terça-feira, setembro 01, 2020

De verde


Foi vestido de verde que conheci o António Franco, que nos deixou há algumas semanas e que hoje vai ser evocado pela família. Ele também estava de verde. Foi em Mafra, na Escola Prática de Infantaria, na segunda incorporação de 1973.

Não estávamos sozinhos. Éramos umas centenas, creio que 900, todos vestidos do verde da farda, recém tirados à vida civil, por um período que não podíamos prever, mas que podia ir até mais de três anos, com guerra colonial em África pelo meio, para a esmagadora maioria daqueles que por ali estavam, nas lúgubres traseiras do convento que ainda não tinha obtido glória por via literária.

Éramos muito diversos. Havia por ali gente casada, com filhos, curso superior, vida organizada, alguns a aproximar-se dos 30 anos, ao lado de uns miúdos a quem a tropa tinha apanhado cedo, logo após a vintena. O António estava no grupo dos primeiros. Eu estava no meio da tabela etária, já empregado, prestes a casar.

Creio que foi um primo do António - engenheiro, Ribeiro, de seu nome, que perdi de vista desde então - quem nos apresentou. Despachada a “tropa”, saídos com alívio das tarefas castrenses, íamos jogar cartas e roleta para uma casa que o Vasco Bramão Ramos tinha na Ericeira.

O António, ao que recordo, terá trazido a roleta. As cartas existiam lá por casa. Eu levava apenas uma irritada irreverência que disfarçava um mal-estar crónico pela condição militar, que nunca me passaria. Esses fins de tarde só não eram de total diversão porque havia que estudar para os testes “americanos”, sem o êxito nos quais nos arriscávamos a perder a saída do fim de semana. Ali se aprendia que o sargento da guarda “rende e ronda”, decoravam-se magnas questões das temáticas da “ordem unida” (a coreografia militar na parada), inteirávamo-nos das subtilezas do funcionamento da culatra da G3 e de outros temas tão ou menos apelativos do que esses.

Julgo não macular postumamente a folha militar do António se agora revelar que ele tinha conseguido obter, por artes que nunca cuidei em saber, para não ter de partilhar o pecado, os testes do ciclo anterior ao nosso - e facilmente se perceberá que a imaginação militar nunca iria ao ponto de mudar o conteúdo das perguntas, de um ciclo para o outro. Aquele quarteto de soldados-cadete não só comungava esse imenso segredo como era mesmo obrigado, no momento do teste, a errar deliberadamente em uma ou duas questões, para não parecer excessivamente “perfeito”. Para que conste, nunca falhámos um fim de semana em casa.

O António, sem surpresa, era o soldado-cadete (já não me recordo como isso era designado) que sempre coordenava e apresentava o seu pelotão, bando de trinta cadetes em que se dividem as companhias. Ficou famoso pelo garbo com que o fazia, num estilo sempre irónico.

Um dia, creio que nas festas de Mafra ou da unidade, em que todos fomos obrigados a mudar de farda umas quatro ou cinco vezes, para atender à diversidade daa funções, ao ser inquirido na formatura da saída, por um tenente “chicalhão” (dizia-se dos milicianos que gostavam mesmo daquilo, ao ponto de algum sadismo sobre quem era comandado), como é que apreciara a forçada agitação de vestes durante a jornada, o António crismou uma frase que ficou nos anais do ciclo: “Saiba vossa senhoria, meu tenente, que, ao ter de me vestir e despir tantas vezes, no mesmo dia, por um momento senti que esta venerável Escola Prática se assemelhava a uma casa de meninas, sem qualquer ofensa para estas últimas, bem entendido!”

Mafra acabou, depois desses três meses que registei como dos mais sinistros da minha vida, mas que o António, surpreendentemente, achou divertidíssimos. E, sempre de verde, lá marchámos, salvo seja, para a Escola Prática de Administração Militar, no Lumiar, em Lisboa.

É que, dos 900 bravos cadetes de Mafra, nove havíamos sido os felizes eleitos, por testes psicotécnicos, para a simpática especialidade de Ação Psicológica, uma área em que se era “operacional” pela palavra. Desses nove, os primeiros três classificados ficariam garantidamente na “metrópole”, sendo os restantes seis destinados às “províncias ultramarinas”, mas sempre acolhidos no conforto dos respetivos quartéis-generais, onde a “Apsic”, com razão, era uma tarefa muito invejada.

Posso revelar que, ao final desses mais três meses de “instrução”, o António, o Jaime Nogueira Pinto e eu fomos classificados para não pôr os pés nas “possessões ultramarinas”. O Jaime, coerente, não aceitou e quis logo avançar para Angola “rapidamente e em força”, o António foi requisitado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros (o que era possível, por não ter sido mobilizado para o “esforço de guerra”) e só eu fiquei pelo Lumiar, a dar aulas de patriotismo oficioso, até que Abril se proporcionou.

Tinham assim terminado os seis meses em que eu e o António Franco andáramos juntos, de verde, quase todos os dias. Ele voltou, entretanto, às gravatas das Necessidades, “farda” que, por sugestão dele, vim também a envergar, tempos mais tarde. O resto é sabido.

Tenho uma forte saudade do António, é tudo quanto se me oferece agora dizer, para usar o gongorismo que ele tão bem manejava, para raiva de muitos e gozo de quem lhe apreciava o humor, que nunca o abandonou até ao fim.

segunda-feira, agosto 31, 2020

Sérgio Godinho


Sérgio Godinho faz hoje 75 anos. Sem qualquer nostalgia pateta mas com um sincero reconhecimento pessoal, noto que a sua música me fez companhia serena por bem mais de quatro décadas. Alguns dos seus temas fazem parte da minha "playlist" íntima, interpretaram, às vezes na perfeição, sentimentos que fui tendo ao longo do tempo, das raivas às ternuras, das esperanças aos desencantos, confirmando-me que a sintonia geracional é uma realidade sem discussão. Godinho, porém, está mesmo um pouco para além disso, porque não ficou colado, como acontece com outros, a uma espécie de gueto etário. E não deu ares de ter feito um esforço especial para isso. A inteligência com que conseguiu fazer evoluir as suas palavras e melodias, dotando-as de uma contínua modernidade, nem artificial nem obsessiva, transformou-o num dos raros autores que mantêm hoje entre nós uma singular transversalidade de públicos. Sérgio Godinho tem 75 anos. Quem nos dera a todos envelhecer, e ver envelhecer aquilo que dizemos e fazemos, dessa mesma e alegre forma. Não conheço Sérgio Godinho. Se o conhecesse, dava-lhe hoje um abraço. Como se dá a um amigo.

domingo, agosto 30, 2020

Flagrantes da vida real


“Dois chás de camomila e um café”. 

Ela tinha um ar de vida próspera. Bem vestida, devia ter sido bonita, até que os quilos da cinquentena haviam chegado para ficar. Estava no início de algum desmazelo.

“Ponho na conta de que quarto?”, perguntou o empregado da Pousada.

Ela hesitou. Voltou-se para o marido, que ia a passar: “Qual é o número do quarto dos meus pais?”

“Não sei. Põe no nosso”.

“Isso é que era bom!”, disse, alto. E lá foi ela, três salas adiante, para poupar nove euros. Regressou com o número do quarto dos pais. 

Poupanças.Há um país de gente assim. Coitados! Devem estar ricos. Mereciam ser deserdados.

Vamos a isso!


Pela fúria organizadora com que me vejo a planear as próximas semanas, confirmo a velha perceção de que os anos começam em setembro e acabam em julho. Aquela coisa do início de janeiro, depois no Natal e no ano novo, é uma vigarice cronológica, sem a menor aderência à realidade. Nem imaginam as listas de coisas para fazer que estou a preparar neste fim de semana! Para mim, já “cheira a setembro”, como escreveu o Ary, embora falando de outra coisa.

sábado, agosto 29, 2020

Os melhores do mundo



 ... no Victor, em São João do Rei.

Lídia Jorge



O prémio de Literatura em Línguas Românicas, da FIL Guadalajara, acaba de ser atribuído a Lídia Jorge. 

Trata-se de uma distinção criada em 1991, que reconhece um escritor vivo com uma obra relevante de criação em qualquer género literário – poesia, romance, teatro, conto ou ensaio – cujo meio de expressão seja espanhol, catalão, galego, francês, italiano, romeno ou português. 

Um beijo de parabéns, Lídia, num ano em que o vírus lhe trouxe uma imensa tristeza familiar.

