já a seguir, esteja descansado!

Desse povo e desse tempo de "bibinhas", deixo uma bela e clássica fotografia de Gérard Castello-Lopes.

sexta-feira, setembro 21, 2012

Portugal no Brasil

Começou o ano de Portugal no Brasil. 

Nos tempos que correm, não há, compreensivelmente, muitos meios para executar um programa à altura daquilo que se desejaria. Mas todas as oportunidades são poucas para ajudar a fixar na sociedade brasileira a imagem do país que hoje realmente somos e que os brasileiros, na últimas duas décadas, aprenderam a conhecer muito melhor - o Portugal para onde muitos vieram trabalhar e aquele que, numa conjuntura de algum sucesso, mandou para o Brasil capitais e gente qualificada. Nem tudo correu sempre bem, em ambas as aventuras. Mas muito de positivo ficou desse novo ciclo de intenso intercâmbio e o presente aí está a prová-lo.

Às vezes, nos meus tempos de Brasil, ao notar as caricaturas que de Portugal ainda por lá subsistiam, costumava ironizar e dizer que, ao chegarem ao aeroporto de Lisboa, alguns brasileiros ficavam surpreendidos por não serem recebidos por uma velhinha de ar triste, nazareticamente vestida de preto, talvez com algum bigode, a cantar o fado e envolvida num cheiro a sardinhas assadas. Somos o que somos, mas estamos muito longe de tudo isso. E os brasileiros, hoje, sabem-no.

Viva o ano de Portugal no Brasil!

Sporting

Clube de Portugal

quinta-feira, setembro 20, 2012

Jaurès

Como me dizia à saída um amigo francês, ontem assistimos, sem a menor dúvida, a uma "première". Na embaixada americana em Paris, o embaixador e meu colega fez, numa intervenção, a citação de uma frase de Jean Jaurès. 

Posso estar enganado, mas creio que só uma administração Obama nos dá oportunidade de ouvir as palavras do "pai" do socialismo francês pela voz pública de um diplomata americano.

Naquele instante, devo dizer, tive um pensamento piedoso para o "Tea Party". 

Liberdade

Muitos, com carradas de razão, acham extremamente provocatória a iniciativa do "Charlie Hebdo" de publicar, uma vez mais, um número com desenhos satíricos sobre Maomé.

Porém, o direito à liberdade de expressão leva a que, num país como a França, se não possa proibir a difusão destas caricaturas, muito embora isso esteja a suscitar uma onda de indignação em vários setores da comunidade nacional internacional e obrigue, por exemplo, a pesadas medidas de segurança das embaixadas e estruturas culturais francesas, um pouco por todo o mundo árabe e muçulmano.

A liberdade das nossas sociedades tem um preço, mas nenhum preço é demasiado grande para a salvaguarda dessa liberdade. Esta é, e espero que seja sempre, a nossa diferença.

Em tempo: deixo aqui um extrato do editorial do "Libération" de hoje: "Em democracia, liberdade a cada título de estabelecer a sua linha editorial; liberdade ao leitor de ler ou não ler; liberdade às pessoas que se sentem ofendidas de pedir reparação perante os tribunais, a única arma que é legal. E esperemos que, sob outros regimes, armas de outra natureza não sejam utilizadas".

terça-feira, setembro 18, 2012

França

Ontem, com um grupo de colegas, almocei com o novo ministro do Interior francês, Manuel Valls. Nasceu em Barcelona há 50 anos e tinha já 20 anos quando adquiriu, por naturalização, a nacionalidade francesa. Ocupa hoje um dos postos mais delicados do executivo da França, precisamente aquele que tem a seu cargo a questão dos direitos dos estrangeiros e a gestão dos fluxos migratórios.

Dei comigo a pensar se isto seria possível entre nós, se um estrangeiro que se tivesse naturalizado português no fim da adolescência seria aceite para ocupar um cargo de ministro, em especial numa pasta com esta sensibilidade específica. Como, já há meses, me tinha interrogado quando à facilidade com que a França conviveu com a candidatura à presidência da República de Eva Joly, uma norueguesa que, com 18 anos, veio trabalhar como "au pair" para Paris. Ou como os franceses acham natural que um cidadão como Daniel Cohn-Bendit, nascido em França mas apátrida até aos 14 anos, que, depois, optou pela nacionalidade alemã, deliberadamente para não cumprir o serviço militar neste país, tendo posteriormente dirigido a subversão estudantil no maio de 1968, seja hoje deputado europeu eleito nas listas francesas e uma das figuras cimeiras do partido ecologista.

Esta abertura da França àqueles que enriquecem a sua diversidade é uma das mais nobres marcas desta sociedade.

Don Santiago

Saiu hoje de cena, aos 97 anos, Santiago Carrillo. Tal como no poema de Lorca, a sua morte deu-se "eran las cinco en sombra de la tarde!". Carrillo foi, com Dolores Ibárruri, um dos mais marcantes dirigentes comunistas espanhóis. Seria também um dos obreiros da transição e, nessa qualidade, alguém a quem a Espanha democrática deve bastante.

Diabolizado pela velha direita espanhola, pela suas alegadas responsabilidades na chamada "matanza de Paracuellos", durante a Guerra civil, Carrillo acabou por transformar-se numa das estrelas do "eurocomunismo", essa deriva de moderação ideológica e de afastamento face a Moscovo, que se espalhou por alguns partidos comunistas europeus, a que o PCP ficou orgulhosa e naturalmente imune. Aliás, as relações entre Santiago Carrillo e Álvaro Cunhal nunca foram as melhores e vale a pena ler, nas memórias do primeiro, entre outros episódios curiosos, o relato de um encontro noturno entre ambos, na serra de Sintra, ao tempo das ditaduras ibéricas.

As ligações de Carrillo com Portugal não se ficaram por essa relação. Depois da Guerra civil, nos anos 40, Carrillo viveu por uns meses no Estoril, sob disfarce de um industrial uruguaio de conservas. E as suas relações sociais da época levaram-no a visitar fábricas na zona de Setúbal, com a ajuda do então ministro português da Marinha, com quem teve um encontro e que era, nem mais nem menos, o futuro presidente Américo Tomaz. Sempre achei magnífica a ironia deste episódio.

Na frustrada tentativa de golpe militar de extrema direita, em 23 de fevereiro de 1981, a vida de Carrillo esteve por um fio. Quando Tejero entrou nas Cortes e intimou "todo el mundo al suelo!", nem "todo el mundo" se curvou à ordem: o chefe do governo, Adolfo Suárez, e o seu ministro da Defesa, Gutierrez Mellado, recusaram obedecer, como as conhecidas imagens mostram. Mas essas imagens não revelam que, ao lado das centenas de cabeças que cumpriram a ordem de Tejero e se refugiaram por detrás das bancadas, houve só um outro homem que não se baixou: Santiago Carrillo. Um gesto, talvez para a História.

De Carrillo ficou-me também uma cena que ele relata do primeiro encontro que teve com o rei Juan Carlos, depois da legalização do PCE. Ao aproximar-se do soberano, ouviu este, ao saudá-lo, tratá-lo por "Don Santiago". Nesse instante, Carrillo entendeu que acabava de aceder à família política da nova Espanha democrática.  

segunda-feira, setembro 17, 2012

Da política

Voltámos aos dias obsessivos da política. Não se consegue falar de outra coisa. Telefonar para Portugal tem como consequência, cinco segundos depois de iniciada a chamada, ouvir comentários sobre a situação que se vive no país. Encontrar alguém que de lá chega é sinónimo garantido de, inevitavelmente, iniciar um diálogo sobre a crise e as crises que nela se estão a gerar. Os nossos funcionários, crentes em que "bebemos do fino", perguntam-nos o que vai acontecer. Os estrangeiros que cruzamos, dependendo da sua sensibilidade, colocam-nos questões brutais ou optam por um registo piedoso. 

