A quase seis meses do sufrágio, a luta política em torno das eleições presidenciais francesas segue já bastante animada.
À esquerda, Jean-Luc Mélenchon é o único a conseguir furar, ainda que ligeiramente, a barreira dos 10%, com a candidata socialista Anne Hidalgo a mostrar-se sem hipóteses de dar um salto significativo nas sondagens. A desesperada tentativa que fez para lançar uma espécie de “primárias à esquerda”, para escolher “quem estivesse em melhores condições para derrotar a direita”, ideia que envolvia Mélenchon, os Verdes e candidatos de outros setores, foi acolhida com total frieza por esses mesmos candidatos e lida por toda a gente como sintoma de total isolamento.
Mélenchon, um antigo secretário de Estado de Mitterrand (facto pouco conhecido) que tenta federar a “esquerda da esquerda” através da sua “France Insoumise”, é um candidato sem condições de ser eleito ou mesmo qualificar-se para a segunda volta. Isto acontece por muitas razões mas, muito em especial, pelo facto da esquerda, em geral, ser, nos dias de hoje, um setor político com um “appeal” conjunturalmente reduzido no cenário francês. Um dia poderá tentar perceber-se o que levou a este “desastre”, à revelia de uma tradição política de muitas décadas. O que, no entanto, não significa que não seja uma tendência reversível.
À direita, há duas surpresas.
No seu extremo, o surgimento de Éric Zemmour, um jornalista, prolífico comentador televisivo e escritor ultra-conservador, trouxe uma quebra sensível à força de Marine Le Pen, que, por muito tempo, se considerou, com razão, a federadora da extrema-direita e, nessa qualidade, a “challenger” natural de Emmanuel Macron. O presidente da República estaria, ao que se diz, bastante confortável com esse cenário. É que, em 2017, Le Pen havia dado clara mostra das suas limitações, no debate entre as duas voltas, e nada levava a supor que as coisas se tivessem alterado em termos que pudessem colocar em risco a reedição das pretensões de reeleição de Macron.
O surgimento de Zemmour veio alterar esse equilíbrio. Le Pen teve uma queda imensa nas sondagens, claramente em favor de Zemmour, que, nas primeiras semanas, chegou a equivalê-la na preferência potencial dos eleitores. O jornalista defende uma agenda anti-islâmica e de rejeição da presença dos estrangeiros, dizendo querer reconstituir uma França “para os franceses”, que entende estarem a ser privados do seu país por uma “invasão” islâmica que, a seu ver, tenderá, a prazo, a tomar conta da França (“le grand remplacement”). Com um discurso muito articulado, Zemmour é um razoável tribuno e um excelente debatedor, sendo que a sua sofisticação intelectual (no que se distingue imenso de Trump) o pode tornar mais ouvido em setores mais conservadores da direita tradicional. Em seu desfavor funcionará um excesso de agressividade verbal, alguma misoginia e um sensível recuo em temáticas de género, que o isolam de um eleitorado mais centrista. Tem contra ele muitos setores de imprensa, os quais, no entanto, lhe continuam a dar imenso palco. Num debate recente com o ministro da Economia, Bruno le Maire, Zemmour mostrou um manejo dos temas económicos que surpreendeu muitos observadores, que o consideravam limitado a uma agenda quase monotemática - assente na segurança e na identidade.
A segunda surpresa, também à direita, foi dada pela escolha de Valérie Pécresse, numa eleição “primária” entre os militantes da direita clássica. Embora a imagem de Pécresse fosse sólida e, ainda recentemente, tivesse sido reconduzida pelos eleitores à frente da região do Grande Paris, estava longe de ser dada como favorita na seleção do candidato do “Les Républicans” às presidenciais. Xavier Bertrand, também presidente de região e antigo ministro de Sarkozy era visto como a escolha mais provável. O antigo comissário e negociador do Brexit, várias vezes ministro, Michel Barnier, parecia oferecer uma “imagem de Estado”. E até Éric Ciotti, da ala direita do partido, com uma linguagem e propostas de grande radicalismo, “pescando” claramente nas águas de Le Pen e Zemmour, parecia surgir como mais qualificado. Seria, aliás, Ciotti quem iria passar a uma segunda volta com Pécresse, sendo aí derrotado. O facto de todos esses putativos candidatos terem já declarado apoiar Pécresse ajudá-la-á muito na mobilização das hostes comuns.
Pécresse, também ministra de Sarkozy, traz consigo um passado governamental sólido, competente, mas não muito espetacular. Ser mulher acabará por um fator importante, ter tido um percurso político sem falhas e sem “gaffes” redunda numa excelente qualificação. Contra ela funcionará um tom algo arrogante e um ar “social-urbano” a que os franceses chamam “bobo”. Mas Pécresse revela uma interessante determinação no discurso e revela ter ideias claras. Parece, ainda assim, “à esquerda” de François Fillon, o primeiro-ministro de Sarkozy que, em 2017, terá ficado atrás de Macron por virtude de trapaças nepotistas em que se havia envolvido. Pode assim dizer-se que Pécresse estará no “mainstream” do “Les Republicans”. Ela própria afirma que quer ser “um terço de Thatcher e dois terços de Merkel”.
A escolha de Valérie Pécresse é, assim, uma má notícia para Macron e para Zemmour.
Macron foi (e, a sê-lo de novo, assim será) eleito com muitos votos do eleitorado da direita clássica, que Pécresse agora passou a representar. E esta parece ter possibilidade de vir a deslocar muitos dos apoios que Fillon tinha perdido, na sua “débacle” ética, em 2017. E, claro, numa hipotética segunda volta Macron-Pécresse, a tarefa do presidente será mais difícil do que o seria com Le Pen, bem menos qualificada, em quem muitos eleitores da direita tradicional continuariam a não se rever e que todos recordariam ter sido “destroçada” no debate entre os dois turnos.
Mas também Zemmour, que contava com parte do eleitorado do “Les Républicans” para garantir apoios que pudessem ir para além da “direita popular” de Le Pen, terá agora um desgaste na sua margem de eleitorado potencial. Aliás, numa sondagem feita já depois do surgimento de Pécresse como candidata do “Les Républicans”, Zemmour recuou nas intenções de voto.
Porém, é ainda muito cedo, faltam alguns meses para as eleições e muita coisa pode ainda acontecer.
Macron, com a saída de cena de Merkel e com a titularidade da presidência francesa da União Europeia, que vai exercer no primeiro semestre de 2022, ganha visibilidade, passando a ter consigo um forte sopro de prestígio institucional. A sua vitória em maio de 2022 continua a ser o cenário mais provável. Depois de Sarkozy e Hollande não terem tido condições para renovar o quinquenato, isso significaria um retorno à viabilidade prática de recondução dos presidentes.