No interior da velha casa que a imagem mostra, numa parede, havia um grande painel em que o artífice, descuidado, tinha trocado dois azulejos de uma nuvem, oferecendo à obra um não deliberado sentido de transgressão estética. Era o restaurante "Painel de Alcântara".
Na Lisboa dos anos 80, com o Bairro Alto a borbulhar de novidades ousadas e de gente fardada de preto no "Frágil", o "Painel de Alcântara" entrou na boa moda verdadeiramente "alternativa", isto é, passou a ser popular, em zona orgulhosamente não "trendy", entre gente que gostava, muito simplesmente, de comer bem.
Creio que terá sido em 1985, chegado de Luanda, que comecei a frequentar o "Painel", a "walking distance" das Necessidades. Tinha aberto há pouco. Com o também recém-criado "Poleiro", na rua de Entrecampos, para os jantares, o "Painel" passou a ser uma "cantina" segura em que eu ancorava com regularidade os meus almoços.
O "Painel" era propriedade do Cardoso, Adelino de seu nome. Era namorado da Zezinha, uma cara bonita e uma mulher muito gentil, que estava ao balcão, do lado esquerdo de quem entrava naquela casa pequena e esconsa, situada no dédalo operário de Alcântara. Seco de carnes, agitado no gesto, um pouco brusco para quem o não conhecesse bem, mas muito educado na atitude para com os clientes, o Cardoso era um mouro de trabalho, que ia às 5 da manhã ao mercado sacar, para nós, os melhores produtos.
O "Painel" tinha então o louro Zé na cozinha, a fazer um trabalho notável. Um dia, o Cardoso quis falar connosco, um grupo de "habitués" do MNE: o Zé tinha sido mandado incorporar no serviço militar. Podia lá ser! A guerra já lá ia há muito! Alguém teve então a ideia genial de convidar para almoçar no "Painel" uma alta figura do ministério da Defesa. No final, perguntámos-lhe que apreciação fazia da refeição. Estava deslumbrado! Esmerei-me na réplica, de que tinha sido encarregado: ainda bem que tinha tido oportunidade de testar a maestria culinária do Zé. É que ele iria sair da tarefa dentro de poucas semanas, para ir compulsivamente "de verde" para um qualquer quartel qualquer. Não era uma pena? O homem concordou comigo, connosco, que entrámos em coro. E, por artes e manhas que já não são da minha conta, o Zé lá se livrou ou adiou a convocatória, ficando entre os tachos do Cardoso, para nosso sossego digestivo. Não por muito tempo, diga-se, porque as leis do mercado funcionaram e o rapaz zarparia, meses mais tarde, para outras paragens, imagino que mais rentáveis.
E assim o Cardoso teve de assumir ele próprio a cozinha. Verdade seja, a qualidade do "Painel" manteve-se elevada. O cardápio era simples, tradicional: abriam o queijo e o presunto, com bom o vinho da casa, seguia-se uma lista farta, as pataniscas com o insuperável arroz de feijão a dominar, o excelente cabrito assado, o cozido das 4ªs e as favas guisadas com entrecosto, capazes de humilhar as moçoilas de Tormes.
Um dia, o "Painel" alargou-se à casa ao lado. Entretanto, a Zezinha foi-se pela sua vida, o Cardoso casou algures, teve filhos, chamou para junto de si alguns irmãos, chegou a haver por ali noites com fados. Mas ele soube manter incólume, por bastantes anos, o nome e a boa fama do "Painel", graças ao seu imenso trabalho, à grande qualidade da sua comida e ao amável serviço.
A vida do Adelino Cardoso terá entretanto dado algumas voltas. O "Painel" fechou e o Cardoso, ao que um dia viémos a saber com muita pena, morreu ainda bem jovem. Recordarei para sempre a sua simpatia e atenção. O meu amigo Cardoso foi um senhor da restauração lisboeta, um homem bom e um excelente profissional.
Há horas, nesta Lisboa gelada, passei por lá e fotografei o que resta daquilo que foi o magnífico "Painel de Alcântara".
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