quinta-feira, maio 14, 2009

Bayrou

François Bayrou é, actualmente, a mais destacada figura política do centro político francês - um lugar ideológico que, até agora, não tem por aqui uma história de grande sucesso na ascensão a lugares cimeiros nas principais instituições do Estado, se descontarmos o caso pontual de Alain Poher, cuja derrota eleitoral, contra George Pompidou, significou o seu ocaso político.

Antigo ministro, actual deputado, candidato nas últimas eleições presidenciais, François Bayrou tem vindo a tentar afirmar um projecto próprio, o qual, como agora se verifica, passa por uma oposição muito forte ao presidente Sarkozy. É nesse quadro de combate político que se insere um feroz libelo que lançou contra o chefe de Estado, na forma do seu livro "Abus de Pouvoir", que acabo de ler. Embora noutro tempo e noutro contexto, este livro não deixa de nos recordar o "Le Coup d'État Permanent", de François Mitterrand, talvez o mais violento livro de que me recordo, publicado por um político no activo, contra o General de Gaulle.

Recordo um episódio em que entra François Bayrou. Estávamos em 2000, durante a presidência portuguesa da União Europeia. Era o tempo do isolamento da Áustria pelos outros "catorze", por virtude do acesso de um partido de extrema-direita ao poder, em Viena. Coube-me apresentar essa decisão ao Parlamento Europeu, em Bruxelas, no início de uma sessão que acabou por ser bastante turbulenta. Num determinado momento, fui objecto de uma violenta intervenção de Jean-Marie le Pen, a que me recordo de ter respondido com rispidez. Bayrou saiu em minha defesa e, de certo modo, acabou por ajudar a equilibrar o debate.

Mas este post serve, essencialmente, para sublinhar que existe em França, de há muito, uma tradição, por parte dos actores políticos, de mobilizarem o debate através da publicação de livros, o que permite contrastar teses e fazer assentar a polémica num confronto de ideias, que não exclui, bem entendido, o corrente uso de picardias pessoais. Ministros, deputados, senadores e outras figuras conhecidas recorrem, com frequência, à expressão publicada das suas posições, o que não deixa de ser fascinante para um observador atento à realidade política francesa.

Não sei se o nosso mercado livreiro teria elasticidade para tal, mas creio que seria muito salutar se a vida política portuguesa fosse pontuada, com mais regularidade, com obras de ideias produzidas por políticos nacionais no activo.

Holocausto

Hoje de manhã, numa conferência na Fundação Calouste Gulbenkian, aqui em Paris, Eduardo Lourenço dizia que, se pensarmos bem, a escravatura pode ser considerado o primeiro holocausto. Nunca me tinha ocorrido, mas, como quase sempre, ele tem razão. Porém, nem todos são da minha opinião.

À noite, com amigos seus, tive o privilégio de ter Eduardo Lourenço a jantar em casa, falando-nos do mundo e da Europa que o fascina e intriga. Quem, no nosso país, reflecte em profundidade sobre a Europa e o papel de Portugal nela, senão Eduardo Lourenço?

quarta-feira, maio 13, 2009

Desconseguir

Li ontem que um responsável de um jornal português teria afirmado que a publicação de um suplemento ia ser "descontinuada". À parte a tristeza pelo fim do caderno, nada de mais grave se passa, em matéria de correcção do português: a palavra existe. Não é bonita, lembra o anglo-saxónico "discontinued", mas está aceite pelos dicionários.

Porém, se assim é, não percebo porque não se adoptam outras fórmulas semelhantes, de que a mais elaborada será, com certeza, a que se ouve muito em Angola: "Conseguiste chegar a tempo ao banco? Desconsegui".

Lula

Lula da Silva, presidente do Brasil, vai receber o prémio Houphouet-Boigny, da UNESCO, destinado a personalidades que contribuiram para a paz mundial, decisão para a qual, julgo saber, muito contribuiu Mário Soares.