Se os atores da peça andam eles próprios à procura de um argumento, não serão os espetadores quem pode adivinhar o sentido do que a história vai acabar por escrever. Nestes tempos, se os nossos medos tornarem isso possível, é muito importante que tentemos manter a cabeça fria e perceber que, se acaso a perdermos, isso em nada nos ajudará. Nos dias que correm, todos temos legítimas dúvidas, todos alimentamos angústias ainda sem respostas. No que me toca, tenho uma firme vontade e uma convicção: quero ver tudo resolvido na mais estrita observância das regras da democracia, que deu muito trabalho a construir, e tenho por seguro que, se isto correr mal, correrá mal para todos e não só para alguns.

domingo, setembro 16, 2012

Encontros

São duas curtas cenas que se ligam.

A primeira passou-se em Arusha, na Tanzânia, durante uma reunião da então SADCC, em 1988. A delegação portuguesa não tinha conseguido arranjar quartos individuais para toda a gente, pelo que eu partilhava um deles com o meu colega João Salgueiro. A certa altura da madrugada, o João acordou-me, chamando a atenção para uma gritaria no corredor do hotel. Era a voz de um homem que insultava uma mulher, a qual lhe respondia num nível idêntico de linguagem. A curiosidade é que a "conversa" era... em português! Abri a porta do quarto e vi passar uma mulher negra, lindíssima, completamente nua, com umas peças de roupa na mão, saída do presumível dissídio num quarto vizinho. Perguntei-lhe: "Precisa de ajuda?" Ela olhou-me com uma cara angustiada, respondeu com um "não" quase impercetível e desapareceu, a correr, na esquina do corredor. Era, com toda a certeza, da delegação de um país de expressão portuguesa. No dia seguinte, porém, não a descortinei em nenhuma dessas delegações.

Decorreram alguns meses. Uma outra deslocação, desta vez para uma reunião da Convenção de Lomé, agora na ilha Maurícia. Num corredor de acesso à sala da sessão, encontro jubiloso com a delegação de um país de língua portuguesa, com troca amigável de abraços entre os dois membros do governo e cumprimentos entre os restantes delegados. Numa dessas saudações, deparo com o sorriso tímido de uma delegada, que me disse, baixo: "Olá, como vai?". A cena foi rápida, mas o tempo suficiente para eu perceber que se tratava a minha "conhecida" de Arusha. Os nossos colegas lusófonos afastaram-se mas o Duarte de Jusus, que estava ao meu lado e ouvira a saudação da delegada, comentou: "Era muito bonita! Você conhecia-a?". O António Dias e o José Manuel Correia Pinto costumam citar a minha exclamação, que provocou gargalhadas em toda a nossa delegação, mas de que hoje, confesso, me arrependo: "Eu já vi esta mulher nua!". E na passada contei, também um tanto impudentemente, a cena de Arusha. Na altura, o Duarte de Jesus, que é um homem sempre sereno, manifestou apenas a sua surpresa por eu me recordar de uma pessoa que vira só durante alguns segundos. Gostaria de ter tido o génio de lhe responder: "Eu nunca esqueço uma cara..." 

quinta-feira, setembro 13, 2012

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Telemóvel

Ontem à noite, foi anunciado ao mundo o surgimento do iPhone 5. Seguramente por despeito, nessa mesma noite, o meu iPhone 4 desapareceu.

Porque sou um descuidado e não tenho qualquer "backup", fiquei sem os números de todos os meus amigos (além de algumas centenas de fotografias, imensas notas e outras coisas, mas é a vida!), a quem peço, se acaso me lerem por aqui, que, por mail, me recordem os vossos.

Desde já, como diria o nosso saudoso Raul Solnado: "muit'agradecido".

"E agora cheira a setembro"

O João Paulo Guerra lembrou, há pouco, no seu blogue, o clássico "agora cheira a setembro", de José Carlos Ary dos Santos. É verdade, sinto-o bem aqui, nesta noite em Vichy, na França profunda, no meu derradeiro dia de férias.

A chuva ronda, já se hesita em ficar nas esplanadas, agradece-se, pelo entrar da noite, "une petite laine". A bem dizer, confessemos ou não, já chegava de verão, de calor, de sol, de suor, de ar condicionado. Setembro rima bem com o estimulante (e saudável?) regresso ao trabalho, com "paletes" de coisas atrasadas para fazer, com as chamadas telefónicas em dívida, com a necessidade de resposta aos e-mails que foram "caindo" pelas páginas abaixo, com os convites para almoço aos amigos com quem estamos em falta, com muitos jantares "sociais" para retribuir. E com alguns textos para rever, com algumas palestras para preparar. E com algumas atitudes a tomar...

Este é o tempo do conhecido "agora é que é", das clássicas manias de uma qualquer "rentrée", da feitura de intermináveis listas (mais ou menos "moleskinizadas") que padecem sempre de erros de prioridade que as acabam por tornar inúteis, da promessa de não falhar as exposições que por aí vêm (quando, ao final daquela tarde, só vamos pedir sopas e descanso), da vontade de não perder alguns concertos e peças (que nos esqueceremos de reservar), de acabar dezenas de livros que jazem (e jazerão, para a eternidade) na estante, sem deixar de estar atento aos muitos que vão saindo, sempre cada vez mais caros (ou seremos nós que, afinal, ganhamos pouco e cada vez menos?).

No meu caso, este é um mês de setembro muito especial, talvez porque a vida que agora vivo se assemelha também, ela própria, um pouco a um setembro. É um tempo para fechar dossiês, para tentar arrumar assuntos em escassos meses, para fazer os "check-up" antes que nos "gaspem" a ADSE de cena, de planear uma nova vida, a aguentar com as reformas dos tempos da "troika" a que temos dever (já não temos direito..), de fazer (muito bem) as contas para (tentar) sustentar o futuro. E também para preparar, com real vontade e (talvez pateta) otimismo, um 2013 já sem horários e compromissos rígidos, com concertos na Gulbenkian, com idas ao CCB e aos teatros, com passeios e comezainas pelo país, com o jardim para tratar, talvez mesmo com alguma escrita para encadernar. E, principalmente, com amigos para rever, conversar e a quem dizer alto o que penso.  

Relembro sempre o mês de setembro, em toda a minha vida, como um mês peculiar. Eram finais de tarde chuvosos, na adolescência, em Vila Real, quando apressávamos a saída dos bilhares do Excelsior, depois das "explicações". Poucos anos mais tarde, eram as luzes de Cedofeita a acenderem-se, ao sair de um "martini" no Bissau, comigo ainda convencido de que tinha jeito para vir a ser engenheiro eletrotécnico. Eram também as sete e meia da tarde por um Montecarlo quase deserto, no anoitecer lisboeta, à procura do 21 para os Olivais, com o "Lisboa" debaixo do braço. E lembro muito bem os setembros gelados e escuros, mas muito estimulantes, de Oslo ou de Viena, os setembros que o não eram, em Luanda ou em Brasília, ou a insuperável beleza londrina dos fins de tarde, já bem iluminados, em Knightsbridge, as cores e os sons inconfundíveis da 2nd avenue, no regresso a casa, em Nova Iorque.

Os setembros, na minha memória, assemelham-se muito à recorrente ilusão dos janeiros, quando, passadas as festas, sempre arregaçamos psicologicamente as mangas, apenas por alguns dias, na miragem fátua de que basta querermos para podermos recomeçar tudo de novo, porque "hoje é o primeiro dia do resto da tua vida", como cantava o Godinho. Podia ser assim, para toda a gente, se acaso nós não fôssemos exatamente os mesmos que éramos na véspera, quaisquer que sejam as datas colocadas à nossa frente. As quais, aliás, se vão reduzindo, dia após dia. O que, não sendo uma tragédia, é, valha a verdade, uma boa chatice. 

terça-feira, setembro 11, 2012

"Libération"

A liberdade tem limites. A liberdade de um embaixador em posto ainda mais, como é natural.