Um caso sério


Algumas vezes, no passado, por ali parei, para um chá, pela tarde, a meio da viagem entre Vila Real e Viana. O “Turismo”, em Barcelos, era um espaço clássico, com um toque “rétro”, bem “estadonovista”. Mas, no fundo, digamos a verdade, era um local nada de especial.

Almoçar, na bela cidade de Barcelos, para mim, foi sempre sinónimo da clássica e estimável “Bagoeira” ou, a caminho de Esposende, da “Maria”, na Pedra Furada. Em alternativa, havia os “Arcos” ou a “Babette”. Depois, ia-se pelos doces, à “Colonial”. Nada mais, que eu soubesse.

Um amigo falou-me, há meses, do “Turismo”. “Mas come-se, lá no Turismo?”, perguntei, cético. Esse amigo, que também sabe cozinhar e o faz de forma aprimorada, assegurou-me: “Come-se e bem!”. 

Sou um cético, melhor, era, até hoje, ao almoço, ocasião em que, de facto, comi por lá lindamente. O espaço está renovado, arejado de vistas, com um serviço muito profissional e uma cozinha de elevada qualidade, numa lista soberba. Ah! E, para quem queira, há um menu executivo, bem em conta.

A chegada à mesa do proprietário, e chefe de sala, trouxe-me duas evocações. 

O Jorginho, com a máscara da conjuntura, é uma cópia perfeita do Bruno Nogueira. Até nos gestos! Se me tivessem dito que era o humorista que ali estava, teria acreditado, confesso. Perguntei-lhe e ele confirmou-me a regular confusão.

Mas o modo como ele apresentou os pratos, fazendo uma descrição individualizada, com riqueza semântica, cheio de pormenores, trouxe-me à memória uma curiosa figura histórica da restauração lisboeta: Francisco Queiroz, do saudoso ”Sua Excelência”, na rua do Conde, na minha vizinhança. 

Aquele desenrolar do menu, com pormenores pessoais (“como a minha tia fazia lá em casa...”), era um espetáculo que, numa versão mais contemporânea, vim encontrar no Jorginho (Jorge Falcão Bogas, mas gosta de ser conhecido por Jorginho), descrevendo as artes de cozinha do seu chefe Miguel Morgado (não, não é o liberal homónimo!).

Concluindo. Tenho, a partir de agora, no “Turismo”, em Barcelos, um caso muito sério de boa restauração, que me vai obrigar a desviar mais vezes por aquela cidade, nas minhas viagens ao Norte. 

Este fantástico país dá uma imensa trabalheira!

sexta-feira, agosto 28, 2020

Fim de tarde

 




Manel!

 

Numa carreira diplomática onde, historicamente, algum snobismo teima em marcar as formas de tratamento, o Manuel Lopes da Costa foi alguém que cuidou sempre em reduzir a distância face aos colegas mais novos. Senti isso desde o primeiro momento, em que me “ordenou” que o tratasse por Manel, e sempre “por tu”, como todo o ministério se habituou a testemunhar. 

Há dias, neste tempo de pandemia, comentei com alguém da Casa: “Quem deve sofrer imenso com isto é o Manel!”. Porque o Manel era um “físico”, gostava de tocar nas pessoas, agarrava-nos o braço, as mãos. Era a sua forma de demonstrar afetividade, amizade, simpatia. O Manel era a antítese perfeita do conceito de “distanciação”.

Manuel Lopes da Costa afirmava também uma caraterística incomum na Carreira: tinha por “vício” não dizer mal de ninguém. Para minha grande surpresa, uma noite, num bar de um hotel, em Roma, abriu uma exceção e qualificou alguém com um adjetivo duro. Mas tinha imensa razão em assim proceder! Eu teria dito bem pior dessa figura.

Longe de Lisboa, não tenho comigo o Anuário do MNE (uma utilíssima publicação que, por um qualquer mistério, deixou de se publicar neste século), o que me impede de confirmar a perceção de que o Manel, que leio que hoje morreu, aos 87 anos, praticamente nunca teve chefes no estrangeiro: foi “encarregado de negócios” em vários postos, acabando por chefiar embaixadas em Maputo e Dublin, locais onde fui encontrá-lo, sempre à vontade, com ótimo espirito e boa disposição, muito ativo, atento leitor da realidade local.

Percorri alguma África com o Manel - do Congo à Tanzânia, do Zaire ao Quénia, da Zâmbia às Maurícias. Ajudei a libertá-lo, entre gargalhadas coletivas, de uma sarilhada no aeroporto de Addis-Abeba, onde decidiu comprar um facalhão que, com toda a ingénua naturalidade, quis levar para um avião. Com ele e outros compinchas, atravessei o deserto que bordejava o Kelimanjaro, numa carrinha que ele nos convenceu a alugar em Arusha e que, de quando em vez, nos obrigava a parar, para se limpar, por sopro, o carburador (seria isso? não percebo nada de motores), no meio da estrada de terra batida para Nairobi, sob o olhar indiferente das tribos de Masai com que nos cruzávamos (o João Salgueiro não esqueceu isto).

Tenho montes de histórias divertidas com o Manel, uma, incontável, em Londres (o João da Rocha Páris lembra-se), outra, difícil de descrever, em Frankfurt (o António Monteiro recorda-se), sem falar das da caça, arte em que ele era reconhecido como um praticante de elevada craveira. 

Um dia, em Washington, no State Department, o Manel deparou-se com uma sala de reuniões onde, por todo o lado, se viam letreiros de “No Smoking”. Na mesa, de madeira impecável, nem vestígio de cinzeiros. Eram os anos 80, início do fundamentalismo anti-tabaco. 

A “chaminé” que era o Manuel Lopes de Costa começou a agitar-se na cadeira. Alguns membros da delegação portuguesa notavam a sua nervoseira. Ia passada uma dezena de minutos da reunião quando se viu o braço do Manel adiantar-se na mesa e agarrar uma meia dúzia de folhas brancas de A4. “Vai tomar apontamentos”, pensou-se, embora o Manel tivesse à sua frente um caderno de argolas onde escrevinhara já algumas notas.

Foi então que, expectantes, olhos de ambas as delegações viram o Manel dobrar, cuidadosamente, umas faixas laterais do molho de folhas e, com um saber seguramente de experiência feito, criar uma espécie de caixa, com quatro pés assentes sobre a mesa, em frente ao seu lugar. 

De repente, o Manel inclinou-se para a pasta preta, com asas, que sempre trazia consigo e que tinha pousado no chão, ao seu lado. Segundos depois, desse mesmo sítio, no ar daquela sala da sede da diplomacia americana, alçou-se um pequeno fumo, provocatória e libertariamente. Impávido, com o esgar sorridente que era o seu, com a sua barbicha branca, de cabeça sempre levantada, o Manel surgiu com um cigarro incandescente, para cuja cinza - estava desfeito o mistério! - ele havia construído o engenhoso cinzeiro de papel. Alguns americanos, graves, olhavam a delegação portuguesa, com certeza interrogando-se sobre a “lata” de alguém que, com um cigarro, havia raptado a conversa, onde a guerra civil em Angola era o tema. O nosso lado estava divertido. Era o Manel no seu estilo incontrolável!

Tenho muita pena de ver desaparecer o meu querido amigo Manuel Lopes da Costa. Se a diplomacia tem um lado humano insubstituível, esse lado estava bem representado na sua figura, na sua excecional capacidade de relacionamento, de que fui feliz beneficiário. Tenho a certeza de que ele ficaria satisfeito ao saber que o recordei com uma sua história divertida, tão alegre como as muitas horas bem dispostas que passámos juntos. “So long”, Manel!

Um beijo à Maria Cecília e o meu pesar à família.

quinta-feira, agosto 27, 2020

Elogio do turismo


Andando pelo país, do Sul ao Norte, nos últimos dois meses, tenho-me apercebido muito bem do modo como os setores da restauração e da hotelaria estão a procurar reagir à muito grave crise provocada por uma pandemia que ainda não tem data marcada para atenuar os seus principais efeitos.

Com a maior sinceridade, quero dizer tenho vindo a criar um enorme respeito pelo esforço dos profissionais de ambos os setores. Um pouco por todo o lado, quase sempre sem grandes queixas, tenho observado o modo rigoroso como responsáveis e trabalhadores seguem as estritas regras de higiene a que a situação obriga, garantindo as melhores condições a uma clientela que ainda se mostra hesitante e temerosa.

