terça-feira, setembro 01, 2020

De verde


Foi vestido de verde que conheci o António Franco, que nos deixou há algumas semanas e que hoje vai ser evocado pela família. Ele também estava de verde. Foi em Mafra, na Escola Prática de Infantaria, na segunda incorporação de 1973.

Não estávamos sozinhos. Éramos umas centenas, creio que 900, todos vestidos do verde da farda, recém tirados à vida civil, por um período que não podíamos prever, mas que podia ir até mais de três anos, com guerra colonial em África pelo meio, para a esmagadora maioria daqueles que por ali estavam, nas lúgubres traseiras do convento que ainda não tinha obtido glória por via literária.

Éramos muito diversos. Havia por ali gente casada, com filhos, curso superior, vida organizada, alguns a aproximar-se dos 30 anos, ao lado de uns miúdos a quem a tropa tinha apanhado cedo, logo após a vintena. O António estava no grupo dos primeiros. Eu estava no meio da tabela etária, já empregado, prestes a casar.

Creio que foi um primo do António - engenheiro, Ribeiro, de seu nome, que perdi de vista desde então - quem nos apresentou. Despachada a “tropa”, saídos com alívio das tarefas castrenses, íamos jogar cartas e roleta para uma casa que o Vasco Bramão Ramos tinha na Ericeira.

O António, ao que recordo, terá trazido a roleta. As cartas existiam lá por casa. Eu levava apenas uma irritada irreverência que disfarçava um mal-estar crónico pela condição militar, que nunca me passaria. Esses fins de tarde só não eram de total diversão porque havia que estudar para os testes “americanos”, sem o êxito nos quais nos arriscávamos a perder a saída do fim de semana. Ali se aprendia que o sargento da guarda “rende e ronda”, decoravam-se magnas questões das temáticas da “ordem unida” (a coreografia militar na parada), inteirávamo-nos das subtilezas do funcionamento da culatra da G3 e de outros temas tão ou menos apelativos do que esses.

Julgo não macular postumamente a folha militar do António se agora revelar que ele tinha conseguido obter, por artes que nunca cuidei em saber, para não ter de partilhar o pecado, os testes do ciclo anterior ao nosso - e facilmente se perceberá que a imaginação militar nunca iria ao ponto de mudar o conteúdo das perguntas, de um ciclo para o outro. Aquele quarteto de soldados-cadete não só comungava esse imenso segredo como era mesmo obrigado, no momento do teste, a errar deliberadamente em uma ou duas questões, para não parecer excessivamente “perfeito”. Para que conste, nunca falhámos um fim de semana em casa.

O António, sem surpresa, era o soldado-cadete (já não me recordo como isso era designado) que sempre coordenava e apresentava o seu pelotão, bando de trinta cadetes em que se dividem as companhias. Ficou famoso pelo garbo com que o fazia, num estilo sempre irónico.

Um dia, creio que nas festas de Mafra ou da unidade, em que todos fomos obrigados a mudar de farda umas quatro ou cinco vezes, para atender à diversidade daa funções, ao ser inquirido na formatura da saída, por um tenente “chicalhão” (dizia-se dos milicianos que gostavam mesmo daquilo, ao ponto de algum sadismo sobre quem era comandado), como é que apreciara a forçada agitação de vestes durante a jornada, o António crismou uma frase que ficou nos anais do ciclo: “Saiba vossa senhoria, meu tenente, que, ao ter de me vestir e despir tantas vezes, no mesmo dia, por um momento senti que esta venerável Escola Prática se assemelhava a uma casa de meninas, sem qualquer ofensa para estas últimas, bem entendido!”

Mafra acabou, depois desses três meses que registei como dos mais sinistros da minha vida, mas que o António, surpreendentemente, achou divertidíssimos. E, sempre de verde, lá marchámos, salvo seja, para a Escola Prática de Administração Militar, no Lumiar, em Lisboa.

É que, dos 900 bravos cadetes de Mafra, nove havíamos sido os felizes eleitos, por testes psicotécnicos, para a simpática especialidade de Ação Psicológica, uma área em que se era “operacional” pela palavra. Desses nove, os primeiros três classificados ficariam garantidamente na “metrópole”, sendo os restantes seis destinados às “províncias ultramarinas”, mas sempre acolhidos no conforto dos respetivos quartéis-generais, onde a “Apsic”, com razão, era uma tarefa muito invejada.

Posso revelar que, ao final desses mais três meses de “instrução”, o António, o Jaime Nogueira Pinto e eu fomos classificados para não pôr os pés nas “possessões ultramarinas”. O Jaime, coerente, não aceitou e quis logo avançar para Angola “rapidamente e em força”, o António foi requisitado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros (o que era possível, por não ter sido mobilizado para o “esforço de guerra”) e só eu fiquei pelo Lumiar, a dar aulas de patriotismo oficioso, até que Abril se proporcionou.

