terça-feira, abril 20, 2021

Nos 80 anos de Roberto Carlos



Foi em 2008. Ia numa longa viagem de trabalho pelo Ceará adentro, tendo ao meu lado uma senhora brasileira. Era uma mulher com responsabilidades na área da cultura, com sólida formação universitária. 

Muitas coisas vieram à conversa e, a certo ponto, surgiu o nome de Roberto Carlos, que ontem fez 80 anos. Perguntei-lhe como é que, depois de tantos anos de exposição pública, o cantor ainda era visto no país. A sua reação foi espontânea: "O rei? É o ídolo de todo o Brasil, adorado por todos! É o maior!".

Cometi o erro de não levar o comentário à letra e, um tanto brutalmente, disse-lhe o que pensava. 

Roberto Carlos fora um cantor muito popular em Portugal nos anos 60, com êxitos que, à época, muitos conhecíamos de cor, como "O Calhambeque" e coisas assim. Depois, ao que eu observara, a sua popularidade entre nós fora declinando progressivamente. A meu ver, isso ficava a dever-se ao facto de ele ter enveredado por um romantismo possidónio, quase "pimba" (terei dito "cafona"), num certo período com letras de cariz religioso, numa linha melódica repetitiva e, para o meu gosto, nada criativa, A tudo isto se somava uma imagem pública ridícula, típica de um canastrão irreconciliado com a idade, com um cabelo de arrepiar e trajes "retro", quase anos 70. Estranhava muito, por isso, ouvir expressada uma admiração pelo cantor, por parte de uma pessoa como ela. Lembro-me de não ter sido muito subtil...

A minha paciente interlocutora explicou-me então uma coisa que eu, apesar de estar no Brasil há vários anos, não entendera. Roberto Carlos estava "para além" das gerações, era uma figura mítica que unia todos os brasileiros, que tinha tido uma vida familiar trágica, com um comportamento que lhe grangeara um grande respeito público. Todos os anos - e acabou por ser a minha segunda grande surpresa - fazia pelo Natal um espetáculo que dava origem a um disco, o qual, por tradição, era uma das prendas dadas nessa época, por todo o Brasil.

"Mas... e aquela música? O que é que aquilo tem a ver com a fantástica riqueza da vossa música, de Tom Jobim a Chico Buarque, de Milton Nascimento a Gilberto Gil, de Ivan Lins a Caetano?" A minha acompanhante, com serena pedagogia, explicou-me que essa música, que eu ridicularizava, continuava a ser apreciada por muitos milhões de brasileiros, coexistindo, sem dificuldade, com as outras sonoridades que eu tanto apreciava, como era o caso da música sertaneja, que eu lhe gabara muito. O romantismo de Roberto Carlos era parte da alma brasileira e a religiosidade, que marcara fases da sua vida, era bem entendida e respeitada por todos. "No Brasil, há espaço para toda a música e nela haverá sempre um lugar eterno para o nosso "rei", para Roberto Carlos". Embatuquei.

Com o tempo, fui testando a mesma questão com outros amigos brasileiros. Nem um só, dentre todos eles, deixou de concordar, no essencial, com a opinião da minha interlocutora do Ceará. Aprendi assim que, às vezes, devemos relativizar em público os nossos gostos e, em particular, temos de fazer um esforço maior para entender os dos outros. Por muito que, no íntimo, continuemos a pensar o mesmo, claro.

4 comentários:

Jaime Santos disse...

Eu confesso que admiro o respeito com que o Herman José trata os nossos cantores mais pimba, que convida amiúde, mesmo quando os satiriza nos seus quadros. Ele sabe que há um País para além dos gostos da capital e que os gostos desse País, assim como o trabalho dessas pessoas, merece a nossa consideração. Suspeito que isso também se deve à frequência com que desce a esse País profundo.

Talvez os brasileiros sejam menos elitistas do que nós, o que também quer dizer que serão menos provincianos (sem ofensa, Sr. Embaixador, até porque contra mim falo, eu também sempre abominei a música de Roberto Carlos).

Ferreira da Silva disse...

Senhor Embaixador,

Deixaria dois outros exemplos de Cantores que têm similitudes em termos de reconhecimento público: Tony Carreira e Júlio Iglesias.
Mesmo que possamos não gostar, ou não serem nossas prioridades sonoras, temos de reconhecer que as músicas, tecnicamente, são muito bem compostas. Por outro lado, os espetáculos ao vivo são extremamente bem produzidos e muitíssimo bem orquestrados.
Quanto às letras..... temos falado.
Por fim, diria que, e apesar de tudo, têm muito mérito, pelo que são credores de minha admiração.

septuagenário disse...

Houve um momento que certa geração portuguesa passou a detestar desde tony de matos e amália, até de venicio de morais a roberto carlos.

Passou a gostar apenas dum certo "samba de uma nota só"!

Não havia gostos para mais nada.

Até que aos poucos se vai esvanecendo...não para toda essa geração.

João Gobern disse...

Caríssimo Embaixador: Gostava de lhe dizer apenas que o meu processo de "anti" a apreciador de Roberto Carlos fica muito próximo do seu, mesmo sem Ceará à mistura. Aquilo que tenho andado a fazer esta semana na Antena 1 é reflexo disso mesmo, até porque me levou a descobrir histórias e a "contextualizar" a espantosa transversalidade do homem. Agora, depois de o ler, sinto-me ainda melhor acompanhado. Um forte abraço, João Gobern

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...