Nos últimos anos, o turismo disparou entre nós, com uma dimensão que, há que reconhecer, por vezes se tornou incómoda para a vida de muitos cidadãos, que viram o seu quotidiano invadido de uma forma bastante agressiva. Mas, ao afirmar-se, a importância do turismo na nossa riqueza ajudou a alguma folga nas contas, facilitando políticas públicas, gerando uma imensidão de empregos. Percebemos melhor agora que não é possível “ter sol na eira e chuva no nabal”.

Houve algum exagero na oferta hoteleira, que parecia imitar as “pirâmides” de lucro? Claro que sim. Mas convém compreender que muito do património imobiliário foi renovado, nomeadamente com o surto do alojamento local, que a vida comercial das cidades foi estimulada e os restantes setores turísticos, com os transportes pelo meio, tiveram ganhos de qualidade que os índices internacionais não deixaram de refletir.

Sei que, no olhar de alguns, um outro aspecto pode parecer de somenos, mas, dada a minha experiência profissional, tenho de destacar o impacto que a onda turística dos últimos anos tem vindo a ter na imagem internacional do nosso pais. Olhe-se o número crescente de obras que, pelo mundo, são publicadas sobre Portugal, sobre os portugueses e a sua História, os filmes que nos tomam como cenário e o muito que, de positivo, se diz sobre a segurança das nossas cidades. Muitos não terão reparado mas, em escassos anos, demos um imenso salto nessa perceção. E quem, mais do que o turismo, fez por isso?

Não sabemos ainda o que o turismo português vai ser, no futuro. Mas uma coisa é certa: se ele não recuperar, as coisas não irão ser nada fáceis para a economia nacional, nos próximos anos. Como o relatório Porter nos ensinava, temos de fazer melhor o que já fazemos bem. E em poucos setores somos tão competitivos como na área turística.

quarta-feira, agosto 26, 2020

“Reaccionaria” (também com “c”)


Andava há anos para lá ir. Tinham-me falado daquele restaurante galego em que a dona, franquista dos sete costados, cantava pelas mesas o “Cara al Sol” (ontem, só lhe ouvi o “Granada”) e alardeava que, na sua casa, não entravam socialistas (e, por maioria de razão, comunas e anarquistas, porque quem pode o mais pode o menos).

É uma marisqueira pequena, numa rua esconsa do porto de La Guardia (A Guarda, para os galegos). Lá chegados, com mesa marcada, surgiu a “facha” (“Ah, Portugueses!”, sem especial nota de afeto ou desafeto). Explicou, logo ali, que, em tempos de pandemia, se cruzam os braços no peito e se vai com um dedo ao nariz, apontando depois para o outro (“Los socialistas son los que saludan con los codos”).

Plano de conversa: dizer bem de Salazar, elogiar o Caudillo, que sempre achei Fraga “muy de esquierdas” (e então o Feijóo!), que nos faz falta um Vox, que em Portugal já temos um genérico “facho”, mas que, a mim, até me parece um pouco esquerdalho, da minha admiração pela vedeta do PP Cayetana Álvares de Toledo (e que fiquei comovido com o artigo sobre ela, do Vargas Llosa, no “El Mundo”), revelando-lhe, como cúmulo de credenciais direitolas, que, num 20 de novembro, tinha mesmo estado a ouvir Blas Piñar, na Plaza de Oriente, “hace muchos años”. À saída, o plano era berrar, à distância, o “La mujer de Paco Franco... de su marido cabrón”, com música do “Ay Carmela”.

“Quer-se dizer”: tinha pensado dizer e fazer tudo o que acabam de ler, mas acabei por não dizer nem fazer nada disso. Já bastam as máscaras que para aí andam...

Comemos bem, bebemos um albariño razoável e pagámos “la dolorosa”, em conta para o consumido

Reaccionário (com “c”)


A distanciação, em tempos de pandemia, colocou-me atrás dele, a uma boa distância. Foi ontem de manhã, na fila para os jornais, na Atenas, na praça central de Caminha. 

Era um homem pequeno, idoso, de cabelos muito brancos. Vestia um casaco (seria fato?) escuro. Verdadeiramente, a minha atenção à figura começou quando o ouvi pedir a conservadoríssima “Valeurs Actuelles”. Logo eu, que vinha pelo “Nouvel Obs” da semana passada, que já não conseguira apanhar no Porto. 

Espera aí! Um cavalheiro daquela idade, a pedir aquela revista, por aquela zona, seria ele? Ele quem? Se o leitor lê o “Correio da Manhã”, pecado comum a muitos portugueses, ter-se-á encontrado já com as crónicas do Dr. António Sousa Homem, autor de quatro livros de compilação de textos, todos com o subtítulo de ”Crónicas de um reaccionário minhoto”. Quando ele se voltou, para me dar lugar junto ao balcão, esperei para ver se o farfalhudo bigode branco se mostrava, mas a máscara não deixou.

Não resisti, para não ter o destino infeliz de dois escribas lisboetas. que falharam o encontro com o homem. Pousei no balcão a revista que levava na mão e fui atrás do cavalheiro. Chegado ao largo, interpelei-o: “Dr. Sousa Homem?” O senhor parou, tirou a máscara, mostrou uma cara levemente sorridente, com o bigode que lhe vemos nas badanas dos livros, e respondeu: “Presume bem!”. Dei por adquirido que fazia uma citação ínvia do encontro de Livingstone e Stanley, e também sorri. 

Tinha pouco a dizer ao Dr. António Sousa Homem, além do que, de facto, lhe disse: que tinha lido todos os seus livros, que apreciava a sua escrita, que estava longe de lhe dar os 99 anos que lhe sabia de vida. Disse-lhe também quem eu era, o que fazia, mas isso em nada o pareceu interessar. Perguntei-lhe se continuava a ir almoçar ao Ancoradouro, embora sabendo que isso lhe era de regra. 

O Dr. Sousa Homem, manifestamente, não estava com jeitos de me dar muito troco. Sim, ia dali a pouco ao Ancoradouro. Como pretexto para arrumar uma conversa que não andava para a frente, pedi-lhe que desse um abraço por mim ao Alfredo, que tutela aquelas mesas de toalhas aos quadrados. “Com certeza que sim”, adiantou, talvez para se ver livre de mim, cujo nome duvido que sequer tivesse fixado. 

Foi então que, de uma mesa na esplanada da Riviera, se ouviu uma voz feminina: “Tio! Estamos aqui!”. Ele olhou, despediu-se de mim com um inclinar de cabeça e foi ter com a senhora ali sentada. Era, pela certa, a sobrinha, a Maria Luísa, a decoradora de interiores em Braga, de que Sousa Homem nos fala nas crónicas, que vem vê-lo com frequência ao Moledo, onde ele vive.

Ao lado da suposta Maria Luísa, refastelado, estava um cavalheiro. Tenho uma memória de elefante. Era a cara chapada de um tipo que eu tinha cruzado, há cerca de três anos, quando o Nova Sintra ainda estava aberto em frente ao meu hotel, na rua do Heroísmo. Eu tinha falhado a hora do pequeno-almoço do hotel, como cada vez mais me acontece, e tinha atravessado a rua para uma bica e um sumo de laranja, a um preço decente. Ouvi então o empregado do café perguntar, para aquele que era, por uma pinta, o acompanhante de Maria Luísa: “O costume, senhor inspetor?”

Agora, eu estava com alguma pressa. Ainda ia almoçar a La Guardia (A Guarda, para os galegos), onde já levavam uma hora de avanço, para experimentar as delícias da Casa Olga (amanhã conto). 

Quando arranquei, cruzei-me com um carro onde, ia jurar!, ia o Francisco José Viegas. Mas foi impressão minha, pela certa. O Francisco anda por Soltróia. Mas lá que parecia ser ele, isso parecia!

terça-feira, agosto 25, 2020

Barto


Por esta altura do ano, nas Escadinhas da Fonte da Pipa, em Sintra, reunia-se uma seita distinta, que invadia o terraço da casa do Bartolomeu Cid dos Santos. 

Íamos comemorar o aniversário dessa grande figura da arte portuguesa, professor da Slade School e ímpar amigo e companheiro de muitas festas. O Bartolomeu teria feito ontem 89 anos.

