terça-feira, abril 06, 2021

O cromo do Maserati


Hoje, pareceu-me vê-lo, numa rua de Lisboa. Ia num Mercedes. Mas o cruzar rápido dos carros não me deu tempo suficiente para ter essa certeza. 

Foi há dois anos, numa determinada cidade portuguesa. Íamos a caminhar por um passeio, com um casal brasileiro, na busca de um local, quando, ao nosso lado, caminhando pela rua, senti que alguém começava a acompanhar-nos. De súbito, um pouco atrás de mim, ouço dizer para a minha mulher: “O seu marido já não me conhece! Mas foram bons tempos!”.

Voltei-me e dei de frente com um homem de estatura pequena, calças vermelhas, camisola de gola alta preta, debaixo de um blusão de boa marca. O cabelo não tinha uma branca, o que só não era extraordinário para alguém com uns bons quatro ou cinco anos mais do que eu porque o trabalho de tintas do barbeiro tinha sido excelente.

A cara dele dizia-me qualquer coisa, mas o nome não me saltava. Se a minha memória o não disse, disse-o ele. Era um velho colega de faculdade, com quem nunca tinha tido uma relação próxima, mas que, dito por ele o seu nome, lembrava desses tempos. Fazia parte daquelas figuras que, nas turmas universitárias, se isolavam por serem um pouco mais velhas, acamaradando preferencialmente com colegas da sua faixa etária.

Cumprimentei-o com genuína simpatia, porque era isso que me merecia um colega que deixara de ver, sei lá!, talvez em 1971 ou 72. 

Para encher o encontro fortuito, para dar conteúdo àqueles raros instantes, falei-lhe de nomes de gente desse tempo, que eu ainda costumava encontrar. Lembrava-se de um ou dois. Sabia bem o que eu tinha feito na vida, vira o meu nome, ao longo dos anos, aqui ou ali e, como acontece nestas ocasiões, a conversa começou rapidamente a esvaziar-se. 

Lembrei-me de perguntar-lhe: “E tu? O que é que fazes? Ou o que é que fizeste, porque já deves estar reformado”. 

Abriu-se-lhe então um sorriso e saiu-se com esta: “Eu acabei aquilo lá em baixo (era o curso), vim para cá e nunca fiz nada!”. 

Curioso, inquiri: “Mas nunca te empregaste? Nunca usaste o curso?”

Ele fez uma pausa e, sempre de sorriso aberto, esclareceu: “Estou cheio dele!”

Por um segundo, não percebi o que quis dizer e, pela minha cara, ele deve ter logo intuído isso. Pelo que detalhou: “De bago, pá, de massa! Vivo à grande! Sempre vivi, nunca fiz nada, não precisava”.

Eu estava aturdido com a deriva da conversa. Os meus companheiros de jornada, a um metro ou dois, esperando por mim, iam ouvindo pedaços do diálogo. Saiu-me então um “Ainda bem, pá!, sorte a tua!”

Mas ele não largava e quis detalhar melhor a ordem da alegada grandeza: “Lá na garagem, tenho um Maserati amarelo e um Mercedes (e citou umas letras e uns algarismos que, para mim, completamente ignorante em carros, não me diziam nada, mas que imaginei deviam ser o máximo). Terei dito: “Ah! Sim? Boa!”. 

Já farto, rematei com um “Tive imenso gosto em ver-te, pá! Olha! E saúde para gozares tudo isso!” Não fiquei sem resposta: “Tenho! Ótima!”. 

Guardei então a sensação de que, se tivesse deixado passar mais um minuto, se a minha mulher e o casal brasileiro não me começassem a dizer que tínhamos de ir andando, a conversa ia descambar, necessariamente, para “gajas”! E aí, tive alguma pena, confesso! Já agora, tinha sido uma dose completa! 

Ele há cada cromo! Mas, como aquele, palavra! nunca tinha encontrado na vida!

(Dedico esta história à Eni e ao António Carlos Portugal, testemunhas presenciais daquela singular conversa. Vão-se lembrar, com toda a certeza!)

3 comentários:

Flor disse...

Ainda bem que a conversa não descambou e pelos vistos nem devia ter passado para além do Bom dia, Boa tarde ou Boa noite.

Será que ele declara a dita riqueza no IRS ou só o ordenado mínimo? Investigue-se!:)

João Pedro disse...

Olá, Francisco

Lamento que o nosso encontro tenha servido para vires aqui achincalhar a minha simpatia e franqueza, quem havia de dizer?

Se soubesse nunca te falaria dos carros que tenho, e ainda bem que não referi o iate.

Francamente...

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Ao ler este episódio delicioso lembrei-me logo do tema "La Dolce Vita" dos Jafumega.

Netanyahu

Tal como vários dos seus contrapartes já fizeram, seria interessante que Luís Montenegro anunciasse que, se Benjamin Netanyahu puser um pé e...