O presidente Lula merece bem este prémio, como construtor maior de um Brasil mais justo, menos desigual, atento aos grandes desafios globais. Depois de Fernando Henrique Cardoso, que colocou o Brasil na agenda da modernidade, Lula da Silva conseguiu conduzir o seu país a um lugar de prestígio, à escala mundial, nunca no passado igualado.

A título muito pessoal, parabéns Presidente!

Cultura

Foi há pouco anunciado que Guimarães será, em 2012, a Capital Europeia da Cultura.

Julgo que muitos portugueses não se terão ainda dado conta da fantástica mutação que Guimarães tem vindo a sofrer, ao longo dos últimos anos, através de uma inteligente recuperação do património e de melhoria da sua paisagem urbana.

terça-feira, maio 12, 2009

Visita de Estado

Os três dias tinham passado na agitação e correria que é tipica das visitas presidenciais a um país estrangeiro. Na manhã seguinte, far-se-ia o regresso a Portugal. O ministro e a sua mulher, acabado que foi o último jantar oficial, voltaram cansados ao quarto do hotel, ansiando por uma boa noite de sono.

Havia, porém, um ritual a cumprir: neste género de deslocações, as regras logísticas obrigam a que os membros das comitivas deixem as malas, do lado de fora dos quartos, aí pelas cinco da manhã, por forma a serem recolhidas pelos bagageiros, que as colocam no avião, bem antes da partida. É desta forma que os presidentes e as suas comitivas podem sair directamente dos hotéis para os aviões, já sem precupações com as bagagens.

Para isso, porém, há que fazer as malas bem cedo, deixando para trás apenas as coisas básicas de higiene e o vestuário para essa manhã. Foi essa regra que a mulher do ministro cumpriu, já com o marido a dormir. Concluída a função, colocou as malas à porta e foi-se deitar.

No dia seguinte, aí pela sete horas, o ministro toma o seu duche e - surpresa das surpresas! - dá-se conta de que a sua mulher, por lapso, tinha colocado nas malas o seu par de sapatos. A essa horas, as malas já deviam estar no avião!

Que fazer? Era um "país de Leste", as lojas da cidade estavam fechadas, o "concierge" do hotel revelou-se sem soluções. E, há que convir, era política e socialmente imprudente o ministro surgir em peúgas na fila de cumprimentos. Ou não surgir, o que seria protocolarmente muito grave e abriria lugar a infindáveis especulações.

É nessas horas que os embaixadores justificam a sua existência. Ou não. O meu colega em posto foi alertado para a crise ministerial quando já estava, no seu carro, prestes a chegar ao hotel. "Que número usa, senhor ministro?". A resposta "41" terrificou-o, olhando desolado para os seus pés "38" e para a impossibilidade de encontrar, na sua própria casa, uma alternativa. O carro continuava a rolar em direcção ao hotel, onde o presidente o esperava. Mas o embaixador tinha bem claro que o seu ministro também o esperava, embora ainda no quarto, e, claro, aguardando uma solução. Na falta dela, como seria de presumir, lá se iria a desejada promoção e o tal posto, uma sinecura simpática que prometera à sua mulher e que perseguia há muitos anos, como fim de carreira.

Que importava a qualidade dos dossiês técnicos, que a Embaixada tão bem tinha caprichado em trabalhar e apresentar, face ao drama do ministro? Que representavam anos de bons serviços, perante a presumível fúria ministerial, que o gáudio da comitiva iria potenciar?

Apesar da hora matutina, pouco propensa a rasgos, o nosso embaixador, olhando casualmente de viés entre os bancos da frente do seu Mercedes de serviço, a pedir uma substituição que o chefe da gabinete do ministro lhe assegurara na véspera, intui uma solução: nos pés do seu motorista. "Ó Arnaldo, que número é que você calça?". Surpreendido pelo intimismo do seu sempre reservado chefe, o Arnaldo responde: "40, senhor embaixador". E aí, pese embora o diferencial que a tragédia tornava irrelevante, o Arnaldo selou, em glória, o seu destino matinal: lá se ficou no carro, em peúgas, até ao regresso à Embaixada, depois da partida da comitiva presidencial.