Foi em Londres que conheci o Bartolomeu - Barto, para os amigos britânicos -, nos idos de 70, através da Fernanda, sua esplêndida companheira. Quando para lá fui viver, nos anos 90, juntávamo-nos com frequência, em longas e bem regadas conversas e comezainas. O Bartolomeu cozinhava uma “shepherd’s pie” como ninguém, mas também tinha a mania da cozinha grega, arrastando-nos, com frequência, para um restaurante da dita, perto de Tottenham Court Road.

O Bartolomeu tinha a curiosidade de uma criança, a vivacidade de um adolescente, a sabedoria da gente com a idade de que ele se aproximava. 

Foi pela mão do Bartolomeu que passei a integrar, em 1991, a Crabtree Foundation, uma prestigiosa associação britânica (de que ele e eu acabámos um dia presidentes) que, vai para sete décadas, comemora - com afinco, pertinácia e, vá lá, com o rigor possível - a figura de Joseph Crabtree (1754-1854), uma personalidade que nem pelo facto de nunca ter dado o menor sinal de vida deixa de ser um expoente em muitas e desvairadas artes, ofícios e saberes. A “oration” do Bartolomeu sobre a suposta passagem de Crabtree por Portugal continua a ser um marco!

As festas de aniversário do Bartolomeu, lá por Sintra, só se equiparavam às noites de passagem de ano no mesmo local, que começavam num jantar e acabavam dentro da madrugada, depois de sessões de revelação de documentação, que o Bartolomeu cuidava em colecionar, coisas magníficas, como cartas escritas de Cabul para ele, por José Cutileiro, na juventude de ambos. Uma das suas preciosidades era uma “cunha” de alguém para tentar proteger o jovem estudante António Sebastião Ribeiro de Spínola. 

O Bartolomeu, homem que nunca renegara o seu amor ao “partido”, guardava, além disso, uma “memorabilia” de imensas coisas com a foice & martelo, uma “cunhalogia” do melhor que vi até hoje. Não sei se, para aquela coleta, tinha tido a ajuda do Ruben de Carvalho, figura que muito animava essas nossas ocasiões.

Nós éramos felizes participantes desses extraordinários “gatherings”. Para além do Rúben e de José Cutileiro, lembro ver por lá o Antonio Tabuchi, o Zé Cardoso Pires, os “londrinos” Luís Sousa Rebelo e Helder Macedo, o Gérard Castello Lopes, o Júlio Moreira e a Ana Viegas, o Alberto Seixas Santos, o Luís Santos Ferro e tantos e tantos outros.

O Bartolomeu, até à morte, nunca largou Londres, mas voltava sempre a Portugal, a Sintra e a Tavira. Algumas vezes, como quando fez a arte magnífica que está nas paredes do Metro de Entrecampos, trouxe consigo, da “pérfida Albion”, umas excelentes “trupettes”, estudantes da Slade, que muito animaram as marmoreiras de Pero Pinheiro. Tenho dele uma gravura dedicada, com a sombra de uma dessas beldades.

O dia de aniversário já terminou. Se fosse vivo, o Bartolomeu iniciaria agora o caminho para os 90. Assim, tem de se contentar com a eternidade.

Um beijo para ti, Fernanda.

segunda-feira, agosto 24, 2020

Cafés do Porto


Passei há pouco no “Piolho". Fez 110 anos e, salvo a pandemia, está de boa saúde, com gente a animar-lhe a esplanada. 

O "Piolho", ou melhor, o "Café Âncora d'Ouro", é uma bela instituição do Porto, estrategicamente situada junto aos Leões, à beira dos Clérigos, de Carlos Alberto e do início de Cedofeita. É um local de profundas tradições culturais e académicas. 

Na segunda metade dos anos 60 do século passado, em que o frequentei, por ali aportava gente do Teatro Universitário, do Orfeão, do Coral de Letras, da cooperativa livreira Unicepe, os pró-associativos (no Porto, a ditadura não dava direito a associação académica), estudantes das Faculdades de Ciências e de Economia, logo em frente, bem como os de Letras e Medicina, então um pouco abaixo. 

Tudo bebia por ali o seu café de saco. É que o "Piolho", durante muito tempo, não teve "cimbalino", essa portuense expressão para o "expresso", derivada das máquinas italianas "La Cimbali", que, à época, já equipavam a modernidade dos cafés da cidade, a começar pelo "Montarroio" e a acabar na "Brasileira".

Tal como em Lisboa, para muitas gerações desaguadas da província para estudar no Porto, sem muito dinheiro, num tempo de escassez de locais de convívio, os cafés representavam um espaço de acolhimento, socialização e convívio. 

O "Piolho" era um expoente desse universo, que também tinha o "Aviz" (algo intelectual) e o "Ceuta" (em frente ao Rádio Clube Português), como fóruns clássicos de conversa. Mas também o "Progresso", no Moinho de Vento, com “o melhor café de saco do mundo” (dizia-se que punham, dentro da máquina, um rabo de bacalhau salgado), mas com professores a mais pelas mesas, o "Estrela", na rua da Fábrica, com os seus belos bilhares no 1.º andar, e o "Bissau", em Cedofeita, um oásis de serenidade onde se concentrava a gente de Engenharia e dos lares universitários da Torrinha e Rosário, ainda antes da abertura do “Latino”, a que assisti.

Para estudo ou a fazer disso, havia o "Saban", em Sá da Bandeira, ou o "Diu", na Boavista, sempre cheio de "pequenas" de Farmácia. Mais para namoro, havia o "Guarany", nos Aliados, ao fim da tarde, o "Orfeu" na Rotunda, o "Pereira" no Marquês, ou os recatados e distantes "Bela Cruz" do Castelo do Queijo e o "Chalet" do Passeio Alegre. 

Na baixa, onde se parava em outras diferentes ocasiões (por exemplo, ao final da tarde dos domingos, à espera do "Norte Desportivo"), ficavam os institucionais "Rialto", "Embaixador" ou "Imperial", embora com a estudantada menos presente, E também o "Astória", no passeio das Cardosas, que abria às 6 da manhã (para “apoio” à estação de S. Bento), meia hora depois de fechar a "Stadium", no Bonjardim. 

Curiosamente, o "Majestic" não tinha então o "glamour" de hoje e, bem perto, na Batalha, preponderava então o "Chave d'Ouro", onde a gente nova não ia muito. Não longe, ficava o “Sagres“, também um lugar “ível”, isto é, onde se podia ir. Resta notar, na Passos Manuel, nesta memória muito breve de cafés do Porto, o ”Santiago”, onde uma intelectualidade menos ortodoxa adubava os finais de tarde.

Hoje, é difícil que os cafés admitam que alguém se eternize por lá, à conversa, com um café e um copo de água à frente, como era frequente no século passado. 

Quando vivi em Viena, aprendi que, durante a guerra, os cafés da cidade aceitavam que quem não dispunha de aquecimento em casa passasse muitas horas dentro deles. 

Nos tempos de esse outro Portugal, aos poucos que tínhamos o privilégio de frequentar a universidade, os cafés também nos ajudavam a “aquecer” os dias e, em especial, as noites.

Francesinha


Ontem à noite, dei por mim a olhar, com clara inveja, para uma francesinha, pousada sobre a mesa ao lado, na Cufra, aqui no Porto. Eu já tinha pedido outra coisa, caso contrário teria marchado, pela certa, aquela bomba calórica, sobre cujo local de melhor confeção a doutrina tripeira sempre se dividiu. Mas não deve ser por acaso que, desde há muitos anos, não me passava pela cabeça pedir uma francesinha num restaurante portuense. É que costuma haver tanta coisa melhor nas ementas da cidade! Infelizmente, não é o caso da Cufra, com pena o reconheço.

domingo, agosto 23, 2020

MNE - os dias quentes da Revolução

Com um sexto e último artigo, Bárbara Reis conclui, no “Público” de hoje, uma série de textos, recheados de testemunhos, sobre o tempo que se viveu no Palácio das Necessidades, em 1974 e 1975, da ditadura para a democracia. Vale a pena ler.

