Um dia, sendo embaixador no Brasil, recebi do governador do Estado do Amapá, Waldir Goes, um convite para estar presente numa solenidade em que seria feita uma homenagem aos fundadores da cidade de Mazagão Velho.
À época, 2006, tinha uma ideia muito vaga da história da localidade. Mazagão Velho fora criada, em 1775, para apoiar a fortaleza de São José de Macapá, na defesa do norte do Pará. O nome advinha do facto de ter sido fundada pelos antigos ocupantes da fortaleza de Mazagão (atual El Jadida), em Marrocos, a última que os portugueses haviam sido forçados a abandonar, já em 1769, dentre as várias que, desde o século XVI, haviam sido implantadas na costa marroquina.
É impressionante pensar, nos dias de hoje, como o poder político em Lisboa tomou a decisão de enviar, recém-saído da costa africana, depois de uma breve passagem pela Europa, um contingente mais de 300 famílias, mistas de portugueses e familiares marroquinos, para aquele remoto território, na fronteira norte do Brasil.
Olhando em perspetiva, em termos de resultados práticos, somos levados a concluir que essa terá sido uma decisão que acabou por contribuir para uma eficaz proteção dessa entrada do Amazonas, com vista à preservação da soberania setentrional do que é atualmente o Brasil.
É no Amapá, para quem não saiba, que o Brasil tem fronteira com ... a França! De facto, do outro lado do rio Amazonas, está a Guiana Francesa. É, no plano político-administrativo, um Estado brasileiro relativamente recente, fruto de uma divisão do Estado do Pará, ocorrida em 1943.
A data do evento era-me, contudo, bastante inconveniente: tratava-se do dia seguinte às eleições presidenciais em Portugal, a cujo encerramento da votação eu queria estar presente na capital federal. Isso obrigar-me-ia a sair de Brasília bastante tarde e chegar ao Amapá já bem dentro da madrugada, naqueles aviões noturnos que a insuperável imaginação brasileira crismou de "corujões", porque andam de noite, com preços mais baratos, que vão pousando, como se fosse um autocarro, por vários aeroportos, ao longo de milhares de quilómetros de território, o que transformava a viagem numa longuíssima jornada.
Foi a amável e reiterada pressão telefónica do governador Waldir Goes que me convenceu a ir. Cheguei ao aeroporto de Macapá, capital do Amapá, depois das duas da manhã, acompanhado por um diplomata marroquino, conselheiro cultural da sua embaixada. Esperava-nos uma simpática receção e, para nossa surpresa, aguardáva-nos uma ceia, no hotel, com convidados, tudo feito sem grandes pressas, com imensa cordialidade. No final, foi-nos dito que, às sete horas da manhã (!), passariam a buscar-nos... Se, depois do lauto repasto, acaso dormi uma hora, sob um inesquecível fundo musical, chegado das ruas de Macapá, terá sido já muito!
Logo de manhã, fomos levados do hotel ao porto, de onde embarcámos com destino a Mazagão Velho. A viagem acabou por ser problemática: a meio do rio, o barco avariou. Foi preciso mandar vir uma nova embarcação. O governador Waldir Goes mostrava uma serena fúria com o incidente, que perturbava o cerimonial previsto. Mas tudo se resolveu e a expedição continuou. Já perto do nosso destino, mudámo-nos para uma piroga, com remadores, em que havia músicos/cantores, com tambores e violas, que entoavam modinhas antigas, da tradição luso-mourisca do século XVIII, que viémos a saber ser a imagem de marca identitária da localidade. Uma experiência inesquecível!
Quer eu quer o diplomata marroquino estávamos comovidos. E mais ficámos ao aproximar-nos de Mazagão Velho, ao constatar que o que parecia ser toda população da cidade nos aguardava, na margem do braço de rio, chefiada pelo prefeito José Carlos "Marmitão", nome que condizia, à justa, com a dimensão da amável figura. Era enquadrada por garbosos cavaleiros, vestidos com coloridos trajes, que se pretendiam representativos da época remota de celebrávamos, das lutas entre os cristãos e os muçulmanos.
Dali saímos diretamente para o evento, pontuado por diversos momentos religiosos, que teria como ponto alto a inauguração de um memorial, onde ficaram depositados os restos mortais dos portugueses e das suas famílias marroquinas, que haviam sido descobertos em escavações recentes. Sentia-se um ambiente, ao mesmo tempo, de emoção e júbilo. Mazagão Velho tinha ali o seu momento de consagração histórica e eu senti o imenso privilégio que era poder representar Portugal naquela ocasião.
O calor do doa era imenso. Lembro-me de, na longa cerimónia, ter proferido, do palanque, à frente de uma multidão a perder de vista, um emocionado discurso, com os olhos a arder, pelo sal que vinha do suor que me caía da testa.
Seguir-se-ia um lauto almoço, no seio de uma multidão entusiasmada com o relevo que assim era dado à sua terra.
Hoje, sabendo o que sei, ficaria arrependido para toda a vida se acaso não tivesse estado, nesse dia, ao Amapá.
No regresso, bem mais longo, por terra a Macapá, tinha um pedido a fazer: queria visitar o Zerão. E foi feita a minha vontade. O que é o Zerão? É o estádio de futebol perto da capital do Amapá, cuja linha divisória, a meio, é ... a linha do equador. Tirar uma fotografia, com um pé em cada hemisfério, era uma experiência que eu, por nada, queria perder! E não perdi.
No dia seguinte, com o governador Waldir Goes, fui visitar a fantástica fortaleza de São José de Macapá, construída no tempo colonial português, um marco de soberania que, felizmente, nunca teve de disparar um único tiro, durante toda a sua história - o que é a glória máxima da eficácia da dissuasão.
Prometi então - e vim a cumprir, meses mais tarde - enviar o conselheiro cultural português no Brasil, o pianista Adriano Jordão, para fazer um concerto naquele belíssimo espaço, convertido em espaço cultural. Não foi fácil concretizar a iniciativa: os pianos não abundavam no Amapá! Mas essas são contas de outro rosário, que o Adriano, se quiser, contará.
Lembrei-me disto, há pouco, por uma razão triste, ao constatar, na televisão brasileira, que o Amapá é um dos Estados brasileiros onde a situação da pandemia é hoje bem trágica.