Dizem-me que o ministro arvorou, nas despedidas, um ar grave e compungido, que alguns jornalistas - rapazes bem sagazes - levaram à conta da tensão entre o governo e o presidente, que os últimos meses tinham agravado. Ora a verdade, porém, era bem mais terra-a-terra.

segunda-feira, maio 11, 2009

Souvenirs, souvenirs

Tinha-o perdido de vista há muito tempo, pensava-o reformado, a tratar de netos. Afinal, chegado a França, dou-me conta que Johnny Halliday ainda mexe, vai no quinto casamento, inicia, em breve, "mais uma última tournée", já com lotações quase esgotadas, actuou no seu 25º filme (desta vez no Japão, queixando-se de quase não ter falas na fita, vá-se lá saber porquê...) e tem uma renovada biografia escrita pelo embaixador francês em Malta.

Apesar de alguns anos mais velho, Halliday é "um rapaz do meu tempo", um tempo em que tinha como namorada Sylvie Vartan e arrasava musicalmente a França e a concorrência, o que, em Portugal, acompanhavamos, com algum "voyeurisme" adolescente, através da leitura do "Salut les Copains". Nunca fui um incondicional: seguramente por defeito próprio, a sua canção de que sempre mais gostei era a versão francesa do "The House of the Raising Sun", aqui traduzida pelo "Le Pénitencier".

Halliday foi o émulo francês possível de Elvis Presley, mas, contrariamente ao cantor americano, a sua carreira teve escasso impacto fora do mundo francófono, onde, contudo, é um ídolo incontestado. Alimentou sempre um estilo de "bad boy", que vai bem com o seu tom de voz e a figura de roqueiro "blouson cuir", olhar castigador e moto à ilharga. Um dia, creio que em 1971, fiquei à porta de um concerto seu, em Bayonne ou Biarritz, à falta de bilhetes. Hoje, confesso, não tenho nostalgia suficiente para me bater por uma entrada num espectáculo para o ouvir.

Mérito

Há portugueses em lugares internacionais de que muito me orgulho de ser compatriota.

É o caso de Marta Santos Pais, que acaba de ser nomeada pelo Secretário-Geral da ONU como sua Representante Pessoal para a Violência contra as Crianças. Trata-se de uma reputada jurista portuguesa que, sem grandes alardes mediáticos mas com uma elevada competência, tem feito um magnífico percurso internacional, que muito honra o nome de Portugal.

Parabéns, Marta.

Diplojazz


Sei que alguns fantasmas históricos serão inclementes, mas decidi que um concerto de jazz era a melhor forma de hoje inaugurar uma série de espectáculos musicais nos salões da Embaixada em Paris.

À bateria do português Pedro Viana juntou-se, ao piano, a romena Ramona Horvath e o contrabaixo do franco-brasileiro Guillaume Duvignau para uma hora de jazz europeu e de outras partes do mundo, assistido por cerca de uma centena de convidados.

Ah! E os dourados não foram abalados, descansem...

Islândia

A Islândia anunciou que poderá, em breve, pedir a sua adesão à União Europeia. A grave crise por que passa aquele país terá demonstrado agora aos islandeses as virtualidades do processo integrador do continente e, em especial, a redução das vantagens da sua singularidade. De facto, e não obstante a gravidade da situação que ainda se vive por toda a Europa, a pertença à União, em especial ao euro, tem-se revelado, não apenas um importante factor de controlo da instabilidade, mas igualmente um modo dos países mais frágeis terem a sua voz melhor representada nas instâncias decisórias à escala global.

Será que a Noruega e a Suíça, no último caso reduzidas que foram as vantagens bancárias comparativas de que dispunha, acabarão por seguir por caminho idêntico?

Voto


Este blogue, por razões que eu julgava óbvias mas que, pelos vistos, não o são assim tanto para alguns dos seus leitores, tem por opção própria não tratar de questões de política interna portuguesa contemporânea.