Serve isto para dizer que bem gostava de poder comentar aqui, em pormenor, os deliciosos títulos de primeira página do jornal "Libération", nas edições de anteontem e de ontem, onde é feita a "releitura" de duas frases que, nos últimos anos, ficaram famosas na "petite histoire" francesa. Mas não posso fazê-lo, pelo menos de uma forma clara.

E tenho muita pena, porque o engenho e a arte com que o jornal se refere, através desses títulos, à decisão do empresário Bernard Arnaud de pedir a nacionalidade belga são verdadeiramente de antologia. A fantástica criatividade do "Libé", em matéria de capas e de títulos, é já legendária. As capas de ontem e de anteontem vão ficar nesse património. Como o ficou o velho "lettering" do título do primeiro número do jornal, que deixo aqui, "for the record".

segunda-feira, setembro 10, 2012

... encore un effort!

Não era bem uma livraria, era uma daquelas lojas de terra pequena, onde se vende tudo, desde lotaria a jornais, de tabaco a coisas de papelaria. E até livros. Foi ontem à tarde, em Tarascon (exatamente!, a terra do Tartarin que Daudet colocou a caçar leões no Norte de África). O título do livro de Sade (não, não é a cantora, é o marquês) chamou a minha atenção. Sinal dos tempos?

Num impulso súbito, embora soubesse que, em qualquer estante, em qualquer sítio, tenho um exemplar, tive a tentação de comprar o "Français, encore un effort...". Mas logo cheguei a uma conclusão: se achamos quase natural que alguns pareçam ter elegido Sade como seu clássico, então, definitivamente, só merecemos Sacher-Masoch.

domingo, setembro 09, 2012

Férias

Em 1971, quando entrei para a função pública, não existia subsídio de férias. Ele seria instituído no ano seguinte, em 1972.

O ano de 2012, o último em que usufruo de férias enquanto ao serviço ativo do Estado, deixei de ter direito a subsídio de férias.

Precisamente quatro décadas depois, o ciclo fecha-se. Não tem graça nenhuma, mas não deixa de ser curioso.

(Na imagem: as primeiras férias dos trabalhadores franceses, em 1936, decididas pelo "Front Populaire")

Próximo Oriente

Havia um velho aforismo que se costumava utilizar a propósito do Médio Oriente (mas cada vez gosto mais da precisão com que os franceses distinguem o conceito de Próximo Oriente do de Médio Oriente) segundo a qual, por aquela área geopolítica, "não há guerra sem o Egito nem paz sem a Síria". Lembrei-me de como esse tipo de afirmação está já datado quando ouvi o novo presidente da República egípcia denunciar abertamente o regime de Damasco, favorecendo uma alternativa democrática para o país.

Quem haveria de dizer que iríamos, um dia, assistir a uma coisa assim! Nunca, no passado, uma liderança egípcia se havia contraposto de forma tão aberta à família Assad, apesar das tensões entre o Cairo e Damasco não serem raras, antes pelo contrário. A verdade, porém, é que este é um novo Egito (seja lá o que isso venha a significar), chefiado por uma figura com um perfil legitimado democraticamente, com fragilidades económicas que, não obstante as suas renovadas tentações de protagonismo regional, o obrigam a continuar a respeitar uma dependência da Arábia Saudita sunita, que hoje tem o regime sírio, mais do que nunca, como inimigo jurado. E o herdeiro de Assad conseguiu perder, por efeito externo ou culpa própria, todos os "trunfos" com que o seu pai, de forma magistral, desenhara, por décadas, a estratégia nacional da Síria. Todos, não! Ainda lhe restam o apoio do Irão e a embaraçada proteção russa, para além da capacidade de destestabilização no Líbano.

As relações entre os países árabes sempre foram um labirinto de ambiguidades. No passado, eram "federadas" equivocamente por um apoio à causa palestina, que levava a uma oposição de princípio a Israel . Escrevo "de princípio" porque não houve nenhum país árabe com proximidade geográfica com Tel-Aviv que, num momento ou noutro, não tivesse enveredado por uma realpolitik de interesses, sempre disfarçada por uma forte retórica.

As diferentes "primaveras árabes" baralharam, contudo, todo este cenário e ninguém parece estar mais "baralhado" que Israel, que já se havia habituado a lidar com as ditaduras circundantes, as quais, na sua equação de segurança, funcionavam como constantes que conseguia ir gerindo. A suprema ironia é que Tel-Aviv, que sempre fez passar a ideia (real) de ser a única democracia da região, está agora em palpos de aranha com o facto das ideias democráticas, cuja ausência denunciava na sua periferia, estarem a atingir esses Estados da sua vizinhança. E, quem sabe?, levando ao poder governos, agora legitimados pelo voto, que, a prazo, lhe podem vir a tornar-se bem mais detrimentais que as "velhas" ditaduras. Qual é a "solução" para Israel? Aparentemente, tudo indica que pode ser tentado a fazer uma fuga em frente, desencadeando um ataque às supostas instalações nucleares do Irão. Desta forma, ao dispor-se a fazer um "dirty work" que espera que o Ocidente (no fundo) lhe agradeça, o Estado judaico compra tempo e complacência. Mas, uma vez mais, não ganha a paz. 

sexta-feira, setembro 07, 2012

A chave-mestra

A delegação portuguesa àquela reunião internacional, num país africano, ficara reduzida a dois elementos - eu e uma colega. Não obstante os trabalhos prosseguirem por mais dois dias, os restantes quatro elementos tinham partido, de regresso a Lisboa, porque havia eleições no dia seguinte. Pensando bem, tenho a sensação de que, se tivessem ficado, o equilíbrio eleitoral ter-se-ia mantido. E eu desisti de ir, por sabia que a minha opção nesse sufrágio ia sair derrotada, com ou sem o meu voto. Uma demissão cívica pouco defensável, confesso.

Fomos ambos jantar onde era possível, naquela cidade algo inóspita, num país que o não era menos. Depois de darmos uma olhada à discoteca do hotel, cheia de delegados à conferência, regressámos aos quartos, um ao lado do outro. Despedimo-nos. Quando entrei no meu quarto, verifiquei que havia um nele um envelope, da organização da conferência, que era destinado à minha colega. Bati à porta do seu quarto e entreguei-lho. Nesse instante, a porta do meu quarto fechou-se. Comigo fora, com a chave lá dentro.

Do quarto da minha colega, liguei à portaria do hotel, para alguém trazer a chave-mestra, que abre todos os quartos. Notei uma incomodidade do outro lado da linha. O "responsável", única pessoa com essa chave, saíra, não se sabia por quanto tempo. "E levou a chave-mestra consigo?", indaguei. Assim era.

A situação não era muito confortável. Eu estava "despejado" do meu quarto e não tinha onde dormir, se acaso a chave-mestra não aparecesse. Mas não nos passava pela cabeça que não aparecesse, claro. Fomos conversando, eu ia ligando à portaria, por duas ou três vezes passei por lá. Mas nada. O homem nunca mais regressava. Já passava bastante para além da meia-noite. Eu já não tinha "cara" para olhar para a minha colega, que via a televisão local, a fazer horas. E eu por ali ia estando, sem graça...

Até que, lá para as duas da manhã, bateram à porta. Era a chave-mestra! E lá fomos dormir, cada um no seu quarto. A minha colega, nos dias de hoje, confessa que chegou a pensar "fazer-me" a cama na banheira ou no chão do largo armário...

Há vários anos que, divertidos, ambos costumamos contar este episódio - que passou a chamar-se a "história da chave-mestra" - às respetivas famílias e amigos, com alguns a mostrarem-se menos crédulos com a precisão deste relato dos factos, às vezes com comentários mais provocatórios, sugerindo que eu, no fundo, estava, nem mais nem menos, que a "fazer a folha" a essa minha colega...