Porto


É das cidades onde me sinto melhor. No Porto, tenho sempre a sensação de estar em casa. Talvez porque, minha infância, ir ao Porto era ir à civilização, pelo Marão curvoso ou pela linha que então desaguava em São Bento. Da varanda traseira da casa de uns tios, na Ramada Alta, avistava o mar ao fundo, olhava aquela imensidão de casas e luzes, via passar um comboio que me diziam que ia para a Póvoa e sentia que aquilo é que devia ser a vida! Um dia, o destino mandou-me mesmo para lá, supostamente para estudar, na prática para usufruir da liberdade que Vila Real não me tinha nunca dado. Perdi-me, claro, nas muitas coisas e nas longas noites. Em dois anos, concluí, com esforço, duas cadeiras de Engenharia, ambas com notas a rasar os mínimos. Não tivesse eu saído a tempo do Porto e aquela cidade seria a minha perdição. Mas voltei lá sempre, todos os anos, sem exceção, para rever amigos, flanar por ruas que conheço como os dedos das mãos, comer em belos restaurantes, folhear nos alfarrabistas. Quando ouço amigos lisboetas dizer que se confundem no trânsito do Porto, gabo-me de saber ali conduzir por quelhas e desvios, pelo meio de bairros de que nem ouviram falar, eles que, na rádio, ao verem referido o Nó de Francos ou Bessa Leite, não têm a menor ideia do que isso pode ser. Nos últimos anos, o trabalho tem-me levado imenso ao Porto. Amanhã, vai ser o lazer. Todo o pretexto é bom para ir ao Porto.

sábado, agosto 22, 2020

A “minha” cozinha

Quando, em 1985, chegado de posto em Angola, fui viver para perto do Campo Pequeno, alguém me disse maravilhas de um restaurante que tinha acabado de abrir, na rua de Entrecampos - o Poleiro. Eram dois irmãos Martins: o Manuel, a chefiar a cozinha, e o Aurélio, a dirigir a sala, então minúscula (não chegava a 30 lugares; depois aumentou apenas um pouco mais). A oferta inicial era eclética: havia espetadas madeirenses e comida minhota, por exemplo. O Aurélio, nos vinhos, converteu-se num constante descobridor de coisas novas e excelentes.

Por muitos anos, o Poleiro foi um “caso” numa restauração lisboeta que estava então muito longe de ter o leque de diversidade que hoje tem. Havia filas à porta. Ao almoço, era o mundo da política, do jornalismo, das empresas. À noite, eram casais e pequenos grupos. As reservas eram feitas com grande antecedência. Havia dias “impossíveis”.

Vivendo a cinco minutos a pé, tornei-me, de um regular frequentador, num bom amigo da casa. E já lá vão 35 anos. Noites houve em que o Aurélio me dizia, pelo telefone: “Pode ir descendo, que a sua mesa está quase pronta”, depois da rodada anterior. E, lá chegado, sabia ter à minha espera os peixinhos da horta e um belo queijo amanteigado, que ainda hoje vejo figurar por detrás dos níveis de colesterol das minhas análises. Grandes noitadas, com a família e amigos, passei no Poleiro.

Quem me conhece sabe que fiz sempre, por todo o lado, imensa “propaganda” do Poleiro. Não por ter a sua gente por amiga, mas porque achava, e continuo a achar, que por ali se servia e serve uma das mais genuinas cozinhas de Lisboa. Sem quebras, sem cedências, sem recuos na qualidade dos produtos. 

Hoje, como é da lei da vida, os dias do “Poleiro” não são os mesmos desse tempo, somada agora a pandemia a tudo o resto. Há muitos concorrentes, diversas ofertas gastronómicas, modas a prevalecerem. Mas o Poleiro ali está, impecável no que nos propõe, como ainda ontem tive ocasião de comprovar, numa visita que fiz à minha “cozinha”, como o Pedro d’Anunciação escreveu, há quase 15 anos, num artigo numa revista que encontrei por lá encaixilhado e de que aqui deixo imagem para memória presente.

sexta-feira, agosto 21, 2020

Giocondas e anjos-maus

Farto-me de me cruzar com as duas espécies, mas nunca me tinha sucedido encontrar uma de cada naipe, ao mesmo tempo. Aconteceu-me, há pouco, nos correios (onde assisti a uma pobre empregada doméstica, com ar de pouco urbana, ser endrominada para comprar um vigésimo de lotaria - mostrando onde chegaram os correios!)

As giocondas, trato-as assim intimamente há anos, são mulheres que entram em lugares públicos com um esgar levemente sorridente, às vezes um pouco sofrido, que prolongam até serem atendidas - nas lojas ou nos serviços. Há nelas um à-vontade natural, um estar-bem naquele espaço, quase sempre num registo de segurança, muito “easy-going”, falando pouco e baixo, dando ares de terem todo o tempo do mundo. Tenho amigas assim e são, em geral, boa gente (se não fossem, também não eram minhas amigas, claro!).

Descobri o conceito de anjo-mau numa canção de Jorge Palma. É a cara fechada, dos modelos de “passerelle”, parece que representando, em geral, uma atitude defensiva, desincentivando a confiança e a aproximação. Há anjos-maus lindíssimas! As anjos-maus são, em geral, muito mais novas do que as giocondas, ou melhor, às anjos-maus mais velhas, ou quando já não vão para novas, não se chama anjos-maus, chama-se apenas trombudas. Ah! E, ao que tenho apurado, não há muitas giocondas novas. (No que eu me fui meter, neste tempos de politicamente correto!)

E fico-me por aqui, nesta caracterologia de trazer por casa, numa Lisboa vazia, onde a tarde rende imenso e só a máscara está a mais. (Já estou a ver os espertos do costume a perguntarem: “E como é que, com as máscaras, viste as caras?”. Aí é que está o poder de observação. São muitos anos...)

A Torre



A casa é hoje a Fundação Maestro José Pedro. No largo Vasco da Gama, em Viana. Foi dos meus avós, não sei se logo que chegados de Ponte de Lima, em 1912. Olhando agora para o edifício, constata-se que nada mais há sobre o segundo andar. Mas nem sempre foi assim. Por ali ficava a Torre.

A Torre era o nome dado na familia a um sótão. Sempre houve a ideia de que nele haveria ratos. Nunca vi nenhum mas, à noite, se bem interpretava uns ruídos estranhos que, nas minhas madrugadas de leitura (a partir de certa idade, montavam-me uma cama num escritório, no andar imediatamente abaixo da Torre, rodeado de livros), escutava por cima do teto, parecia haver. Aliás, as frequentes idas dos gatos por lá indiciavam um potencial petisco dessa natureza, que também existiria na Loja, mas não os vou maçar mais com a geografia descritiva da casa da minha avó.

O sótão, como todos os sótãos, estava eternamente cheio de poeira. Não me consta que a “Seconceição”(a senhora Conceição, na versão fonética da minha infância) ou a sua filha Arménia, que oficiavam no serviço da casa, alguma vez tivessem passado pela Torre a espanejar aquela confusão de móveis velhos, de malas sem préstimo, de caixas e caixotes, de exemplares repetidos dos livros do Domingos Tarrozo (uma figura interessantíssima de Ponte de Lima), amigo da família: “O Monopólio da Sciencia Official”, “A Poesia Philosophica” e “A Forma de Votar”, sendo estes os títulos de que ainda me lembro - e que nunca li, claro.

A Torre tinha, para a frente, um janeluco voltado para o largo, na direção da doca. Se ainda existisse, desse envidraçado esconso ter-se-ia, nos dias de hoje, uma vista magnífica sobre o Gil Eanes, o navio-hospital que, à época, acompanhava a frota dos bacalhoeiros para as costas da Terra Nova. A doca era então fechada, tinha muro de pedra e um belo gradeamento e um portão (de correr, se bem me lembro), que eu só atravessava para ir “à natação”, acompanhado do meu pai (e imagino que da minha mãe, preocupada), para a escola benévola ali montada, no Verão, por uns carolas da cidade.

Da Torre tembém se avistava, ao longe, o caminho para o Cabedelo, com vista desfogada, ainda sem o mar de coisas industriais e portuárias que lá foi parar, já há anos. Espreitando, à esquerda, ali estavam (e estão), na sua solidez granítica, arquitetura muito Estado Novo, os escritórios do João Alves Cerqueira. Estendendo o pescoço, à direita, por muito que tentasse, não conseguia ver a capela da Senhora das Candeias, e a gorda a assomar no janeluco ao lado, mas tinha-se um olhar sobre o edifício comprido, que parece que é hoje um bingo, e que, ao tempo, foi uma fabriqueta de cordas para barcos, que se prolongava, no exterior, também para os lados da capitania, com grandes rodas de madeira.

Logo em frente da janela da Torre, impante, lá estava (e lá está - milagre numa cidade onde as estátuas costumam andar de um lado para o outro, como agora e em boa hora aconteceu ao Caramuru) a figura do Mercúrio, com casquete e âncora, encimando a taça com água. Nunca lhe achámos muita graça: viráva-nos as costas...