Porém, porque estamos num ano em que haverá várias eleições em Portugal, que alguns dos nossos leitores de França têm natural interesse em seguir, recomendo o blogue Margens de Erro, um excelente e muito equilibrado repositório analítico das várias sondagens que vão sendo produzidas no nosso país.

domingo, maio 10, 2009

"Isto anda tudo ligado"

Um saudoso jornalista e poeta, Eduardo Guerra Carneiro, escreveu um dia um livro com o título deste post. É bem verdade que tudo anda ligado. Os portugueses que vivem em França foram e, por vezes, continuam a ser testemunhas de violências urbanas bem similares às que agora estão a ocorrer no bairro da Boa Vista, em Setúbal. E sabem que esses eventos são o somatório trágico das tensões culturais, da exclusão social, das rupturas do tecido familiar, dos problemas económicos e da quebra da autoridade de um Estado com o qual os jovens envolvidos não sentem qualquer solidariedade. Mas eles também sabem que, sem segurança e sem o pleno apoio a quem a exerce democraticamente, as sociedades não se sustentam e a vida quotidiana se torna num inferno.

Portugal é um país que, nas últimas décadas, passou por um processo acelerado de integração dos seus imigrantes, que são hoje mais de 5% da sua população. A grande maioria desses imigrantes, oriundos de países muito diversos, tem como simples projecto a melhoria das suas condições de vida, pelo que não deve ser confundida com uma minoria que tende a envolver-se em acções criminosas, a qual deve ser reprimida, como quaisquer outros delinquentes, portugueses ou não.

Mas o nosso país, que tem um histórico de presença externa no mundo das migrações que o obriga a alimentar uma forte cultura de integração, tem a obrigação de estar bem vigilante face à emergência de pulsões populistas, de natureza xenófoba ou racista, que, como se tem visto em todo o mundo, sempre partindo de muito legítimas preocupações securitárias, rapidamente podem descambar em demagógicas campanhas de intolerância. E uma coisa tenho por certo: temos de ser radicalmente intolerantes perante a intolerância.

Da Costa

Está ainda muito longe da fama de Joaquim Agostinho, mas a vitória que o português Rui Costa - por aqui chamado Da Costa - obteve na importante prova "4 Dias de Dunkerque" abre um tempo novo na imagem do ciclismo português em terras de França.

E, por uma qualquer razão que me escapa, confesso que me agrada ver este nome num podium francês...

sábado, maio 09, 2009

Amigo de Alex

Alexander Ellis é o jovem e brilhante embaixador do Reino Unido em Portugal. Conheci-o há cerca de 15 anos, quando era visita frequente do Palácio da Cova da Moura, onde "arrastava a asa" àquela que é hoje a sua mulher e, à época, era uma diplomata colocada na Secretaria de Estado dos Assuntos Europeus. Depois disso, cruzámo-nos algumas vezes pelo mundo, a última das quais no Brasil, quando por aí passou nas suas errâncias comunitárias.

Porque falo do meu amigo Alex? Porque a "Sábado" me recordou que tem um blogue em português, aliás criado bem antes do meu, com comentários muito interessantes em que, nomeadamente, reflecte um olhar britânico sobre algumas coisas portuguesas. E um dos posts mais recentes fala dos embaixadores do seu país que têm um blogue. Leia aqui.

No "Le Canard Enchaîné"

Tendo sido anunciado que a Fiat vai salvar a Chrysler, será que a Solex vai acabar por ajudar a Harley-Davidson?

sexta-feira, maio 08, 2009

O Hino da Liberdade

Neste dia em que se comemora a vitória dos Aliados sobre a barbárie nazi, nada melhor do que rever este emocionante extracto do filme "Casablanca". Nele se nota que "La Marseillaise" era então o outro nome da Liberdade.

Gendarmes

Uma deslocação oficial, por algumas horas, à Côte de Azur, fez-me hoje deparar com alguns gendarmes à borda das praias mediterrânicas.

Apesar da seriedade da cerimónia - uma muito digna e bem organizada comemoração da vitória aliada na 2ª Guerra Mundial -, confesso que, no local, não consegui deixar de lembrar-me de Louis de Funès e dos seus garbosos ajudantes...

quinta-feira, maio 07, 2009

A senhora dona

Foi no Maputo, há já uns anos.