Ora bem: as coisas passaram-se como se passaram. Porquê? Porque se não se tivessem passado assim, seguramente que nunca tínhamos contado a história. Não é? 

quarta-feira, setembro 05, 2012

LusoJornal

O "LusoJornal" fez oito anos de vida. Acompanhei quase metade desse período e posso testemunhar que, com todas as limitações de um órgão de informação que subsiste com recursos escassos, o "LusoJornal" se transformou num instrumento de grande valia para a Comunidade portuguesa em França. Sem sectarismos nem posições radicais, o "LusoJornal" fornece uma informação equilibrada e atenta às grandes questões que atravessam a vida dos portugueses que por aqui vivem.

Quero daqui deixar uma palavra de homenagem e de estímulo ao Carlos Pereira e à pequena equipa em quem a feitura do "LusoJornal" se apoia. E porque a intervenção da Câmara de Comércio e Indústria Franco-Portuguesa se revelou essencial para assegurar a subsistência do jornal, desejo também saudar a CCIFP, na pessoa do seu presidente, Carlos Vinhas Pereira, por mais este serviço prestado à Comunidade.  

terça-feira, setembro 04, 2012

Moral

Ontem, foi o primeiro dia do ano letivo francês. O novo ministro da Educação nacional (sim, em França é "nacional") indicou pretender introduzir, futuramente, no ensino que é ministrado nas escolas, algumas normas de "moral republicana".

(Antes que entrem na praça os próceres monárquicos, convém que, pela enésima vez, fique claro que, em França, o termo "republicano" nada tem de oponível a "monárquico" ou "royaliste", sendo apenas um simples significado para ética de cidadania. Mas não tenho demasiadas esperanças de que esta explicação trave, em absoluto, a saída à liça da nossa rapaziada das coroas).

A esquerda não é muito useira neste tipo de iniciativas, temerosa, como sempre está, de que elas possam ser confundidas com algum tipo de moralismo autoritário e até fascizante. Por essa razão, logo se viram setores dessa mesma esquerda, mesmo alguns que apoiam o governo, a achar a ideia puramente reacionária. E, mesmo da direita, que, em princípio, deveria ser mais aberta a este tipo de iniciativas, vieram muitas objeções, quando a lógica apontaria para que essa fosse parte da sua agenda natural. Porquê?  Porque ambos os campos críticos consideram ser difícil consensualizar princípios que possam ser assumidos como incontestáveis - como se as decisões governamentais tivessem de passar por uma espécie de referendo unanimista, antes de serem postas em prática. E temem que a classe docente não esteja disponível para implementar uma tal iniciativa E, porque não é possível todos estarem de acordo, então, para alguns, o melhor é persistir no status quo, belo nome latino para nada fazer. É sempre assim...

É muito triste que, nos dias de hoje, a relativização dos princípios não permita que a sociedade acorde num conjunto de regras básicas de comportamento, desde a civilidade à ética social mais elementar, que seja possível manter alheias às lutas político-ideológicas. Mas talvez as coisas tenham de ser mesmo desta forma. Talvez, de facto, seja pouco consensual ensinar aos jovens que a competição não significa a prevalência lei do mais forte, que a igualdade de oportunidades é o contrário da legitimação da "cunha", que não "vale tudo" na vida do dia-a-dia, que é natural que não façamos aos outros aquilo que não gostamos que nos façam a nós. Mas será que os "paizinhos" recomendam isto? E se eles o não fazem e casa, poderão ser os professores  fazê-lo? 

Nesta "guerra", só me resta desejar muito boa sorte ao novo ministro francês. O qual dá mostras de querer seguir os princípios do  saudável igualitarismo laico de Jules Ferry*, mas que, nas últimas horas, já foi acusado de repetir o marechal Pétain - não o herói da 1ª grande guerra, mas o colaboracionista-mor durante a 2ª grande guerra. Não deve ser nada fácil ser ministro da Educação.

* É claro que era Jules Ferry e não Luc Ferry. Lapsos de quem se distrai muito com a atualidade. A propósito: Luc Ferry mostrou-se de acordo com estas ideias do ministro da Educação, de quem foi antecessor.  

segunda-feira, setembro 03, 2012

O intruso

As reuniões semanais de secretários de Estado são exercícios de análise dos projetos legislativos, antes deles serem submetidos ao Conselho de ministros. Podem ser reuniões muito aborrecidas, quando as temáticas são extremamente técnicas e desinteressantes. Mas é um trabalho importante de "desbaste" da produção legislativa, onde o representante de cada Ministério procura avaliar da compatibilidade do projecto com os interesses sectoriais da sua área. Grande parte dessa legislação, desde que mereça acordo a nível dos secretários de Estado, só "sobe" aos ministros para simples "luz verde", sem debate nem leitura. Quando, os secretários de Estado não conseguem chegar a um acordo, e se o Ministério proponente não retirar o dilploma, os ministros, em Conselho, são chamados a "trancher".

Recordo-me bem que, logo nos primeiros meses de governo, tive uma "pega" homérica com um colega de um determinado ministério, por via das competências a que aquele departamento se arrogava, em matéria das instruções diretas a dar à nossa representação junto da União Europeia, em Bruxelas, as quais, na minha opinião, colocavam em causa a natural preeminência do MNE nesse domínio. O assunto não mereceu consenso ao nosso nível, pelo que teve de subir a Conselho de ministros, onde, com alguma dificuldade, o chefe do governo conseguiu arbitrar uma solução. Satisfatória para a posição que eu tinha sustentado, diga-se.

Esse era, e continua a ser, um tempo a que cada governo sempre se dedica com zeloso fervor inicial - o período de produção das "Leis orgânicas" dos ministérios. Através delas, alguns departamentos procuram ganhar faixas de competências que, no passado, pertenciam a outros. No que importava ao MNE, isso era feito através da inclusão de hábeis, e às vezes ambíguas, alíneas nas lista das tarefas que que cada ministério atribuía aos seus "gabinetes de relações internacionais" ou dos "assuntos europeus". Por essa razão, cabia-me passar "a pente fino" todas as propostas de Leis orgânicas de todos os departamentos do governo. Aqui está uma matéria em que a história é sempre a mesma, qualquer que seja a coloração política dos executivos...

Naquelas infindáveis reuniões dos secretários de Estado, numa sala austera da rua Gomes Teixeira, havia por vezes alguns momentos divertidos. A grande figura desses instantes era o secretário de Estado da Justiça, José Matos Fernandes, que era conhecido por fazer um minucioso escrutínio à produção legislativa, quer do ponto de vista substantivo, quer no tocante à correção linguística, uma tarefa a que eu e o Guilherme de Oliveira Martins muitas vezes nos associávamos, com sádico prazer, para desespero de alguns colegas. É que, de certos departamentos técnicos, chegavam, por vezes, projetos de legislação num português abaixo de qualquer classificação. Matos Fernandes, que era um pouco mais velho que todos nós, fazia então observações com uma imensa graça, dando verdadeiras lições de Direito, às vezes ilustradas com histórias divertidas. Confesso que essas suas intervenções fazem parte do pouco de que tenho memória positiva dessas longas horas, nos dias em que "ia a conselho", com as pastas a chegarem às nossas casas, muitas vezes, bem tarde na noite da véspera, obrigando a leitura de diplomas até de madrugada. Não sei se as coisas ainda hoje assim se passam.

Um dia, a poucos meses da minha programa saída do governo, para regressar à "carreira", já quase no termo dos quase cinco anos e meio em que exerci aquelas funções, olhei para o outro lado da mesa e deparei com alguém que não conhecia. Os governos têm umas escassas dezenas de pessoas e, naturalmente, todos se conhecem uns aos outros, melhor ou pior. Aquela cara, porém, não me dizia rigorosamente nada. É claro que tinha havido uma recente remodelação e era natural que fosse um novo secretário de Estado. Mas - c'os diabos! -, embora eu não tivesse estado na posse, tinha visto a fotografia dos novos secretários de Estado e eu ia jurar que aquela pessoa não entrara no governo. 

