Saí há escassas horas de um excelente espetáculo musical, no teatro desta Vila Real com três graus centígrados, que reuniu, num improviso consecutivo de uma hora e meia, António Victorino de Almeida, Paulo Jorge Ferreira e Paulo Vaz de Carvalho - respetivamente ao piano, acordeão e guitarra. Foi um belíssimo concerto a anteceder o Natal!
À tarde, tinha havido uma conversa aberta com o pianista, hoje com 84 anos, que me dizem ter sido muito interessante. O tempo, cá por Vila Real, costuma render bastante mais do que em Lisboa, mas ainda não dá para tudo. Perdi assim o ensejo de poder contar a António Victorino de Almeida um episódio que ele talvez desconheça.
Foi há mais de 40 anos. Eu estava colocado na nossa embaixada em Luanda, nesse tempo de feroz guerra civil entre o Estado angolano e a UNITA. As relações políticas entre Portugal e Angola estavam no seu ponto mais baixo. O governo do MPLA acusava Portugal, entre outras coisas, de deixar a UNITA organizar-se livremente no seu território.
Na embaixada, eu tinha a meu cargo o setor da cooperação e era exasperante ver Angola recusar praticamente tudo quanto íamos propondo, para tentar reativar aa relações bilaterais. Com exceção da contratação de professores, quase nada se conseguia fazer.
Nesse ano de 1983, o recém-chegado embaixador português, António Pinto da França, numa visita de cortesia em que o acompanhei à única estação de televisão local, a Televisão Popular de Angola - TPA, teve uma ideia que acabaria por se revelar original. Ele não desconhecia as severas restrições que o governo angolano colocava a tudo quanto tivesse origem em Lisboa, mas tentou a sua sorte com uma proposta que se pretendia inóqua.
Uma década antes, o pianista António Victorino de Almeida, tinha tido um imenso sucesso com uma série de programas de divulgação musical, gravados na capital austríaca, intitulados "Histórias da Música". Eram charlas de meia hora em torno de temas, de compositores e de intérpretes, em especial de música clássica. Nada de mais neutral, de mais apolítico.
Na conversa com a direção da TPA, que claramente ansiava por melhorar a sua oferta televisiva, que apresentava muito escassos programas interessantes, nas suas poucas horas de emissão, ele propôs a cedência daqueles episódios, sem o menor encargo. Antes de partir de Lisboa, Pinto da França tinha garantido essa disponibilidade por parte da RTP.
Para alguma surpresa nossa, os angolanos, tempos depois, informaram que, a título excecional, aceitavam divulgar essa série de natureza musical. Era uma interessante quebra do "bloqueio" às coisas vindas da antiga "potência colonial". Para nós, era uma verdadeira "lança em África". A diplomacia ensina-nos o valor da política de pequenos passos. E lá chegaram de Lisboa as cassetes com os programas, que fui levar à direção da TPA.
O programa de António Victorino de Almeida, que já tinha tido uma grande aceitação em Portugal, pela excecional capacidade de divulgador do pianista e pela originalidade da sua realização, para os padrões da época, criou um ainda maior entusiasmo em Angola, em face da evidente pobreza que era então a programação da TPA, muito baseada nas ofertas dos países de Leste. Muita gente, entre os nossos amigos angolanos, nos felicitou e agradeceu pela nossa iniciativa. Com inteira razão, António Pinto da França estava deliciado pela excelente ideia que tivera.
Durante meses, o êxito do programa foi em crescendo. Até um dia.
Um dia, um desses programas era sobre um tema muito particular: o hino nacional português. Cá em casa, existe uma lembrança muito viva dessa ocasião. À medida que o programa ia decorrendo, comecei a perceber que muito dificilmente, num ambiente tão crispado e lusofóbico como o que então atravessava os meios oficiais angolanos, aquilo não iria ser uma grande "bronca".
António Victorino de Almeida fazia nesse programa uma apologia carinhosa do nosso hino, explicando e contextualizando o seu caráter gongórico e "bélico", apelando a que o olhássemos como um fator de união, tal como fazíamos com a nossa bandeira, gostássemos ou não dela. E, inserido nesse tempo do início dos anos 70, em que em Portugal só havia uma televisão, que era vista por uma imensidão de gente, a certa altura, ele dizia algo como isto: "Vá à sua janela para a rua, abra-a e cante o nosso hino, cante "A Portuguesa". Pode ser que o seu vizinho, na casa em frente, faça o mesmo. E teria imensa graça que, na sua rua, você, ele e outras pessoas cantassem agora o hino do nosso país, de Portugal".
Recordo que isto se passava numa Angola independente há apenas oito anos, atravessando uma guerra civil, com o antigo "colono" a ser diabolizado, todos os dias, na propaganda oficial e oficiosa.
Nesse instante, temi que esse programa da série de Vitorino de Almeida viesse a ser o último na televisão de Angola. E não me enganei.
Dias depois, todas as cassetes foram discretamente devolvidas pela TPA à embaixada, com um cartão de cumprimentos. Encaminhámo-las por mala diplomática para Lisboa, para serem entregues à RTP.
Não faço ideia do que se terá passado no seio da televisão angolana, na sua relação com o zeloso e radical aparelho político da época. Mas não deve ter sido coisa fácil.
Tempos melhores acabaram por vir nas nossas relações com Angola.
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