Não se via muito mais, da Torre? Essa agora! Da Torre via-se o mundo! Eu, pelo menos, vi.

(Dedico este texto aos meus primos Filomena e António, comigo, nos Verões, felizes, frequentadores dessa Torre da nossa infância)

quinta-feira, agosto 20, 2020

Pousadas de Portugal


As Pousadas de Portugal existem desde 1942. 

Segundo as minhas contas, desde esse ano e até hoje, foram construídas 67 Pousadas, 16 das quais desde 2003, ano em que o grupo Pestana assumiu a gestão. 

O grupo Pestana, que gere a rede de Pousadas desde 2003, manterá 36 unidades em funcionamento. Neste período de pandemia, algumas dessas Pousadas estão fechadas, presume-se que temporariamente.

Foram encerradas (ou deixaram de funcionar sob a égide das Pousada) 31 unidades, algumas antes do grupo Pestana ter assumido a gestão da rede.

Algumas pousadas funcionam em regime de concessão, sendo a sua gestão feita por entidades alheias ao grupo Pestana.

Na pesquisa que fiz sobre a abertura e desativação das Pousadas - tarefa nada fácil, porque não parece haver nenhum estudo de conjunto - não consegui determinar a data de encerramento, enquanto Pousadas, de algumas dessas unidades. Ficarei grato se os leitores puderem ajudar nesta pesquisa, mas sempre com dados seguros.

Unidades em funcionamento (36): 

1. Alijó (Barão de Forrester) (1944)*
2. Óbidos (Castelo) (1950)
3. Marvão (Santa Maria) (1956)
4. Bragança (S. Bartolomeu) (1959) *
5. Murtosa (Ria) (1960)
6. Valença (S. Teotónio) (1963)
7. Sagres (Infante) (1963)
8. Evora (Lóios) (1965)
9. Caniçada (S. Bento) (1968)
10. Extremoz (Rainha Santa Isabel) (1970)
11. Viana do Castelo (Monte de Santa Luzia). (1979)
12. Palmela (Santiago) (1979)
13. Guimarães (Santa Marinha da Costa) (1985)
14. Alvito (1993)
15. Beja (S. Francisco) (1994)
16. Queluz (Dona Maria I) (1995)
17. Crato (Flor da Rosa) (1995)
18. Arraiolos (Nossa Senhora da Assunção) (1996)
19. Amares (Santa Maria do Bouro) (1997)
20. Vila Viçosa (D. João IV) (1997)
21. Alcácer do Sal (Afonso II) (1998)
22. Ourém (Conde de Ourém) (2000)
23. Belmonte (Convento de Belmonte) (2001) *
24. Horta (Forte de Santa Cruz) (2004)
25. Lisboa (Terreiro do Paço) (2005)
26. 
Tavira (Convento da Graça) (2006)
27. Bahia (Convento do Carmo) (2006)
28. Angra do Heroísmo (Forte São Sebastião) (2006)
29. Estói (Palácio de Estói) (2009)
30. Viseu (2009)
31. Porto (Palácio do Freixo) (2009)
32. Cascais (Cidadela) (2012)
33. Covilhã (Serra da Estrela) (2014)
34. Óbidos (Vila de Óbidos) (2018)
35. Câmara de Lobos (Churchill Bay) (2019)
36. Vila Real de Santo António (2020)

(*) Unidades concessionadas

Unidades encerradas ou já não funcionando como Pousadas (31):

1. Elvas (Santa Luzia) (19.4.1942). Encerrou em 2012
2. Marão (São Gonçalo) (29.8.1942). Encerrou em 2007
3. Alfeizerão (S. Martinho) (24.9.1942)
4. Serém (Santo António) (24.9.1942)
5. Madeira (Vinháticos) (1942)
6. São Braz de Alportel (S. Braz) (11.4.1944). Encerrou em 2010
7. Santiago de Cacém (S. Tiago) (10.2.1945). Encerrou em 2001
8. Manteigas (S. Lourenço) (14.3.1948)
9. Berlengas (S. João Baptista) (1953)
10. Castelo do Bode (S. Pedro) (1.1.1954). Encerrou em 2003
11. Serpa (São Gens) (1960)
12. Miranda do Douro (Santa Catarina) (1962). Encerrou em 2002
13. Caramulo (S. Jerónimo) (1962)
14. Vila do Bispo (Forte do Beliche) (1963)
15. Setúbal (São Filipe) (1965). Encerrou em 2014
16. Póvoa das Quartas (Santa Bárbara) (1971) Encerrada em 2003
17. Santa Clara-a-Velha (Santa Clara) (1971)
18. Torrão (Vale do Gaio) (1977). Encerrou em 2007
19. Guimarães (Nossa Senhora da Oliveira) (1980) Encerrou em 2013
20. Vila Nova de Cerveira (D. Dinis) (VII) (1982). Encerrou em 2008
21. Batalha (Mestre Afonso Domingues) (1985)
22. Almeida (Senhora das Neves) (1987)
23. Santiago de Cacém (Quinta da Ortiga) (1991). Encerrou em 2008
24. Sousel (S. Miguel). (1992) Encerrou em 2010
25. Condeixa (Santa Cristina) (1993). Encerrou em 2019
26. Monsanto (1993). Encerrada em 2011
27. Mesão Frio (Solar da Rede) (1998). Encerrou em 2012
28. Vila Pouca da Beira (Convento do Desagravo) (2003). Encerrou em 2017
29. Proença-a-Nova (Amoras) (2006). Encerrou em 2011
30. Braga (S. Vicente) (2007) Encerrou em 2012
31. Madeira (Pico do Arieiro) (?)

quarta-feira, agosto 19, 2020

Os restos de Yalta


No plano geopolítico, a Bielorrússia, de que se fala por estes dias, configura um caso particular. Se bem se notar, o ocidente reclama, muito justamente, pelo comportamento autocrático do presidente Lukashenko, pelo ambiente fraudulento que envolveu a recente disputa eleitoral, pela violência oficial contra a expressão democrática dos seus cidadãos. Mas, ao contrário do que se verificou nos casos da Geórgia ou da Ucrânia, nenhuma voz sensata veio apelar à ideia de que uma Bielorrússia “livre” venha a integrar a NATO ou a União Europeia. Por que será?

Há resquícios dos velhos acordos de Yalta que ainda subsistem na memória do realismo internacional. E embora, no plano dos princípios, ninguém subscreva a legitimidade da tese das “esferas de influência”, é por demais evidente que prevalece, na racionalidade geopolítica do mundo, a ideia de que um país como a Bielorrússia faz parte de um terreno de tutela russa. 

Se Putin decidisse fazer avançar carros de combate pelas ruas de Minsk, caía “o Carmo e a Trindade”, mas não deixa de haver um entendimento implícito no tocante à aceitação de que Moscovo pode ter uma palavra a dizer quanto ao futuro do país. Se a “soberania limitada” faz ainda sentido para alguns cultores da “realpolitik”, é no caso bielorrusso que isso se aplica de forma bem clara.

Os cidadãos que vieram para as ruas, como alguns bem assinalaram, não parece terem pedido para que o país ingresse na Aliança Atlântica ou faça parte das instituições europeias, da mesma forma que, ao contrário de muitos georgianos e ucranianos, não pareceu emergir nesses movimentos uma atitude hostil para com a Rússia. Provavelmente, isso terá ocorrido assim por mero realismo, pela consciência de que o seu futuro, se fará, quase inevitavelmente, num qualquer modelo de relação íntima com Moscovo.

A alguns chocará a frieza desta análise, que parece conceder bondade àquilo que espelha uma mera relação de forças. Porém, estou apenas a refletir sobre como as coisas são, não como deviam ser. É que não é por acaso que os poderes que contam, na ordem internacional, sempre separam as águas, quando abordam os casos nacionais na periferia russa.

A avaliar pelas reações, Putin não sabe muito bem o que há-de fazer com o seu incómodo vizinho. Já terá percebido que Lukashenko é, cada vez mais, um fardo. Não está disposto a deixar que o ocidente intervenha, mas, muito claramente, também ainda não decidiu como utilizará o seu poder de vizinhança. No meio, impotentes, estão os bielorrussos.

terça-feira, agosto 18, 2020

A vida é assim!


Em 2002, no auge do seu confronto com a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), cuja presidência Portugal então titulava, a Bielorrússia enviou a Viena, por duas vezes consecutivas, um jovem e brilhante diplomata, à frente de uma missão que connosco discutiu a então muito sensível questão da manutenção de um escritório da organização em Minsk. Chamava-se Igor Leshchenya. 

