Naquele que era o meu primeiro dia de Paris, num agosto de brasa, já na segunda metade dos anos 60 do outro século, eu tinha iniciado uma espécie de peregrinação pelos clichés da cidade, que trazia bem gravados na imaginação, fazendo, à passagem em cada um, como que um “vêzinho” mental. E eles eram tantos!
O velho “Baedeker” que havia lá por casa, em Vila Real, tinha-me adubado a curiosidade e ajudado a colocar as imagens dos prédios e monumentos na geografia dos percursos que planeara. Aquela bela jornada de sol estava, assim, transformada numa espécie de “déjà vu” afetivo, desculpável deslumbre de quem tinha ido, quase diretamente, de uma pachorrenta Vila Real para aquele outro mundo que eu achava que era, afinal, o mundo que valia a pena.
Tinha chegado na véspera, à Porte d’Italie, à boleia (é verdade!), saído, dias antes, da rotunda do Relógio, em Lisboa. Ia sozinho, como os filhos únicos sabem andar, com um saco alpino ao ombro. Tinha ido dormir na camarata de uma residência para estudantes, depois de muita procura.
Sabia que “Paris é uma festa”, embora ainda não tivesse lido o livro (menor) de Hemingway. Levava comigo o endereço do Harry’s Bar (“sank roo doe noo”, como os americanos aprendiam foneticamente a dizer aos taxistas), apenas para a teimosia de ir lá beber, como sabia que ele por ali tinha bebido, aquele que deve ter sido o meu primeiro e último “bloody mary”, algo que logo passei a detestar. É que cedo aprendi que há certas coisas que tem mesmo de se fazer na vida, pelo menos uma vez.
O “Les Champs-Élysées”, de Joe Dassin, ainda não tinha sido gravado, mas recordo ter subido por ali acima, deslumbrado pela vastidão do espaço e pelo corte das árvores, olhando os números das portas, mesmo sabendo que o 202, onde “moraram” o Jacinto e o Grilo, era uma invenção inencontrável do Eça.
Da Étoile, praça que ainda ninguém tinha tentado crismar de Charles De Gaulle, que então ainda estava a viver no Eliseu, desci a avenue Foch. Queria chegar, lá ao fundo, ao bosque de Bolonha, à procura de um certo ambiente de um policial de Simenon que lera pouco tempo antes (deve ter começado ali o meu vício de visitante obsessivo de lugares da ficção e da História). No final da avenida, por uma rua que não reparei que se chamava Crevaux - sem eu então saber, ali tinha sido a primeira morada parisiense de Eça -, fiz um desvio deliberado, para espreitar um certo edifício.
Queria ir ver a embaixada de Portugal. As grandes portas de madeira que dão para a rue de Noisiel estariam fechadas. Imagino que a nossa bandeira, saída do varandim do terraço, estivesse içada. Terei tido, talvez, um breve frémito de saudades da pátria, mas logo deve ter passado, na euforia em que andava. Pensaria que, lá dentro, estariam uns senhores graves, engravatados e vestidos de escuro, numa rotina de salamaleques. Que vida estranha! Passei adiante e fui ver o bosque.
Eu estava em França, caramba! Às vezes, ponho-me a imaginar a felicidade adolescente que, por esses dias, me atravessaria. A longa distância de qualquer outro país, só com a América a aproximar-se um pouco, a França, para mim, era um eldorado de referências - muitas da História, da música do “Salut les Copains”, já de algum cinema e, ainda muito pouco por essa altura, de alguns livros.
Sem grande dinheiro para extravagâncias, como então se dizia, dava-me por satisfeito por estar a ser um “voyeur” de uma vida urbana que tinha por quase ímpar, e que achava, em definitivo, fascinante. E olhava as montras, as luzes, os outros, contente só pelo facto de poder flanar por ali. Esse dia foi o início de uma “amizade” para toda a vida. Ali com Paris, já há uns dias com a França.
Hoje, pensando retrospetivamente nesse meu primeiro mergulho civilizacional além fronteiras (do “estrangeiro”, apenas conhecera Verín, Tuy e Orense!), dou-me conta de que, em absoluto, não pressentia a sina dos já muitos milhares de portugueses que, longe dos “boulevards” onde eu me passeava e passeava o olhar, acordavam cedo para “construir as cidades para os outros”, como iria cantar Sérgio Godinho, com o qual, sabe-se lá, até me posso ter cruzado em alguma esquina. Nem me recordo, confesso com toda a humildade, se o nome de Champigny, por esses dias, me dizia alguma coisa.
