sábado, dezembro 14, 2024

A tosse do primeiro violino


Acontece-nos a todos: a tosse durante os concertos. É histórica, vem nos livros, está nos filmes. Aumenta sempre na "rentrée", diminui pelo final da "saison". Como se fosse uma maldição, sendo que é apenas a chegada do outono, das constipações, das gripes, dos "achaques". Às vezes, é breve, o mais das ocasiões repete-se, quase sempre quando menos desejamos. E, como a estatística prova, tende a emergir nos pesados instantes de efémero silêncio. Pode começar por um pigarro, mas acaba em regra por ser aquela infernal comichão na garganta que regressa momentos mais tarde, aumentando sempre na razão direta do nosso embaraço. Às vezes, conseguimos que seja uma coisa quase solitária, discreta, atenuada pelo lenço. Outras vezes, sai cava, rugosa, brutal, com os vizinhos a olharem-nos de lado, temerosos de covid ou de coisa pior. Disfarçamos, mas, por muito que o tentemos e mesmo que tal não seja verdade, ficamos com a sensação de que nos convertemos no centro das atenções. A tosse estraga-nos sempre a ocasião, muitas vezes apenas porque tememos que arruine a dos outros. Há quem leve pastilhas, rebuçados do doutor Bayard ou paliativos parecidos. Há quem desista de ir a um espetáculo por saber que ali será um embaraço insuportável para si próprio Há, finalmente, tenho-os visto e ouvido!, quem tussa livremente, sem cuidado, de forma javarda, aspergindo o ambiente, estando-se nas tintas para os outros ou para o que possam pensar de si. Há um pouco de tudo, nesse mundo rouco das tosses.

Ontem, na Gulbenkian, houve, por uma vez, um momento libertador. Estava-se no final do primeiro andamento da 9ª de Mahler. Era o breve interlúdio entre o cair de braços do maestro nórdico e o erguer da sua batuta para o prosseguimento do concerto. Com fulgor, a tosse surgiu de uma origem inesperada: da boca do primeiro violino! Foi então que, um pouco por todo o Grande Auditório, na sintonia de uma improvável orquestra, elas ecoaram, livres, num improvisado coro: as tosses. Foram muitas, oriundas de várias filas, em diversos tons, umas contidas, outras libertadas pelo estímulo, todas nervosas por natureza, ajudadas pela qualificada fonte inspiradora que tinha dado o mote. Foi uma sinfonia irregular, de autor coletivo anónimo, em trinta escassos segundos, em estreia mundial, que chegou a provocar uma discreta risota em algumas zonas da audiência. Por uma rara vez, o palco deu o tom a uma plateia que ali se soltou do acosso irritante das gargantas. Foi um belo momento de harmonia.

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