Hoje, pareceu-me vê-lo, numa rua de Lisboa. Ia num Mercedes. Mas o cruzar rápido dos carros não me deu tempo suficiente para ter essa certeza.
Foi há dois anos, numa determinada cidade portuguesa. Íamos a caminhar por um passeio, com um casal brasileiro, na busca de um local, quando, ao nosso lado, caminhando pela rua, senti que alguém começava a acompanhar-nos. De súbito, um pouco atrás de mim, ouço dizer para a minha mulher: “O seu marido já não me conhece! Mas foram bons tempos!”.
Voltei-me e dei de frente com um homem de estatura pequena, calças vermelhas, camisola de gola alta preta, debaixo de um blusão de boa marca. O cabelo não tinha uma branca, o que só não era extraordinário para alguém com uns bons quatro ou cinco anos mais do que eu porque o trabalho de tintas do barbeiro tinha sido excelente.
A cara dele dizia-me qualquer coisa, mas o nome não me saltava. Se a minha memória o não disse, disse-o ele. Era um velho colega de faculdade, com quem nunca tinha tido uma relação próxima, mas que, dito por ele o seu nome, lembrava desses tempos. Fazia parte daquelas figuras que, nas turmas universitárias, se isolavam por serem um pouco mais velhas, acamaradando preferencialmente com colegas da sua faixa etária.
Cumprimentei-o com genuína simpatia, porque era isso que me merecia um colega que deixara de ver, sei lá!, talvez em 1971 ou 72.
Para encher o encontro fortuito, para dar conteúdo àqueles raros instantes, falei-lhe de nomes de gente desse tempo, que eu ainda costumava encontrar. Lembrava-se de um ou dois. Sabia bem o que eu tinha feito na vida, vira o meu nome, ao longo dos anos, aqui ou ali e, como acontece nestas ocasiões, a conversa começou rapidamente a esvaziar-se.
Lembrei-me de perguntar-lhe: “E tu? O que é que fazes? Ou o que é que fizeste, porque já deves estar reformado”.
Abriu-se-lhe então um sorriso e saiu-se com esta: “Eu acabei aquilo lá em baixo (era o curso), vim para cá e nunca fiz nada!”.
Curioso, inquiri: “Mas nunca te empregaste? Nunca usaste o curso?”
Ele fez uma pausa e, sempre de sorriso aberto, esclareceu: “Estou cheio dele!”
Por um segundo, não percebi o que quis dizer e, pela minha cara, ele deve ter logo intuído isso. Pelo que detalhou: “De bago, pá, de massa! Vivo à grande! Sempre vivi, nunca fiz nada, não precisava”.
Eu estava aturdido com a deriva da conversa. Os meus companheiros de jornada, a um metro ou dois, esperando por mim, iam ouvindo pedaços do diálogo. Saiu-me então um “Ainda bem, pá!, sorte a tua!”
Mas ele não largava e quis detalhar melhor a ordem da alegada grandeza: “Lá na garagem, tenho um Maserati amarelo e um Mercedes (e citou umas letras e uns algarismos que, para mim, completamente ignorante em carros, não me diziam nada, mas que imaginei deviam ser o máximo). Terei dito: “Ah! Sim? Boa!”.
Já farto, rematei com um “Tive imenso gosto em ver-te, pá! Olha! E saúde para gozares tudo isso!” Não fiquei sem resposta: “Tenho! Ótima!”.
Guardei então a sensação de que, se tivesse deixado passar mais um minuto, se a minha mulher e o casal brasileiro não me começassem a dizer que tínhamos de ir andando, a conversa ia descambar, necessariamente, para “gajas”! E aí, tive alguma pena, confesso! Já agora, tinha sido uma dose completa!
Ele há cada cromo! Mas, como aquele, palavra! nunca tinha encontrado na vida!
(Dedico esta história à Eni e ao António Carlos Portugal, testemunhas presenciais daquela singular conversa. Vão-se lembrar, com toda a certeza!)
3 comentários:
Ainda bem que a conversa não descambou e pelos vistos nem devia ter passado para além do Bom dia, Boa tarde ou Boa noite.
Será que ele declara a dita riqueza no IRS ou só o ordenado mínimo? Investigue-se!:)
Olá, Francisco
Lamento que o nosso encontro tenha servido para vires aqui achincalhar a minha simpatia e franqueza, quem havia de dizer?
Se soubesse nunca te falaria dos carros que tenho, e ainda bem que não referi o iate.
Francamente...
Ao ler este episódio delicioso lembrei-me logo do tema "La Dolce Vita" dos Jafumega.
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