Para parte da geração portuguesa que teve a infância ou juventude nos anos 50 do século passado (por alguma razão, custa-me sempre escrever a expressão "do século passado"), as aventuras de "Blake et Mortimer", da autoria de Edgar P. Jacobs, são, ainda hoje, uma recordação muito viva.
Figura importante da excelente escola belga de banda desenhada, de que Hergé é, sem a menor dúvida, o maior expoente, Jacobs abria-nos o mundo através de álbuns de uma fantástica qualidade e fruto de cuidado estudo, que agarravam a nossa imaginação e nos transportavam para cenários muito realistas, às vezes quase plausíveis.
Quando vivi em Londres, não resisti a reproduzir a pé os percursos do "Marca Amarela" e do Dr. Septimus. Ao entrar, um dia, no museu do Cairo, no Egito, a figura do Professor Grossgrabenstein (que só pode ter sido inspirada, "avant la lettre", no meu amigo Caetano da Cunha Reis) veio-me logo à memória - este último saído desses dois álbuns sem par que constituem "O Mistério da Grande Pirâmide". Até os Açores passaram pelas histórias de Jacobs, no "Enigma da Atlântida".
A trama jacobiana centra-se sempre numa dupla de amigos, um militar e um cientista, envolvidos na luta eterna, pelo lado do "bem", contra um inimigo permanente, Olrik, que encarna os vários males e que tem uma capacidade de sobrevivência que acaba por nos causar mesmo alguma admiração. As mulheres, confirmando uma misoginia muito própria de um certo período da banda desenhada europeia (mas não, curiosamente, dos "comics" americanos, sendo embora da mesma época), têm sempre um papel muito escasso nestas tramas, surgindo apenas com algum relevo nos álbuns desenhados pelos seguidores de Jacobs, já após a sua morte, em 1987.
A que propósito vem esta evocação? É que, há dias, dei conta de que tinha sido publicada uma “biografia” dessa “infamous” figura que é Olrik. E quem é que a escreve? O antigo ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Hubert Védrine e o seu filho Laurent, cineasta.
A Amazon fez-me hoje chegar o livro, num pacote de “takeaway” livresco que, às vezes, me dou ao luxo de consumir, nestes tempos de confinamento.
Hubert Védrine foi ministro dos Negócios Estrangeiros de França, durante o governo Jospin. Antes, havia sido íntimo colaborador de François Mitterrand, em torno de cuja figura fez um livro que considero essencial para melhor se perceber o antigo presidente - "Les Mondes de François Mitterrand".
É um homem sereno, que pensa a política externa com grande cuidado, sublinhando as vantagens de olhar os tempos em perspetiva, evitando juízos radicais ou moralistas, mas não caindo nunca num relativismo de "realpolitik".
Conheci-o bem quando, ao tempo em que ele era homólogo de Jaime Gama, nos cruzámos em dezenas de horas de reuniões, nos idos de 90, e, em especial, no processo de sucessão das presidências portuguesa e francesa, em 2000.
Foram tempos complexos, em que nem sempre estivemos de acordo, antes pelo contrário. Mas guardámos uma excelente relação pessoal, que prolongámos em encontros em Nova Iorque e, mais tarde, por várias vezes, em Paris. Falámos de muitas coisas, mas nunca calhou falarmos de Olrik...
Aproveito para contar um episódio passado com Védrine, há 21 anos, quase dia por dia, em Paris.
Estávamos em finais de janeiro de 2000. Como secretário de Estado dos Assuntos Europeus, eu tinha ido a Paris, a convite do meu contraparte Pierre Moscovici, ministro-delegado para os Assuntos Europeus. Reuni com ele no Quai d’Orsay, onde almoçámos. Durante a refeição, chegou a indicação de que Hubert Védrine queria ver-me, no final da refeição.
Notei que Moscovici ficou intrigado. Védrine era o seu chefe, mas não era segredo para ninguém que as relações entre ambos eram muito difíceis. Imagino que, no momento, lhe tivesse passado pela cabeça que o ministro, que ele sabia que me conhecia pessoalmente muito bem, quisesse dizer-me algo à sua revelia, em particular. Porque sempre gostei de jogar com as cartas em cima da mesa, Lancei-lhe, de chofre: “Não queres vir comigo?” Hesitou, mas foi.
Quando entrámos no gabinete de Védrine, ainda nos não tínhamos sentado, este, sorrindo, disse-me: “Sabes que este é um momento quase histórico?”. Não percebi, mas ele explicou, com o esgar “mitterrandiano” que tinha: “Porque esta é uma das muito raras ocasiões em que o Pierre aqui veio, desde que ambos estamos no governo.” Moscovici riu, mas o riso foi bastante amarelo.