Só o futuro me veio a ensinar que, por detrás daquele “barulho das luzes”, havia um Portugal humano, exportado no sofrimento, na busca de trabalho ou na angústia do exílio, num registo muitas vezes de privações e quase sempre de tristeza. Muito mais tarde, vim a perceber que saber “dar a volta por cima”, com dignidade e muita luta, acabou por ser a vingança morna de muita dessa gente fantástica que o destino, um dia, me veio a dar o orgulho de representar por ali.
A França e a língua francesa tinham entrado, desde muito cedo, na minha vida, ainda em Vila Real. O meu pai, bancário de profissão, era um francófilo ferrenho. Nunca tinha ido a França, mas dava aulas gratuitas de francês e ensinou-me a frase de Thomas Jefferson: “Tout homme a deux patries: la sienne et la France.” Lembro, às vezes, de ele me ter dito que, como democrata, lhe custava olhar a célebre fotografia das tropas da Wehrmacht a descerem os Campos Elíseos, ofendendo o nome do Arco, que se via ao fundo. A França, para ele, era como que o outro nome da liberdade. Os escassos livros que não eram escritos em português, dos muitos que havia lá por casa, eram todos em francês.
Não valerá a pena repetir a banalidade de que, até à minha geração, o francês era a segunda língua de quem, em Portugal, tinha acesso à cultura. Depois, um dia, o inglês chegou, viu e, em poucos anos, venceu o francês. Tive a sorte de ter feito parte de uma geração de transição, que, tendo mantido a França como “meca”, teve também o privilégio de poder usufruir, nas décadas seguintes, da fantástica riqueza da cultura do mundo anglo-saxónico.
Um dia, no termo de uma carreira na diplomacia que nunca me tinha dado como destino um país de língua francesa, recebi, encantado, o convite para ocupar o posto de embaixador em Paris.
Quando, numa noite fria de início de fevereiro de 2009, chegámos à rue de Noisiel, para aquela que seria a derradeira etapa de uma vida profissional muito feliz e melhor realizada, posso jurar que me lembrei do miúdo que por ali tinha andado a espiolhar aquela casa por fora, num dia de sol, mais de quatro décadas antes. Foi, fui um miúdo com muita sorte.
A França, entretanto, por cá, entrou-nos portas adentro. Foram bandos crescentes de turistas a encher os hotéis, antes da pandemia. Foram reformados e investidores, a comprar, casas, quintas e o sossego barato. Não vou ao ponto de dizer, como já ouvi, que há que recomeçar a cantar a Amália do “Lisboa, não sejas francesa”.
Mas ver Éric Cantonna a morar no topo da minha rua e ouvir, com um sorriso meu que eles não entenderam, dois franceses numa leve altercação na nossa garagem coletiva, revela bem quanto o Portugal que já foi das nossas bravas “concierges” e da gente do “bâtiment”, se tornou, afinal, numa terra muito interessante para os franceses de hoje.
Esta “quarta invasão” francesa já não obriga a esconder sob a terra, para não serem saqueadas pelas tropas napoleónicas, as garrafas do vinho que, lá por Boticas, ficou, por essa razão, a ser conhecido como “dos mortos”. E as obras de arte, salvo se estiverem à venda em antiquários, estão, desta vez, a salvo. Os franceses que por aí andam vêm agora pela gastronomia, pela segurança, e, tenho mais do que certeza, pela simpatia em que eles sabem, melhor do que ninguém, que os portugueses são imbatíveis.
Até a língua francesa, para alegria de quem a aprecia, começa a falar-se bastante mais por cá. E espero que bem melhor do que a que era praticada por aquele fulano, a quem, há muitos anos, na esquina do Hotel Aliança, em Viana do Castelo, vi apontar, simpático e elucidativo, na direção do norte, a um turista francês perdido, que procurava o caminho para Espanha: “Vallez sempr’en frent!”
(Texto hoje publicado a convite do “Jornal de Letras, Artes e Ideias”, na edição que assinala o início da Temporada Cruzada Portugal-França 2022)