A lista dos condecorados era longa e o respectivo leitor, de nacionalidade portuguesa, era, manifestamente, uma pessoa pouco sensível às letras moçambicanas. Assim, sem hesitação, anunciou a certa altura da solenidade: "E agora, vai receber a ordem X a Senhora Dona Mia Couto".

Um frémito de embaraço e riso sacudiu a audiência. Mia Couto, o excelente escritor de Moçambique, afivelou um sorriso por detrás dos óculos e da barba, encaminhando-se para o palco onde o presidente português o aguardava, claramente um pouco incomodado com a inesperada feminização do agraciado.

Um colega meu, de graça rápida, logo deixou cair, baixo: "Ainda bem que hoje não é condecorada a Senhora Dona Sara ... mago!".

i agora

O grande profissionalismo de Martim Avillez Figueiredo e a coragem do grupo económico Lena juntaram-se para lançar hoje, no meio de um tempo de crise, um novo jornal, o "i". Prometem um estilo directo e novo. Só se lhes pode desejar todo o sucesso. Leia a sua edição online aqui.

quarta-feira, maio 06, 2009

Tratado de Lisboa

A aprovação pelo Senado da República Checa do Tratado de Lisboa, que ontem teve lugar, representa um passo importante no caminho para a estabilização institucional da Europa. Para a entrada em vigor do Tratado, restam agora - o que não é de somenos, diga-se - a assinatura do presidente checo e um desfecho positivo do referendo irlandês. Mas é obvio que esta foi uma etapa muito importante no caminho para a sua plena aprovação.

O Tratado de Lisboa, como todos os documentos de natureza multilateral, foi o resultado possível de um compromisso laborioso entre interesses de diversa natureza, por vezes mesmo algo divergentes. Talvez nenhum dos países signatários se reveja, em absoluto, no texto que foi assinado. Mas essa é, talvez, a prova de que o Tratado representa hoje o denominador comum possível, numa Europa mais heterogénea do que nunca.

Já bem depois do Tratado ter sido assinado, o mundo entrou numa séria convulsão, com uma crise económica de uma dimensão quase sem precedentes, que obriga a respostas rápidas e, essencialmente, a formas coordenadas de actuação, em especial nos fóruns internacionais onde se repercutem os efeitos dessa mesma crise. E tal como um país não deve demonstrar uma fragilidade das suas instituições quando é sacudido por instabilidades internas, também a União Europeia só pode estar à altura das responsabilidades que o seu potencial económico impõe quando conseguir apresentar um processo interinstitucional consensual, nomeadamente em tudo quanto se reflicta na definição das posições gerais que marcam os seus quadros interno e de relações externas. Essa é, aliás, a melhor forma de evitar a tentação de recurso a soluções de raiz nacional, porventura populares mas perigosas para os compromissos colectivos já assumidos, que podem colocar em causa o próprio tecido de relações contratuais construído ao longo de mais de meio século.

Acresce que a situação actual, para além da instabilidade económica que atravessa o mundo, apresenta outros graves riscos de natureza estratégica e de segurança, face aos quais a Europa tem obrigação de definir uma posição sólida e coerente. Isto é tanto mais importante quando o surgimento de uma nova administração americana, aparentemente aberta à reconsideração de certas políticas e à redefinição de importantes equilíbrios à escala global, parece oferecer-nos uma janela de oportunidade para a fixação de uma nova parceria transatlântica, susceptível de sustentar um tempo de paz e estabilidade.

O Tratado de Lisboa, para além das legítimas interrogações que algumas das soluções que prevê possam suscitar, parece ser hoje o lugar geométrico possível da esperança numa Europa mais sólida. E, para um país como Portugal, o futuro passa, cada vez mais, por essa mesma Europa.

terça-feira, maio 05, 2009

Vasco Granja (1925-2009)

Uma dia, numa conversa casual em Lisboa, apresentados por um amigo comum, Vasco Granja revelou-me ter sido ele a pessoa que respondia às cartas de quem, como eu, era fiel e activo leitor da revista portuguesa de banda desenhada "Tintin", nos anos 60 do século passado.