Tinham assim terminado os seis meses em que eu e o António Franco andáramos juntos, de verde, quase todos os dias. Ele voltou, entretanto, às gravatas das Necessidades, “farda” que, por sugestão dele, vim também a envergar, tempos mais tarde. O resto é sabido.

Tenho uma forte saudade do António, é tudo quanto se me oferece agora dizer, para usar o gongorismo que ele tão bem manejava, para raiva de muitos e gozo de quem lhe apreciava o humor, que nunca o abandonou até ao fim.

7 comentários:

Joaquim de Freitas disse...

Tem piada, estas escolas militares têm todas que se lhe diga…Também andei por uma, de milicianos, durante seis meses, mas dum grau inferior, em Tavira, onde, para nos preparar a escrever à máquina nos ministérios, em Lisboa, nos ensinavam primeiro a manusear a Mauser e a sua baioneta, indispensável…para os combates de corpo a corpo !

“Gostei” dos detalhes descriptivos da baioneta, que toda a gente sabe vem do francês, “bayonnette”, e do nome da cidade de Bayonne…

Transforma a espingarda numa arma polivalente. Mata-se a tiro e à facada…Ou morre-se !

O capitão da GNR que nos “formava” tinha bem explicado que a sarjeta côncava ao longo da lâmina serve para “deixar passar o ar na ferida, afim de poder retirar a baioneta mais facilmente…e passar para outra vítima! Eu pensava que era para lhe dar mais flexibilidade…

Mas não evitou que um “instruendo” tivesse compreendido que era para que o “sangue escorresse melhor” quando pinga na ponta da baioneta…Charmant…

Tendo compreendido isso, que fazia de nós “prontos” a matar outrem, porque se não mata morre, lá íamos parar ao ministério para um ano de férias bem merecidas…

Com sorte, fui parar a um departamento próximo da Sé, onde passava o meu tempo a escrever encomendas aos “americanos” (o outro vai exultar!) de peças soltas para os blindados da NATO em Tancos , e outras Fábrica de Braço de Prata…

“Enrichissant” o serviço militar…

Corsil Mayombe disse...

Segundo turno da incorporação de 1973,assim é que está correto.

A forma de tratamento Vossa senhoria,aplica-se às classes de capitão e oficiais superiores.
Tenente é oficial subalterno.

Quanto aos "miúdos" a quem a tropa havia apanhado cedo, das duas uma:
1.Terminado o curso geral do liceu,ou técnico,davam por concluído o percurso académico.

2.Ingressavam no ensino superior e requeriam adiamento de incorporação,sendo condição sine qua non para o deferimento do mesmo,o efetivo aproveitamento da frequência académica,até ao ano da incorporação militar.

O aspirante a oficial Francisco Seixas da Costa,era da incorporação de 1969.
Não cumpriu com o requerido no ponto 2.
Grande mistério...!






Anónimo disse...

Uma bonita prova de Amizade.

Gostei.

Anónimo disse...

Eu também frequentei Mafra mas na 4ª incorporação de 1971, fui apanhado na metade do curso de Direito, não beneficiei da "chico espertice" dos testes americanos pelo que fiquei um ou dois fins de semana na reclusão do convento; apanhei a especialidade de atirador de infantaria e malhei com os costados na Guiné de 72 a 74; apanhei lá o 25 de Abril já em final de comissão; conheci o António Franco em Luanda e a convite dele participei num almoço com o Nuno Brederode Santos, o Dr. Silva Lopes e mais não me lembro.

Corsil Mayombe disse...

Joaquim de Freitas no seu melhor, com "narrativas" de faca e alguidar,fora do contexto da instrução militar, qual ALA(Toninho Lobo Antunes) das fake news da guerra do ultramar!...

.

Joaquim de Freitas disse...

Corsil Mayombe « respira » o militarismo no seu « argumento » …E ignora que a minha narrativa fazia realmente parte da « instrução » militar que recebi…Talvez a imagem do sangue que escorre ao longo da baioneta o choque… Os militares intoxicados pelas armas e a disciplina são, por vezes, delicados…excepto quando são “chicalhoes” como o Sr. Embaixador bem descreveu no seu texto…

PS) Obrigado por me comparar a António Lobo Antunes, grande poeta e escritor. Leia os “Cus de Judas”, que lhe farão bem…

Corsil Mayombe disse...

À att. Joaquim de Freitas:

Fico grato ao nosso Sargento Freitas,por me ter poupado com sintético comentário!....

Voltando à carga em matéria de "chicalhões",mais informo que a esmagadora maioria dos ditos,se encontrava na classe de Sargentos do Q.P.

CORDIAIS SAUDAÇÕES.

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