Tive com ele longas horas de trabalho e, também muito graças à pertinácia negocial do meu colega Carlos Pais, meu “deputy” na chefia da nossa missão, levámos a bom porto o nosso objetivo - garantir que a OSCE permanecia na capital bielorrussa, para reportar sobre as insuficiências democráticas do país. 

Muitas vezes, desde então, me tinha perguntado o que teria acontecido àquele diplomata, na complexa vida política bielorrussa.

Tive a resposta há minutos.

segunda-feira, agosto 17, 2020

Estátuas, descobertas e quejandos

Num ato de insuportável arrogância histórica, a atual geração acha-se no direito de ser a julgadora do que de bem ou de mal as anteriores gerações pensaram ou fizeram, contestando-lhes as ideias e destruindo-lhes os símbolos.

Viagens nas terras dos outros


Comem-se uns salmonetes de truz em Bragança, perto das Fontainhas, saindo do Castelo para apanhar o ferry para Gimonde. Aprendi isso com o abade de Baçal, primo do de Priscos. Podia optar por um lombelo, mas não é a mesma coisa, porque se perdem as algas e não dá para ver os golfinhos a saltar, com a Margueira a despontar na estrada para Miranda. Dizem-me, mas não posso confirmar, que a dona Iracema, lá no Geadas, faz uns gambuzinos alimados com arroz do mesmo, coisa que também servem no Christo, na marina do Fervença, mas não aceitam reservas e, sem reserva, só no G. E agora vou a Setúbal, pela ponte nova que sai de Tróia (deixo imagem de ontem), apanhando depois a derivante em direção a Vinhais, terra de sardinhas e de galgas na grelha.

(Ao meu amigo José Luis Seixas e senhora, a banhos em praias de montanha nos mares do Norte, saudáveis terras sem virus e com butelo)

Chipre

Por muitos e bons anos, escreveu-se “em Chipre”. Um dia, um qualquer jornalismo decidiu-se tomar confianças e passou a escrever “no Chipre”. Contudo, em matéria de ilhas mediterrânicas, não vejo essa imprensa inclinada a passar a dizer “na Malta”. Coisas...

domingo, agosto 16, 2020

16 de agosto de 1900



Esta placa está afixada no local em que foi a casa em que Eça de Queiroz morreu, em Neuilly, que entretanto foi demolida.

A placa original, oferecida pela Escola de Belas-Artes do Porto, que havia sido colocada, em 1950, pelo então embaixador português em França, Marcello Mathias, tinha-se tornado quase ilegível, com um desgaste que a tornou irrecuperável.

O queirosiano Luís Santos Ferro, há meses falecido, chamou a minha atenção para a necessidade de ser colocada uma nova placa, assinalando o local da morte do escritor. Optei por mandar fazer (sem encargos para o Estado, diga-se) e colocar uma réplica, em tudo igual à placa original, que se vê na fotografia.

Trouxe de Paris, na minha bagagem, a placa original e entreguei-a à Fundação Eça de Queiroz, em Tormes, Baião, onde está hoje exposta.

Eça de Queiroz


Há precisamente 120 anos, no dia 16 de agosto de 1900, morria em Paris, com 55 anos, um dos mais importantes escritores da língua portuguesa, José Maria Eça de Queiroz. À época, era cônsul-geral de Portugal na capital francesa.

sábado, agosto 15, 2020

Jantar


Tínha passado por lá, há dias, para reservar uma mesa para jantar. Havia uma boa recordação da última visita àquele restaurante. Imagino que apenas nesta época, a casa, pura e simplesmente, não atende o telefone. Leu bem: não aceita telefonemas. Uma imensa deselegância para com os clientes. À hora exata, nem mais um minuto, chegámos. “Vão ter de esperar”. Mau, mestre! As coisas começavam a descarrilar. Se fosse em Lisboa, ter-me-ia ido embora. Há muito que decidi já não tenho idade nem paciência para ficar à espera, à porta de um restaurante, depois de ter sido fixada uma determinada hora, com antecedência. Mas aqui, numa aldeia perto da praia, com tudo o resto, em quilómetros em volta, garantidamente cheio ou sem qualidade, assomou-me uma réstia de paciência comodista, adocicada por um gin tónico (onde terá surgido esta mania de o servir em incómodos copos, que parecem bolas de andebol!), para entreter o tempo. O atendimento, contudo, desde o primeiro momento, havia sido correto, nada arrogante, sem sombra de privilégios de acesso prioritário concedido a clientes conhecidos, como notícias publicadas haviam dado como sendo vício da casa. Pelo contrário: constatou-se um respeito absoluto pela ordem das reservas e até uma abertura imediata para aceitar uma pessoa a mais, face à marcação feita. Por fim, meia hora depois da hora marcada, lá chegou a nossa vez. Síntese: sala simples mas agradável, lista bem construída (e renovada, face ao que conhecia), carta de vinhos apenas razoável, serviço muito delicado e competente, uma comida excelente, preço final nada especulativo e aceitável para a zona e período do ano. A irritação inicial desvaneceu-se, por completo. Saímos muito satisfeitos. Para o ano, comigo furioso, uma vez mais, pela dificuldade no contacto, lá voltaremos. À Dona Bia, na Comporta.

sexta-feira, agosto 14, 2020

Notícias da padeira


Hoje é dia de Aljubarrota. Imagino o sobrolho franzido de alguns, dos que acham que a História tem, nos dias que correm, de ser lida sempre ao contrário, sem o que seremos acusados de alinhar no reaccionarismo da historiografia patrioteira. Salvo os iberistas, uma raça (pode escrever-se raça?) que gostava de poder pagar a bica em pesetas, não vejo que diabo de politicamente correto se pode opor à comemoração da data em que a aristocracia portuguesa, farta de ser mal-tratada por Castela, nomeou um dos seus para gerir este lado da península, com manif ao pé da Ginginha e tudo. Que assim ficou, mais ou menos independente, até hoje. Até sempre, espero.

Deixo aqui uma imagem que me dizem que saiu, no dia seguinte, no “Cavaleiro Andante”, desenhada por Vitor Péon, que passava por ali nesse dia 14 de agosto de 1385.

O estrangeiro próximo


O conceito de “estrangeiro próximo” foi crismado por Moscovo para designar, com assumido paternalismo estratégico, as entidades nacionais vizinhas, resultantes da implosão da antiga URSS, após esta ter sido derrotada na Guerra Fria. São 15 Estados, o maior dos quais é a Federação Russa, sua sucessora no plano internacional.

Com desagrado de Moscovo, em período de enfraquecimento, três desses Estados ingressaram na Nato – Estónia, Letónia e Lituânia. Mas Putin conseguiu evitar, num tempo de maior assertividade, que dois outros viessem a ter um destino idêntico – Ucrânia e Geórgia.

Nestes, a longa mão russa continua a manter uma tutela de influência determinante. No primeiro, na região de Donbass, que rejeita a soberania imposta por Kiev. No segundo, nos verdadeiros “bantustões” que são a Abcásia e a Ossétia do Sul, a que (quase só) Moscovo deu a designação de “países independentes”, após anos de disputa com a Geórgia.

A este tipo de situações convencionou-se chamar “conflitos congelados”, i.e., situações que configuram um “statu quo” de guerra suspensa, por disputas territoriais, que irrompe a espaços.

Dos restantes nove estados resultantes da URSS, cinco estão na Ásia Central, todos com regimes ditatoriais travestidos de democracias – Casaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Turquemenistão e Usebequistão. Não é uniforme o modo como a Rússia se relaciona com cada um deles, mas pode dizer-se que Moscovo mantém um “droit de regard” sobre todos, garantindo que eles não confrontam os seus interesses geopolíticos essenciais.

Dois outros Estados, no Cáucaso do Sul, a Arménia e o Azerbaijão, mantêm entre si um outro “conflito congelado”, sobre o território do Nagorno-Karabakh, que Moscovo segue à distância.

Restam ainda dois países.

Um é a Moldova, entre a Roménia e a Ucrânia, com outro “conflito congelado”, a propósito do território da Transnístria, onde uma velha base militar garante um pé à Rússia.

O outro é a Bielorrússia, encravada entre a Rússia, a Ucrânia, a Polónia, a Letónia e a Lituânia. Desde 1994, é dirigida com mão de ferro por Alexander Lukashenko, à frente de um regime que limita as liberdades dos cerca de 10 milhões de cidadãos do país. Agora, o ditador voltou a ser “eleito”. Com a Rússia, tem uma relação algo estranha, mas de objetiva dependência.