Homem do cine-clubismo e apaixonado pela banda desenhada, Vasco Granja era uma figura serena, que trouxe à televisão portuguesa um "outro" cinema de animação, diferente do que então conhecíamos e, naturalmente, muito distante daquele que hoje se produz. Era um apaixonado por uma escola serena da animação cinematográfica, mais pedagógica e nada violenta, trazendo-nos nomes estranhos de autores desconhecidos do Centro e do Leste da Europa e, em especial, de um génio que descobrimos pela sua mão, o canadiano Norman McLaren.

Faleceu aos 84 anos. Como homenagem, deixo a imagem de um dos seus heróis de estimação, a figura criada por Hugo Pratt, Corto Maltese.

segunda-feira, maio 04, 2009

"Les Portugais"

A memória dos tempos mais duros da emigração portuguesa para França pode ser ainda penosa para uns, mas é honrosa para todos. E faz e fará sempre parte do nosso património histórico colectivo.

Nesse outro tempo de 1971, Joe Dassin era uma voz que trazia o modo como a França via os portugueses. Ouçam o "Les Portugais" aqui.

"Arquipélago da Palestina"

Vale a pena atentar naquilo em que hoje se transformou a terra dos palestinianos, a que o Le Monde Diplomatique chama, com graça amarga, o "Arquipélago da Palestina Oriental". Clique no mapa para ver melhor.

domingo, maio 03, 2009

Rigoroso inquérito

Há uma conhecida e vetusta instituição que, em Portugal, assume o título ritual de “rigoroso inquérito”.


Depois de um acidente ou incidente grave, de uma vigarice com impacto ou de uma qualquer disfunção pública relevante, desde que com expressão mediática, aparece quase sempre a rassurante declaração de que as "entidades competentes" (privadas ou públicas) decidiram “instaurar”, sobre o assunto, um “rigoroso inquérito”. Mas não se pense que se trata de um inquérito de rotina: é sempre um estudo que tem de ser qualificado de “rigoroso”, com o objectivo de sossegar as consciências, no sentido de que nada ficará por investigar e de que ninguém ficará impune. Se se ler bem a comunicação social, verificarão que, quase todas as semanas, surge o anúncio de um “rigoroso inquérito” que foi instaurado, deduz-se que com gente a arregaçar de imediato as mangas na investigação, com limites temporais para apresentar os resultados, com a ameaça de uma espada de Dâmocles sobre os responsáveis a punir.


Passam dias, semanas, meses e que acontece? Na esmagadora maioria das vezes nada se sabe, muitos destes inquéritos devem ser arquivados, outros terão ido avante, mas a emoção já passou, a comunicação social já está noutra, ninguém pergunta por eles.


É pena que não haja alguém que tenha tempo para fazer o registo e o acompanhamento regular, aí de três em três meses, com alarde público, por exemplo num blogue ou num site, com os resultados práticos e as conclusões de tais inquirições, assinaladas as respectivas responsabilidades nominativas. Que se saudassem os resultados, quando os houver, até como exemplo positivo a apontar. E que denunciassem, bem alto, os casos em que nada se passa, em que a montanha nem um rato pariu. Teria imensa graça e, estou certo, certos “responsáveis” passariam a ter mais cuidado para que ninguém sorrisse quando anunciassem o próximo “rigoroso inquérito”.

Fitas

É o retrato lamentável de um certo Portugal contemporâneo o espectáculo anual que nos é dado pela Queima das Fitas, começando em Coimbra mas espalhando-se um pouco por todo o país, que enche os serviços de urgência dos hospitais com estudantes a cair de bêbados. Os serviços públicos de saúde têm mais que fazer do que estar a gastar recursos com quem, pelos vistos, reserva para o álcool o dinheiro que diz não ter para pagar propinas. E é especialmente cínica a "cooperação" das empresas cervejeiras no evento, disfarçando a sua cumplicidade com anúncios rebuscadamente "soft", onde a lei do politicamente correcto as leva a inserir envergonhados apelos à moderação nos consumos.

