A partir de agora, por dois anos e meio, com possível e provável recondução até 2029, irá coordenar o funcionamento de uma instituição que, ainda nos anos 70, havia sido criada como uma instância meramente política, não decisória e de discussão informal, por iniciativa de Valéry Giscard d'Estaing e de Helmut Schmidt, ao tempo que chefiavam os seus países.
Os posteriores tratados, que densificaram politicamente o projeto, reconhecendo o mérito de fazer subir a decisão ao nível mais elevado dos governos, vieram a dar músculo político e institucional aos Conselhos Europeus.
Note-se que, por muito tempo, desde o início das Comunidades Europeias, competiu aos ministros dos Negócios Estrangeiros a coordenação da ação do Conselho, coadjuvando nessa qualidade os chefes dos governos, durante os Conselhos Europeus.
Embora curiosamente se fale pouco disto, vale a pena referir que o Tratado de Lisboa afastou discretamente os chefes da diplomacia dos Conselhos Europeus, onde os chefes do governo hoje tomam assento sozinhos. Não foi coisa que muitos ministros dos Negócios Estrangeiros tivessem achado muito simpático...
O Tratado de Lisboa, em 2007, criou também a figura de um presidente permanente do Conselho Europeu, eleito pelos chefes de Estado e governo (e só por estes, não estando a sua escolha sujeita ao escrutínio do Parlamento Europeu), destinada a substituir as anteriores chefias semestrais, exercidas pelos líderes dos países que tinham a seu cargo as presidências rotativas.
A ideia foi tentar garantir uma continuidade nessa liderança, criando uma espécie de entidade coordenadora da agenda do Conselho, com um poder de representação internacional dos seus pares, mas, igualmente, com uma alargada liberdade de iniciativa na propositura dessa mesma agenda.
O presidente do Conselho Europeu, na atividade de representação externa, deve atuar em articulação com a chefia da Comissão Europeia e, também, com a figura do Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança - uma entidade híbrida, que reporta ao Conselho mas está inserida na Comissão.
O antigo primeiro-ministro português é a quarta personalidade a ocupar um cargo que vive associado à ideia de que há uma espécie de bicefalia no topo da União Europeia: o presidente do Conselho Europeu e o presidente da Comissão Europeia. Pode dizer-se que ainda há uma terceira figura nesse âmbito, o presidente do Parlamento Europeu, embora só formalmente ao nível das outras duas.
Teoricamente, as duas funções de topo têm perfis próprios e distintos. Na realidade, embora institucionalmente não haja áreas cinzentas, a prática revelou algum potencial de conflito político entre ambas as entidades. Isso foi notório durante os últimos cinco anos, em que a chefia da Comissão Europeia foi exercida por Ursula von der Layen.
Impulsionada pelo seu papel na crise da Covid, pelo lançamento dos programas financeiros de recuperação económica e pela criação de uma resposta à guerra na Ucrânia, von der Leyen terá ido bastante para além dos poderes que os tratados lhe atribuíam em termos políticos. Basta lembrar o seu criticado voluntarismo em face das ambições europeias da Ucrânia, antecipando abusivamente as decisões do Conselho, ou as inusitadas declarações que proferiu em Israel, sem a menor coordenação com o Conselho Europeu.
Tendo, no outro lado da bicefalia de representação europeia, a figura pouco saliente de Charles Michel, como presidente agora cessante do Conselho Europeu, a comissária alemã como que levou a cabo uma espécie de “golpe de Estado” institucional, assumindo, aos olhos exteriores, a face decisória da União. Para isso também terá contribuído a fragilidade conjuntural do “eixo franco-alemão”, que se auto-excluiu do seu tradicional papel de motor europeu. Ou talvez a nacionalidade de von der Leyen não tenha sido alheia ao poder que conseguiu concentrar...
E agora, António Costa?
Estará o novo presidente do Conselho Europeu interessado em comprar uma guerra de chefias com von der Layen, para recuperar o estatuto perdido? Se acaso estivesse, será que encontraria apoio no Conselho para poder assumir tal atitude? As suas hipóteses de vencer essa disputa seriam superiores às vantagens que eventualmente retirará de fazer um discreto pacto de natureza funcional com a poderosa alemã, que agora dispõe de um colégio muito mais sob o seu controle e, a nível do Conselho, da grande simpatia de muitos países do Leste, graças às concessões feitas no desenho da Comissão?
O novo presidente do Conselho tem uma sólida história europeia. Foi vice-presidente do Parlamento europeu, representou Portugal em conselhos de ministros em Bruxelas e, o que é mais relevante, teve uma muito longa e prestigiada presença em Conselhos Europeus. É, além disso, um europeísta convicto, com sobejas provas dadas.
António Costa terá um tempo nada fácil à sua frente. Vai ser rigorosamente escrutinado no tocante à questão ucraniana. As suas pretéritas declarações de alguma prudência, no tocante às ambições europeias e euro-atlânticas da Ucrânia, já lhe tinham custado críticas, que chegaram a toldar o seu processo de escolha para o lugar. A ida a Kiev, horas depois da posse, mostra que Costa já percebeu que, mesmo que quisesse, não poderia rumar contra o vento dominante.
E isso leva-me a uma ideia que me parece evidente: no futuro, não devemos confundir António Costa com António Costa.
O primeiro foi um chefe de governo português que, com uma leitura sensata dos equilíbrios e objetivos da União, soube definir, em nome de Portugal, durante oito anos, uma certa perspetiva da evolução possível e desejável da Europa que aí está. O outro passa agora a ser o representante do “mainstream” prevalecente no seio do Conselho Europeu, que é feito de consensos acomodadores de agendas estratégicas de oportunidade, de interesses e de poder. Só por milagre o primeiro António Costa virá a coincidir, em absoluto com o segundo.
Por isso, não é garantido que quem, por cá, apreciou o António Costa líder português venha, necessariamente, a sentir-se confortável com aquilo que o António Costa que agora representa o Conselho Europeu virá a titular no futuro. À bon entendeur...
(Artigo hoje publicado no site da CNN Portugal)
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