O homem estava silencioso e olhava em volta, como se observasse um ambiente que lhe era estranho. Tomava algumas notas, mas não pedia a palavra. Ao meu lado esquerdo, estava o Luis Parreirão, a quem perguntei se sabia de quem se tratava. Disse que não fazia a mínima ideia e que também achara estranha a personagem. Ele também não tinha estado presente na tomada de posse. E o mesmo acontecia com o colega que estava à esquerda do Luis Parreirão. Todos nos tínhamos "baldado" da cerimónia em Belém. Pela posição na mesa, tentámos perceber a que ministério pertenceria. Mas, por uma qualquer razão, não chegámos a nenhuma conclusão.

"Será um jornalista?", lancei, baixo, para o Luís Parreirão, que arregalou os olhos com a ideia. "Às tantas!..." Sabíamos que já tinha havido falsos "deputados" do "Tal & Qual" no plenário da Assembleia da República e podia dar-se o caso de se tratar de um "golpe" similiar, desta vez na reunião de secretários de Estado. Seria preciso ter muita lata, mas tudo é possível.

Eu estava cada vez mais intrigado. À minha direita sentava-se o Guilherme de Oliveira Martins, que dirigia a reunião, como ministro da Presidência. Discretamente, perguntei-lhe se tinha alguma ideia de quem seria o fabiano sentado do outro lado da mesa, que nenhum de nós identificava. O Guilherme sabe sempre tudo! E, com a maior das calmas, disse-me o nome do homem, explicando tratar-se de um novo recruta, num determinado ministério. E, com um sorriso, acrescentou, já crítico: "se você tivesse ido à tomada de posse dos novos membros do governo, tinha-o conhecido..." É que o Guilherme tinha também tomado posse, como ministro da Presidência. E não nos tinha visto por lá...

domingo, setembro 02, 2012

Rochefort

Passaram 45 anos. As ruas de Rochefort parecem-se pouco às do filme de Jacques Démy, onde é difícil encontrar uma loja de "frites", como a que madame Ivone por ali mantinha. Estou certo que as "demoiselles de Rochefort" com que nos cruzámos só por um grande acaso conhecerão essa tentativa francesa de emular os musicais americanos, para o que não faltaram mesmo George Chakiris e Gene Kelly. O filme, que há uns meses revi, faz parte de quantos não resistiram ao tempo: é chatote, primário e de uma simplicidade quase amadora, embora pretencioso. Salvam-se as caras larocas, claro.

Já devia ter aprendido, de uma vez por todas, a abandonar este meu perigoso gosto de rever filmes (e alguns livros) que me marcaram a memória longínqua. Saio muitas vezes desiludido do exercício. 

Emmanuel Nunes (1941-2012)

Desde há vários dias que estávamos alertados. Hoje, surgiu a notícia da morte, num hospital onde estava internado, em Paris, cidade onde vivia, do compositor português Emmanuel Nunes, aos 71 anos de idade.

Emmanuel Nunes foi a maior figura da música de vanguarda em Portugal, tendo uma carreira académica de grande relevo, durante a qual esteve associado a grandes figuras da música contemporânea universal. Galardoado pelos governos português e francês, foi-lhe também atribuído o "prémio Pessoa" e o prémio de composição da UNESCO.

É reconhecido como a mais importante personalidade musical portuguesa nas últimas décadas, com expressão no âmbito internacional.

sábado, setembro 01, 2012

"Le serment des cinq lords"

A grande vantagem de se andar por "outra" França é ter a oportunidade de ler uma imprensa regional de boa qualidade, que compense a grande desilusão que hoje é, com exceção do "le Monde", a imprensa nacional francesa, basicamente reduzida às duas caricaturas políticas, respetivamente de direita e esquerda, que nos oferecem o "Le Figaro" e o "Libération". Depois do fim do "La Tribune", resta-nos seriedade conservadora do "Les Échos" que, em matéria de revistas semanais, se prolonga na revista "Challenges". Nestas, o "Le Point" e o "L'Express" são hoje, na direita, uma sombra daquilo que já foram e da importância que já tiveram. À esquerda, o "Nouvel Observateur" tem ainda algum rigor, com o "Marianne" a surgir quase como um panfleto, agora algo "déboussolé" com a vitória da esquerda.

A imprensa regional francesa, com mais de meia centena de títulos, consegue, em alguns casos, compatibilizar sínteses nacionais e internacionais interessantes com uma cobertura local mobilizadora, sem cair no sensacionalismo do "crime & cia". A minha experiência da sua leitura é escassa, pontual e pouco representativa, mas devo dizer que, vindo de um país onde essa realidade quase não existe ao nível de jornais diários, aprecio bastante o "Sud ouest", as "Dernières nouvelles d'Alsace", a "Voix du Nord" ou o clássico "Dauphiné liberé" (que, contariamente ao "Le Parisien", soube manter a orgulhosa menção de "liberé", atribuído depois do fim da ocupação alemã).

Mas tudo isto, que é "como as cerejas", vem a propósito do facto de eu andar a ler, nos últimos três dias, o também excelente "Ouest France", que cobre a Bretanha e zonas um pouco mais a sul. E o que é que fui descobrir no jornal? A publicação diária de uma nova "aventura" de Blake e Mortimer, "Le serment des cinq lords", na versão de Yves Sente e André Julliard. Pode não ter a grandeza do "traço" de Edgar P. Jacobs, mas não deixa de ser uma aproximação bem interessante. Em novembro, sai o álbum a público. Desde ontem, a Amazon já tem a minha inscrição. Que saudades eu tenho de Olrik! Bandidos deste quilate já não há mais!  

sexta-feira, agosto 31, 2012

O léxico da crise

Há uns anos, quando vivi em Londres, deparei um dia com uma expressão na imprensa que me pareceu não corresponder àquilo para que a sua leitura linear apontaria: "industrial action". Vim a perceber que se tratava de uma designação geralmente usada para greves, mesmo que o processo não fosse desencadeado na área industrial.

O mesmo fenómeno voltou a acontecer comigo aqui em França. Um dia, deparei no jornal com a expressão "plan social". Não percebi imediatamente o que isso queria dizer, porque a expressão não era de leitura unívoca. Mas, pelo contexto, rapidamente entendi que isso queria significar, numa linguagem corrente, uma situação de despedimento coletivo numa determinada empresa.

O que levará os países mais ricos a esconderem, por detrás destes eufemismos, as realidades a que nós chamamos pelos nomes óbvios?

quinta-feira, agosto 30, 2012

Leituras

Não primava pela cultura, a mulher de um diplomata que o acaso protocolar colocou ao lado daquele conhecido escritor, num jantar oficial. Para o romancista, já de si pouco dado a este tipo de eventos, toda a conversa tinha sido penosa, dado que todas as referências da senhora se situavam nos antípodas dos seus interesses.

Conhecendo embora o seu nome, ela nunca lera nenhuma das suas obras, cujos títulos teve a honestidade de dizer que não conhecia. As suas leituras mais avançadas situavam-se no género "light" das sagas urbanas, com sexo, carros, restaurantes e viagens, feitas de "casos" cruzados, em linguagem coloquial modernaça. Se ela fosse portuguesa, nós já sabíamos alguns títulos...

O escritor, porém, cuidara em ser muito complacente, quando a senhora, com grande admiração, lhe referira algumas das "obras" do género que lera. É que havia alguns desses "colegas" que eram publicados pela sua editora...

Já no fim da sobremesa, a senhora, que continuava deserta de qualquer conversa substantiva, inquiriu, sentindo-se quase na obrigação de mostrar uma simpatia curiosa:

- E agora, o que é que anda a escrever? Diga-me lá...

- Nos últimos meses, fiz uma pausa nos meus romances, revelou o escritor. Estou a escrever uma autobiografia.

