quinta-feira, abril 22, 2021

Voltar


A chuva, que caiu quase de manhã à noite, tinha tornado muito pesado e longo o dia de viagem de ontem, de norte a sul. Chegar a Lisboa foi quase uma bênção. Desmalado e arquivado o carro, abri a caixa do correio, atulhada de coisas, depois de mais de uma semana de ausência. E dei então com o envelope. Sentei-me a ver snooker sem som na televisão - desde há muito funciona, para o meu descanso psicológico, como imagino que o Baby TV deva ajudar os consumidores a que se destina - e comecei a ler o “Voltar”, o novo livro de poemas que o Luís Filipe Castro Mendes nos tinha enviado, com uma amiga dedicatória. Fez-me muito bem, ajudou-me a acordar o fim de um dia, em que estava já entorpecido, o poder saltitar por aqueles versos, escritos a pretexto de muitos lugares e com o amor como frequente mote. Li mesmo alguns dos textos em voz alta, como aprendi a fazer com o meu pai.

Não me considero um leitor perspicaz para pescar sentimentos alheios (desde logo, nem sequer os meus próprios) mas, ousando, por uma vez, ir por aí, diria que a poesia mais recente do Luís me surge atravessada (mas isto, repito, vale o que vale!) por uma suave e assumida nostalgia, às vezes com um toque, aqui ou ali, de algum bem esboçado desencanto, a meu ver mais buscado (mas nada rebuscado) do que real. Trata-se de poesia, não esqueçamos! Mas ela é oriunda de quem, estando muito bem reconciliado com a vida, cuida bastante em revisitar as suas geografias afetivas - as humanas e as propriamente geográficas, estas sempre muito ligadas à sua memória cultural. Logo ele, que teve a sorte de ter muita sorte e de saber procurá-la e vivê-la tão bem! Às vezes, contudo, só numa segunda leitura se me torna evidente (cada um lê o que quer ler, não é?) que a poesia do Luís tem muito de uma radiografia, contida e muito serena, da sua óbvia felicidade pessoal. E isso resulta muito bom para o leitor. Pelo menos, resulta para mim.

Fica aqui um “amuse bouche”, com os cumprimentos do chefe poeta, este “Ao lembrar”:

Cada cidade que recordamos
trai a nossa memória dela, ao ser outra
a cada dia.
Só nos são fiéis as cidades desconhecidas
com que não chegámos a sonhar
.”

1 comentário:

albertino ferreira disse...

Penso que não andarão muito longe "As Cidades Invisíveis" do Italo Calvino.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...