O país é hoje um “buraco negro” dentro de uma Europa basicamente democrática. O ditador e o seu regime foram já objeto de sanções. Por muita pressão que a União Europeia possa fazer, perante alguma complacência objetiva da administração americana, Lukashenko não cairá, enquanto a Rússia não quiser.

A Guerra Fria suspendeu a História por algumas décadas. Desde que acabou, num registo de humilhação para Moscovo, a Rússia criou, em seu torno, um mundo de Estados com os quais mantém uma tensa e diferenciada expressão do seu poder. Não havendo condições para regressar ao anterior estado de coisas, Putin é hoje senhor do tempo dos outros. Isso provoca alguns, sossega outros e dá a todos a certeza de quem, na realidade, continua a mandar por ali.

Restos de conversa

- Os teus textos são, cada vez mais, um problema para mim. Concordo com imensas coisas que neles dizes mas, de súbito, em alguns deles, deparo com algo que me abertamente me desagrada. É estranho porque, no passado, as coisas não eram assim. O que escrevias era mais facilmente aceite, no seu todo. E olha que não sou a primeira pessoa a notar isto! Fazes de propósito?

- Faço e não faço. Até posso perceber que te sintas assim, ao ler o que vou escrevendo. A questão é que, com o tempo, optei por ser mais transparente, de não procurar ser consensual a todo o custo. É que, na vida, nem tudo é a-preto-e-branco. Há sempre aspetos das coisas que não "rimam" com o resto. Por isso, digo o que penso, doa a quem doer - e já vi que dói a alguns amigos, como tu. Mas quero fugir àquela frase do Sérgio Godinho: "estar de bem com os outros e de mal contigo". É só isso.

quarta-feira, agosto 12, 2020

Ordem do dia




Mentiria se não dissesse que tenho a certeza de que houve pessoas que, à vista do anúncio do imenso dinheiro que aí virá da Europa, terão exclamado, desanimadas, para si mesmas ou para os seus próximos: “Agora é que ninguém os tira de lá!”. Alguns, no limiar do masoquismo, terão mesmo lamentado que o país tivesse tido essa inesperada bênção, por entenderem que esse choque financeiro contribuirá para a solidificação de um desequilíbrio político que detestam - e que acham tanto ou mais nefasto do que os males económicos do país. Muitas dessas pessoas, que estão a ler-me agora, assumam-no ou não, sabem que o que escrevo é pura verdade.

Não sou politólogo para conseguir explicar como chegámos aqui, a este entrincheiramento, que se tem vindo a agravar na última década, criando dois mundos antagónicos, alimentados por muita acidez, servidos por palavras ofensivas, pela perda de respeito pelos adversários, pelo enfraquecimento da moderação e do bom senso. 

Muito desse confronto já vinha de trás, quase desde o 25 de Abril. Mas data da última crise financeira o acantonamento que colocou aqueles que viram na “troika” uma oportunidade para queimar etapas, para um choque de reforma liberal, frente a quantos recusavam ver subvertida a ordem da sociedade em que se haviam habituado a viver. Perante a arrogância dos primeiros, muitas vezes insensível e cruel, foi-se enquistando, do outro lado do espetro, uma resistência desesperada que, no limite, conduziu a um entendimento à esquerda, que nada fazia prever como possível. A “geringonça” foi a expressão para-institucional dessa realidade, mas todos já percebemos que continua a haver mais vida à esquerda, para além dela.

O que talvez ninguém estivesse à espera é que, na outra margem política, o desvario viesse a tomar conta das hostes. Apoiado num tremendismo que raia a insanidade, campeia por aí um discurso de “finis patriae“, como se o país estivesse à beira da catástrofe. O alarmismo diário dos títulos da imprensa e da demagogia das televisões, somado ao azedume nas redes sociais, tudo isso gera um caldo de imaginária instabilidade e crise, que as sondagens, sempre ingratas, se encarregam de desmentir.

O atual pessimismo do campo conservador sobre o seu próprio futuro esquece, contudo, uma realidade que o passado nos ensinou: nunca devemos subestimar a capacidade da esquerda de dar tiros nos seus próprios pés. Um dia, mesmo sem saber como, a direita lá regressará ao poder. Aliás, chama-se a isso democracia, para os que não saibam.

Interpretações


Ontem, numa conversa de praia, veio à baila, já nem sei bem porquê, a figura do antigo presidente da Guiné-Bissau, Kumba Yalá, que faleceu em 2014. Lembrei-me de uma história que costumo contar.

Um dia de 2001, na ONU, em Nova Iorque, estive presente, em representação de Portugal, numa reunião do “grupo de amigos da Guiné-Bissau". Os “grupos de amigos” são estruturas informais que agregam vários países com o desejo comum de acompanharem uma determinada situação ou prosseguirem um particular objetivo temático, no quadro das atribuições das Nações Unidas.

O novo presidente guineense fora convidado a fazer uma apresentação sobre a situação que se vivia no seu atribulado país, com vista a mobilizar a boa vontade e a ajuda da comunidade internacional. 

O tempo que lhe fora destinado para intervir foi largamente excedido, mas o seu discurso tinha coerência e demonstrava uma determinação no sentido da correção de algumas políticas, tudo envolvido num registo expressivo que lhe era muito típico, desde logo marcado pelo barrete de lã vermelha que nunca o abandonava.

Com o meu colega brasileiro, Gelson Fonseca, e para potenciar o efeito positivo da reunião, combinei duas intervenções sucessivas de apoio à declaração do presidente, procurando dar ênfase à sua declarada vontade de mudança. 

Outros embaixadores, em especial de países "do Sul", seguiram uma linha idêntica e, a meio da reunião, o ambiente podia considerar-se globalmente positivo, quiçá apenas sobrando as tradicionais reticências face à sustentabilidade das políticas anunciadas, que algumas lideranças africanas, em especial oriundas de países mais frágeis, nunca deixam de suscitar.

O delegado de um país do Norte da Europa abordou, entretanto, a sensível questão da corrupção. 

Notei que Kumba Yalá ficou muito atento à intervenção e, no imediato, pediu para responder. Com muita ênfase, marcou a sua firme determinação em pôr fim ao flagelo da corrupção no seu país. E, a certo passo, agarrando firmemente o ombro da ministra dos Negócios Estrangeiros guineense, que estava a seu lado, disse, bem alto:

- Vou ser muito duro, podem acreditar. Por exemplo: aqui a senhora ministra. Se eu vier a descobrir que ela rouba, que é corrupta, podia mandar matá-la. Mas não, não a vou mandar matar! Mas vai levar tanta porrada, tanta pancada, que nunca mais vai querer roubar. Mas ela não rouba, não! - e dizia isto, rindo-se, contemporizador, abanando a constrangida ministra, que afivelava um sorriso que quero crer que seria amarelo...

Kumba Yalá falava em português e, na sala, para além do embaixador brasileiro e de mim próprio, que tínhamos olhado um para o outro algo preocupados com o facto do presidente poder ter "estragado tudo" com aquelas palavras, creio que só a intérprete, que ia traduzindo as intervenções do presidente, se inteirara do teor da embaraçante declaração. 

Contudo, a coreografia e o tom de Yalá tinham criado uma particular curiosidade nas restantes pessoas à roda da mesa, que aguardavam com expetativa a interpretação.

A intérprete, consciente da delicadeza do momento, olhou para mim, em busca de "ajuda" para superar o problema. Fiz-lhe um gesto discreto, a pretender significar a necessidade de "adocicar" fortemente as frases do presidente. 

E foi então que assisti a uma magnífica demonstração de profissionalismo, com a senhora a dizer algo como: "Mr. President wants to emphasize that corruption, in his country, is not punished with death penalty. Nevertheless, under his leadership strong mesures will be taken against those who may incur in such practices, even if they are members of his own government" (O senhor presidente deseja sublinhar que a corrupção, no seu país, não é punida com pena de morte. No entanto, sob a sua liderança, serão tomadas fortes medidas contra quantos venham a incorrer em tais práticas, mesmo que se trate de membros do seu governo).

Olhei para o meu colega brasileiro e demos um suspiro de alívio. No final, dei uma palavra de parabéns (e gratidão) à intérprete. Tinha-nos ajudado a salvar a sessão. Uhf!

O futuro