- Ah! mas que interessante! E trata de quê?

quarta-feira, agosto 29, 2012

Blogue

Há dias, alguém me perguntava a razão pela qual este blogue "teimava" em publicar um post diário, desde a sua "inauguração", em 4 de fevereiro de 2009. A única resposta que encontro é a de que mantenho uma espécie de "aposta" comigo mesmo, sobre a capacidade de respeitar uma certa auto-disciplina.

Ou, quem sabe?, ainda será a memória dos tempos de infância em que, em minha casa, havia uma pequena caixa de cartão que tinha por fora (sem ofensa e com todo o respeito pelos leitores do blogue) a expressão: "um tostão por dia para os pobres da freguesia"...

terça-feira, agosto 28, 2012

Cimeiras e cúpulas

Foi ontem anunciado o adiamento da cimeira que estava prevista entre Portugal e o Brasil. Aposto que, no Brasil, os jornais falaram em "cúpula". 

Entre o português de Portugal e o do Brasil não há apenas diferenças na ortografia e na sintaxe. Há, pelo meio (os brasileiros dirão "em meio") de um vocabulário comum muito extenso, muitas palavras que são diversas. Alguns vocábulos brasileiros têm origem no português antigo, que se perdeu em Portugal e que permaneceu naquele país, em especial no Norte. Outros termos derivam da influência das línguas locais, como o tupi-guarani, ou de palavras oriundas de outras migrações, como a italiana, que também muito contribuiu para a abertura das vogais na fonética brasileira. Outras ainda, têm a ver com realidades locais e com uma evolução lexical que procurou, muito mais do que em Portugal, verter para a escrita o produto da oralidade popular. 

Estas diferenças, que não existem com a mesma intensidade noutras grandes línguas internacionais, não devem ser dramatizadas, mas devem ser lidas como fruto de uma diversidade que não há desvantagem em continuar a ser cultivada, desde que não fragilize o muito que a língua tem de comum, nomeadamente na sua expressão no mundo internacional.

Mas toda esta "conversa" vem a propósito das cimeiras ou cúpulas entre os dois países, que nunca têm uma data certa para a sua realização, que têm lugar quando é considerado oportuno por ambos e quando há suficiente matéria, em termos de interesses bilaterais, que justifiquem a ocasião. O mesmo se passa com exercícios idênticos que Portugal tem com a França, a Espanha ou Marrocos. 

Em 2006, teve lugar no Porto uma dessas cimeiras. Na noite que a antecedeu, fui testemunha de uma curiosa cena. Num certo momento, os dois diplomatas, um de cada país, que tinham a seu cargo a preparação do texto das conclusões, pareceram-me algo preocupados. O que é que se passava?  Muito simplesmente, cada país tinha contribuído com textos para essas conclusões e, ao juntarem-se esses mesmos textos num documento comum, ele ficava uma verdadeira "manta de retalhos", com expressões portuguesas e brasileiras, com uma espécie de ortografia e vocabulário "a meio do Atlântico". A imprensa, que era o destinatário principal dessas conclusões, iria, com certeza, ironizar com essas diferenças. E seria ridículo produzir dois documentos com diferentes ortografias, sintaxes e vocábulos.

Foi nessa altura que eu, e creio que o Lauro Moreira, o embaixador brasileiro que viria a ser o representante do Brasil na CPLP, nos voluntariámos para ajudar. Por alguns minutos, dedicámo-nos ao exercício de procurar sinónimos e expressões que, não apenas fossem comuns a ambos os países, mas que, igualmente, não apresentassem diferenças ortográficas. O nosso esforço foi bem sucedido e, nos poucos casos em que não fomos capazes de contornar as diferenças existentes, optámos por colocar as fórmulas portuguesa e brasileira, separadas por uma barra. 

Tudo se resolve, entre Portugal e o Brasil.

O valor dos Bonds

Todas as manhãs, de há uns anos para cá, um dos meus gestos de rotina, é olhar a evolução do valor dos Bonds (dívida pública) portugueses no mercado internacional, verificando o "spread" face aos que são emitidos por Berlim. Começo sempre a leitura do "Financial Times" por aí. Os Bonds são um bom indicador da forma como os mercados olham para a economia portuguesa, o que é importante, em especial agora, nestes tempos de "troika".

Ontem, porém, o valor relativo de outros Bonds chamou a minha atenção. Foi Roger Moore, o ator que protagonizou mais filmes de James Bond, que apareceu citado na imprensa como tendo dito que Daniel Craig, o último ator a interpretar a personagem, era o melhor James Bond de sempre.

Roger Moore é um senhor respeitável, que protagonizou alguns desses filmes com um misto de humor e charme machista, que sempre saía das cenas mais violentas com a poupa intocada, com aquele sorriso de marca, que, aliás, conserva na velhice, como pude comprovar há meses, quando o cruzei num evento por aqui. Como ator, desempenhava um Bond divertido, ao mesmo nível, comparadas as épocas, com que já fizera para a televisão as séries Ivanhoe ou O Santo. Mas, sejamos honestos, foi sempre um ator "13 valores", para usar a classificação que o meu pai costumava dar às prestações "assim-assim". Sempre pressenti que, no seu íntimo, vivia com um fantasma que se chama Sean Connery - o "verdadeiro" Bond. Isso mesmo fica confirmado nestas declarações de Moore que, enfim, estão ao nível daquilo a que sempre nos habituou como ator: "13 valores". 

segunda-feira, agosto 27, 2012

Férias

Têm sido divertido notar as reações de alguns amigos, agora regressados ao trabalho, quando lhes revelo que... agora, vou eu de férias!

sábado, agosto 25, 2012

O cunhado

Claro que não era uma ordem, até porque tinha vindo de Lisboa por via indireta, cordial e amigável. Mas o recado segundo o qual aquele ministro português "gostaria muito" se a embaixada em Londres pudesse arranjar dois lugares, destinados a um seu cunhado e a um professor deste, para uma final da Taça de Inglaterra em Wembley, configurava aquele género de pressão a que é difícil dizer que não. O problema é que os bilhetes para o jogo estavam esgotados, há muito. Eu conseguira comprar um, para mim, mas já há largos meses.

Na embaixada, descobriu-se alguém que tinha um amigo na federação britânica. Essa pessoa, por especial favor, conseguiu dois acessos, depois de ter explicado que havia um ministro por detrás do pedido. A resposta da federação foi, aliás, melhor do que se poderia supor: atendendo a que era um pedido "oficial" de um membro do governo português (não sei bem o que disseram à federação), ofereciam dois convites, gratuitos, para uma zona especial, tipo camarote, onde ficavam os convidados da federação. Porque era uma área do estádio alheia às claques, relativamente "neutral", a federação apenas pedia alguma parcimónia na exibição de bandeiras ou símbolos dos dois clubes em liça. Esses ficavam para as duas imensas claques, uma londrina, do Chelsea, outra do Sheffield Wednesday. 

Era na cidade de Sheffield que o cunhado do ministro estudava. Estava assim explicado que quisesse fazer um gesto e trazer o professor para ver o seu clube. E, com certeza, para mostrar o que era a importância de ser cunhado de um ministro, capaz de mover mundos e fundos para arranjar duas entradas, ainda por cima de borla, para uma "Cup final". Ao cunhado do ministro, lembro-me que alguém transmitiu a indicação da necessidade de serem respeitadas as limitações coreográficas assinaladas pela federação, tendo ficado combinado deixar os dois convites num determinado local de Londres.

No dia do jogo, lá fui para Wembley. Como o meu bilhete era relativamente central, fora das claques, podia avistar, com facilidade, os camarotes. E foi então que lá os vi, no meio de um largo grupo de pessoas que não ostentavam nem bandeiras nem cachecóis: aquele que me pareceu ser o professor e um miúdo, jovem adolescente, ambos vestidos, da cabeça aos pés, de evidentes fãs do Sheffield Wednesday, a destoarem vivamente, pela cor e pela agitação que fui observando, dos responsáveis federativos e seus convidados. Imagino que alguém da federação deva ter estranhado bastante aquele golpe de "entrismo" lusitano.

