“Senhor professor! Senhor professor! Telefonou o general Kaúlza a dizer que estão tropas nas ruas. Diz que, desta vez, não conseguiu impedir o golpe”.
À dona Maria, com os olhos esbugalhados, parecia que ia dar qualquer coisa má. O roupão, até aos pés, dava-lhe um ar de espantalho, de assombração, com a luz tépida, vinda do corredor, a surgir-lhe por detrás, quebrando a escuridão do quarto de Salazar.
Silencioso, Salazar permanecia, pelo menos aparentemente, calmo. Levantou-se, pijama às riscas e abriu a cortina da janela que, do quarto, dava para a calçada da Estrela. Não viu qualquer movimento.
Pôs os chinelos, saiu para a sala ao lado e ligou para casa do Barbieri Cardoso. É que o Silva Pais, chefe deste, nunca sabia nada de nada. A mulher do número dois da Pide respondeu que ele estava em Paris, numa visita aos colegas de lá. Sereno, Salazar agradeceu. Parou a olhar o teto, por um instante. Seria desta?
Lembrava-se do que fora a agitação pelo país quando ele caíra, lá no forte, já há quase seis anos. Na Cruz Vermelha, depois de semanas de dúvidas, tinham-no dado quase como morto. Mas as as contas tinham saído furadas aos que já o pensavam ir ver pelas costas. Ao que apurara, Marcelo Caetano até tinha andado a consultar gente para um governo. Muito se tinha rido! No fim, foi ele quem riu melhor! Mas Tomás portara-se bem, fora firme e tudo voltara à normalidade.
O telefone que acabara de utilizar tocava agora. Era Paulo Rodrigues, um seu homem de confiança. “Senhor presidente! Algumas unidades militares atacaram vários pontos estratégicos! Há tropa por todo o lado! Tem de sair daí da residência! Podem ir prendê-lo!”
Salazar deu uma gargalhada nervosa: “Mas vou para onde? Fujo para Santa Comba?”. E logo inquiriu: “Mas quem é que manda nesse tal golpe? Não me diga que o Costa Gomes está outra vez envolvido? E o ministro da Defesa, o Bettencourt Rodrigues, por onde é que anda?”
Paulo Rodrigues sabia pouco. As informações eram escassas. Estava tudo ainda muito confuso. Apenas lhe constara, dias antes, mas não teria querido incomodá-lo, que o Venâncio Deslandes andava algo agitado, em contactos.
Salazar ficou atónito! Não era possível! O Venâncio, sempre tão mesureiro! O próprio chefe do Estado-Maior das tropas deixara-se seduzir pela hipótese de derrubar o regime? Mas porquê? Bem, já tudo era possível! Paulo Rodrigues ficou de inquirir algo mais e ligar de volta.
Mal a chamada terminara, logo o telefone voltou a tocar. Desta vez era o Silva Pais.
Salazar tinha cada vez menos paciência e confiança num homem que, sendo chefe da sua polícia, não conseguira evitar que a filha fosse viver para a Cuba de Fidel de Castro. Era uma suprema ironia!
“Diga lá, Silva Pais. O que é que você sabe?” O homem engrolou-se em desculpas. Falou que, de facto, havia rumores de que o general Deslandes tinha andado a fazer uns contactos, mas nada indicava que um movimento sedicioso estivesse iminente. Tinha pensado falar do assunto a Salazar numa conversa aprazada para a semana seguinte.
As últimas informações, disse Silva Pais, eram de que, pela rádio, estava a ser transmitida uma espécie de senha musical, que pusera várias unidades em movimento. Uma música que estava a dar de hora a hora. “O senhor presidente, se quiser, pode ligar agora o Rádio Clube, vão ser quase seis horas. Dizem que dá mesmo antes das notícias. Os revoltosos seguem aquilo, porque a música lhes transmite uma indicação”.
Uma música? Está tudo doido? Salazar estava mais do que irritado! O Rádio Clube?! Seria outra vez o Botelho Moniz? Não podia ser. A verdade é que ele era cunhado do Deslandes...
Ligou o Telefunken. Estava a dar uma marcha militar! Mau mestre!, pensou para si! Não era bom sinal.
E logo surgiu a voz do locutor: “Faltam cinco minutos para as seis da manhã. Convido agora os nossos ouvintes, pelo país inteiro, a ouvirem a canção “A vida toda”. Uma melodia interpretada pela bela voz de Carolina Deslandes”.
Pronto, era mesmo o Deslandes!
5 comentários:
Francisco Seixas da Costa, é um prodígio em textos de ficção...!
Pena é, que só o seja,para o que lhe convém...!!!!!
Muito bom!!!
Magnífico texto. Sr. Embaixador.
O Unknown deve ser masoquista: faz o que não “lhe convém”!
Não lhe conhecia essa veia. Mas fico à espera da próxima
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