O cunhado do ministro telefonou, dias depois, a agradecer, dizendo que tinha ficado "adoentado" e que, por essa razão, tinha dado o seu bilhete ao filho do professor. Pois...

Porque a sorte protege os audazes mas não necessariamente os espertalhaços, o Sheffield Wednesday perdeu contra o Chelsea e os dois "convidados" terão ficado com uma cara similiar à dos seus correlegionários da foto (mas não me lembro se algum deles usava o elegante capacete da "farda").

Passou-se isso numa tarde de sábado dos anos 90, um dia em que eu percebi melhor por que razão a palavra cunhado pode ter a ver alguma coisa com a palavra "cunha". Ontem, ao assistir, pela televisão, à terceira (e merecida) vitória consecutiva do Chelsea na edição deste ano da "league" inglesa, lembrei-me deste episódio. E que, daquela vez, até fiquei satisfeito pelo facto do Chelsea ter ganhado, coisa que só me voltaria a acontecer nos tempos de Mourinho, Scolari e Vilas Boas. Porquê? Porque, em Londres, eu "sou" do Arsenal, claro!

sexta-feira, agosto 24, 2012

A "chance" de Poulidor

E continuamos no ciclismo. A decisão de Lance Armstrong, ontem anunciada, de renunciar à sua defesa perante as acusações de dopagem que lhe são feitas, deve resultar na sua desqualificação como vencedor de sete "Tours de France".

Julgo que a imagem da popular prova ciclística francesa, bem como a do ciclismo em geral, vão sofrer fortemente, em matéria de credibilidade, particularmente se somarmos este escândalo aos tantos outros que mancham a competição e tornam cada vez mais duvidosas (e, pelos vistos, precárias) as vitórias a que vamos assistindo. Devo dizer que, como ativo adepto - de sofá e televisão - do mundo do ciclismo, entristece-me ver esta mítica modalidade, que tanto mobilizou a minha atenção desde a juventude, entrar "pelas ruas da amargura". E começa a ser ridículo - mas compreensível - que os resultados ciclísticos acabem por ser ditados nos laboratórios (como alguns do futebol o são "na secretaria")

Um amigo, ontem, ao telefone, comentou: "Não és tu que és um fã do Poulidor?". 

Para o leitor menos avisado, diga-se que Raymond Poulidor foi um grande ciclista francês, vencedor de várias provas no país e no estrangeiro, mas que nunca conquistou o "Tour de France", nem nele sequer vestiu alguma vez a "camisola amarela", embora tenha ganho várias etapas. Mas, nesse mesmo "Tour", foi três vezes segundo classificado e cinco vezes terceiro. É hoje um ídolo para várias gerações francesas e é uma figura por quem, desde sempre, nutro uma imensa simpatia, nesta minha incontrolável tendência para gostar dos gloriosos e dignos "losers".

Perguntei ao meu amigo por que diabo me vinha falar do Poulidor. "É que, por este andar, ainda vão acabar por desclassificar o Anquetil e o Merckx, nalguma "revisão de provas", pelo que o Poulidor pode ainda ter uma "chance" de ganhar uma Volta à França ...". 

Desporto

Segundo o "Der Spiegel" desta semana, a Alemanha vai ter um novo representante diplomático em Paris, uma senhora, conhecida pelo seu espírito desportivo, porque vai todas as manhãs de bicicleta para o trabalho.

Neste aspeto, peço meças à minha nova colega: eu vou a pé, todos os dias, de casa até ao emprego.

E espero que não me venham dizer que o facto do escritório da embaixada ser no andar superior àquele em que se situa a residência fragiliza o argumento.

quinta-feira, agosto 23, 2012

Goa

Goa foi um tema que sempre me fascinou, menos pela inegável importância histórica da nossa presença na costa indiana e muito mais pela natureza, que sempre vi como muito ambígua, da relação de Portugal com aquela terra e aquela gente. Há uns anos, essa curiosidade levou-me mesmo a passar por lá uns dias. E, devo dizer com franqueza, saí mais confundido do que estava quando lá cheguei.

No final de 2011, passou exatamente meio século desde que a União Indiana invadiu as últimas possessões que Portugal mantinha na costa do Malabar: Goa, Damão e Diu. Dois enclaves, Dradrá e Nagar Haveli, já haviam sido absorvidos pelo governo de Nova Delhi, em 1954. Uma curta batalha militar veio encerrar uma mais longa batalha jurídico-diplomática, com que o governo ditatorial português pretendia contrariar o processo descolonizador. A perda do Estado da Índia representou um trauma muito importante num país que, nesse ano, já havia assistido às trágicas consequências da sublevação em Angola. O colonialismo português entrava no seu declínio e, com ele, o próprio regime.

Mas, à época, diga-se em abono da verdade, nem só os dirigentes do Estado Novo se recusavam a aceitar o fim do império: grande parte da opinião pública portuguesa, mesmo dentre quantos se opunham a Salazar, mantinha uma atitude favorável (ou, pelo menos, não desfavorável) à manutenção dessa parcela do "ultramar português". Mesmo no seio das forças organizadas da Oposição, essa atitude dominava, convém dizê-lo. Recordo-me bem da emoção provocada em Vila Real, em fins de 1961, aquando da "queda" do Estado da Índia, pela invasão das tropas do "Pandita Nehru".

(Nunca me saiu da cabeça a ideia que criei de que a reiterada utilização adjetivada que a propaganda do regime fazia da palavra "Pandita" - designação elogiosa indiana que era atribuída a Nehru e que, em rigor, significa homem sábio e educado - tinha a ver com a sua similitude sonora com "bandido", tal como, anos mais tarde, aconteceu na América com as expressões "Saddam" e "Satan". Os cartazes com palavras de ordem que diziam "Abaixo o Pandita" e coisas similares assim parece provarem).

Tenho na memória a visão do meu professor de História, dr. Carlos Sanches, não sei bem em que qualidade, a discursar na varanda do Governo Civil de Vila Real, para umas centenas de pessoas que, com patrióticos cartazes, manifestavam o seu pesar pelos acontecimentos. Eu estava ali com o meu pai, um eterno anti-salazarista, mas que estava solidário com a defesa do Estado da Índia.

Na altura, a censura aos media não deixou revelar as dissenções havidas entre o governador-geral Vassalo e Silva e o executivo de Lisboa, com a "heroicidade" de Salazar a mandar, da comodidade de S. Bento, o célebre e gongórico telegrama, redigido para a História e para o "livro branco": "Não haverá nem vencedores nem vencidos, só heróis e mártires". Lembro-me da emoção com que então se ouvia falar do afundamento do aviso Afonso de Albuquerque, bem como da "defesa heróica" levada a cabo pelas forças militares portuguesas em Goa. Só muito mais tarde vieram a conhecer-se as condições miseráveis em que estavam as nossas tropas no terreno e no total irrealismo que representaria uma luta até ao último homem. A vilificação de Vassalo e Silva (a ironia estadonovista nas conversas sugeria a sua "cobardia", ao tratá-lo como "bacilo salvo") foi a escapatória fácil encontrada pela ditadura para justificar a derrota militar, a qual, como disse, era uma outra face da inevitável derrota política da teimosia na manutenção do sonho imperial, de que Índia "portuguesa" era a primeira peça do dominó a cair.

Como atrás disse, há uns anos, passei uns dias em Goa. A Índia era a zona da fixação colonial portuguesa que me criava (e ainda cria) maiores interrogações. Sabia do modo ofendido como os habitantes de Goa, Damão e Diu tinham entendido a aplicação ao território do Ato Colonial, logo no início do Estado Novo. Li, mais tarde, textos escritos por goeses divididos entre a fidelidade a um Portugal que os tratara menos bem e a atração por uma União Indiana que lhes abria caminho a uma ligação a um grande Estado descolonizado, então "farol" para muitos povos. E percebera, também, a desilusão que muitos goeses haviam acabado por sentir, ao verem a sua identidade violentada por uma integração algo traumática, desrespeitadora da sua sensibilidade cultural e até religiosa. Não sei o suficiente sobre o assunto para poder ter uma opinião segura, mas recomendo muito que, quem possa, vá a Goa e por lá tente entender aquela gente que ficou "a meio da ponte"...

Nessa viagem, entre outras surpresas, tive uma experiência curiosa. Como acontece com muitos turistas portugueses, procurei visitar algumas das antigas casas senhoriais do tempo da Índia "portuguesa", hoje maioritariamente transformadas numa espécie de museus, as mais das vezes tristes, que espelham uma decadência serena e digna. E onde, em geral, se fala de Portugal sem acrimónia, mas também sem especial nostalgia, como falamos de longínquos membros desaparecidos da família, com defeitos e virtudes. Mais do que de Portugal, do que alguns goeses parece terem saudades é da sociedade goesa do passado, o que são coisas muito diferentes.

A certo ponto da minha estada, ao aproximarmo-nos de uma dessas casas, fui informado pelo motorista que ela não era visitável, salvo com diligências que eu não tinha tempo de empreender. O mesmo motorista chamou-me, entranto, a atenção para uma senhora que estava a sair da casa, dizendo saber que era ela a proprietária. Pedi para parar o carro e dirigi-me à senhora, que deveria mais de 80 anos. Fi-lo em inglês. A senhora olhou para mim e, num português impecável, respondeu-me: "Mas por que é que está a falar-me em inglês? Eu falo português. Eu fui deputada à Assembleia Nacional!". Chamava-se Lurdes Figueiredo e, logo recordei, fizera parte de um grupo de deputados, de um género a que os brasileiros chamam "biónicos", que haviam sido designados pelo Estado Novo para representar o Estado da Índia, no areópago de S. Bento, ao tempo em que o general França Borges era uma espécie de governador-geral no exílio... em Lisboa. Creio que duraram até ao 25 de abril, se não me engano.

Fiquei sempre com muita pena de não ter tido a oportunidade de falar longamente com aquela senhora, para tentar perceber um pouco mais desse tempo estranho, de um Portugal em transição, em trágico final de império. 

Tão estranho que o motorista que me transportava, um hindu que não falava uma palavra de português e que havia nascido já bem depois do fim da Índia dita portuguesa, me pediu para lhe mandar, de Lisboa, autocolantes com o nosso escudo ou a nossa bandeira, para si e para oferecer aos amigos, que achavam muita graça usar nos automóveis. As bizarras malhas que o império tece...  

O francês

Vasco Graça Moura publicou ontem no "Diário de Notícias" um interessante artigo em que dá conta do declínio de importância da língua francesa em Portugal, sublinhando a sua contribuição para a nossa cultura e para a nossa abertura ao mundo. 

E, a propósito, lembrou um curioso soneto do Abade de Jazente (sec XVIII):
 
"Portugal, que era rústico algum dia,
Incivil, trapalhão, mal amanhado,
Está graças à França tão mudado,
Que o mesmo já não é do que soía.
A língua, o traje, o trapo, a grossaria
Dos antigos costumes tem deixado:
É todo doce, é todo concertado;
E parece outro sua Senhoria".

Leia o artigo aqui.

quarta-feira, agosto 22, 2012

Ar verdadeiramente condicionado


Paris vive dias abafados, num verão quente raro, com temperaturas a aproximarem-se dos 40 graus. A embaixada e a residência do embaixador não têm ar condicionado, porque o prédio é antigo e tem de ser preservado. Nos escritórios, sobrevive-se num ambiente de penumbra, que quase obriga a acender as luzes. Sonha-se com ar condicionado, mesmo que fosse o das patuscas histórias de "espionagem" da FNAC no "verão quente", contadas por quem nos quer convencer de que tudo "foi assim", quando, na altura, pensava "assado". Nessa falta de ar, não se estranhará, por isso, que me tenha vindo à memória o episódio que conto neste post.

A doutrina divide-se, desde há muitos anos, sobre se foi a perfídia dos companheiros de viagem ou as condições do acaso que fizeram com que o meu colega Paulo Castilho (esse mesmo, o escritor, também diplomata) e eu fôssemos parar àquele sinistro hotel nos Barbados. Estávamos a dar então os nossos primeiros passos nas instituições europeias, em 1986, e competia-nos defender as cores nacionais numa reunião multilateral, em Bridgetown, dedicada a questões de comércio e desenvolvimento. 

Parte da delegação chegara dias mais cedo. Nós arribávamos de Londres, na véspera da reunião plenária, juntamente com o chefe da delegação. Para este, estava destinado um belo quarto, num bungalow sobre a praia. O Paulo Castilho e eu fomos informados de que só fora possível reservar aposentos num outro hotel, "um pouco fora da cidade". Conhecendo do que a casa gasta, fiquei de pé atrás. Mas lá jantámos, bem dispostos, em Bridgetown, distraindo uma colega que tinha perdido a mala e discutindo quotas de açúcar, antes de rumarmos ao tal hotel.

No táxi, começámos a preocupar-nos. O tempo passava e os caminhos eram cada vez mais estreitos. Depois de aí uma boa meia hora viagem, chegámos ao destino. Era um hotel medíocre, na soleira de ser uma espelunca. Olhámos um para o outro, na certeza de que esse facto não iria atenuar as invejas que tínhamos deixado para trás, em Lisboa, ao termos tido o privilégio de ser designados para uma reunião nas Caraíbas. Haveria que passar ali três noites. E, em especial, tínhamos de madrugar e encontrar transportes para estar a tempo nas reuniões. Eu estava furioso, diria mesmo, nominalmente furioso com as pessoas que tinha como responsáveis daquela "partida", que nem por um segundo desligámos de um conflito de titularidade sobre os assuntos tratados na reunião, que então se vivia dentro do MNE.

Na receção do hotel, perguntei se os quartos tinham ar condicionado, temendo o pior. A resposta foi críptica: "Sim, mas tem um pormenor que explicaremos quando chegar ao quarto". E lá fomos. Sem elevador, claro. O quarto estava ao nível das baixas expetativas que já levávamos. Mas tinha ar condicionado. O pormenor? Bom, o pormenor é que, para que o ar condicionado funcionasse era necessário, de duas em duas horas, meter uma moeda. Coisa simples, está bem de ver!, para quem pretendia dormir, depois de uma imensa jornada. Foram dias, melhor, noites horrorosas, com olheiras que nem deu para atenuar com umas horas de praia, coisa que os nossos colegas alojados em Bridgetown tinham assegurado, quando quisessem. 

No regresso, "vingámo-nos" à nossa maneira! Eu e o Paulo Castilho viémos por Nova Iorque, onde passámos uns curtos dias de férias. Vi que ele aproveitava para tomar algumas notas. Só uns anos depois percebi porquê, ao reconhecer, desses dias, alguns cenários no seu livro de estreia, "Fora de Horas".

(E, passado que entretanto foi o tempo, quero declarar que já iniciei um processo de autoconvicção sobre a "bondade" intrínseca de quem nos reservou os quartos no hotel caribenho. Um dia, perguntarei ao Paulo Castilho se já se convenceu...)

Em tempo: um leitor atento, poeticamente a banhos em zonas da reconquista, teve a gentileza de mandar, para usufruto dos leitores deste blogue, este curioso texto intitulado "L'air conditionné est-il de droite?", magna questão que deve provocar suores frios a quem a coloca.

Hoje, aqui na Haia

Uma conversa em público com o antigo ministro Jan Pronk, uma grande figura da vida política holandesa, recordando o Portugal de Abril e os a...