Significativo não deixa de ser o facto de, à parte alguns comentários de circunstância, tidos à conta de uma leitura retrógrada da vida, ninguém parecer preocupar-se muito com isto, desde os pais às autoridades académicas, como se fosse já inelutável este estado de coisas - e, naturalmente, como se combatê-lo pudesse representar um inqualificável atentado aos sagrados "direitos dos estudantes".

sábado, maio 02, 2009

Blogue

Há três meses, dia por dia, foi iniciado este blogue. O objectivo pretendido, definido no primeiro "post", foi globalmente conseguido, embora confesse que gostaria que a percentagem dos visitantes oriundos de França fosse ligeiramente maior.

Como se poderá verificar, clicando o "sitemeter", à direita da página, houve diariamente cerca de 250 pessoas a consultar o blogue, o que faz com que, desde 2 de Fevereiro, mais de 20 mil consultas individualizadas tivessem sido feitas, se bem que as consultas a páginas, em grande parte através dos motores de busca da internet, ultrapassassem 50 mil. Atendendo às características dos textos do blogue, nomeadamente à diversidade dos seus "posts" - cerca de 200, desde o início -, considero surpreendente o nível de leitura média diária atingida. Uma palavra particular de apreço aos 62 leitores habituais que, até à data, se increveram no blogue.

E, por hoje, na ressaca do Dia do Trabalhador, em que poderíamos ter desfilado como na imagem, o blogue fica-se por aqui.

sexta-feira, maio 01, 2009

Cleonice

Foi uma hora e quarenta minutos de exposição. Mas, para as dezenas de pessoas presentes, ao final da tarde de ontem, na Fundação Gulbenkian, em Paris, pareceram escassos os minutos que demorou a palestra da Professora Cleonice Berardinelli, apresentando a sua visão sobre Camões, nas suas dimensões lírica e épica.

Num francês magnífico, servido por uma dicção soberba, por uma memória privilegiada, do alto dos seus inacreditáveis quase 93 anos, a decana dos estudos de língua e cultura portuguesa no Brasil - e, provavelmente, em todo o mundo - revisitou a poesia camoneana, com arte e profundidade, numa viagem interessantíssima, da qual a generalidade dos presentes terá saído com vontade de reler rapidamente Camões.

É muito graças ao esforço e dedicação destes lusófilos que as grandes figuras da história da cultura portuguesa permanecem na agenda académica, por esse mundo fora.

quinta-feira, abril 30, 2009

1º de Maio de 1974


Imagem de Portugal

Durante o debate que se seguiu a uma palestra que proferi ontem na Cidade Universitária de Paris, e cuja tradução se pode ler aqui, uma estudante perguntava-me sobre o modo como Portugal era, nos dias de hoje, visto do exterior, passados que foram 35 anos desde o 25 de Abril.

É sempre muito complexo tentar sintetizar, em poucas e sempre subjectivas palavras, um olhar que é, por definição, plural e não unívoco. Mas é meu entendimento que a imagem internacional de Portugal sofreu bastante durante o período do Estado Novo, em especial quando se opôs ao movimento descolonizador, ao mesmo tempo que teimava na manutenção de um regime cerceador das liberdades. Além disso, um país que obriga à emigração dos seus cidadãos é um país que não se prestigia: por regra, cada um deve poder encontrar, na terra que o viu nascer, a forma de sustentação e de desenvolvimento da sua vida. A emigração pode ser uma opção, não deve ser nunca um destino. E, em Portugal, foi-o por quase dos séculos. E a nossa imagem colectiva não deixou de sofrer com isso.

Com a recuperação da democracia, em 1974, uma onda de boa-vontade espalhou-se sobre Portugal, recebido de braços abertos pela comunidade internacional, em especial nos organismos multilaterais, com os quais o novo regime procurou, desde o primeiro momento, trabalhar de forma altamente colaborante. Portugal conseguiu então captar a simpatia de muitos países e sectores de que estivera alheado. E, sem dúvida, a imagem internacional do país reforçou-se muito com a institucionalização democrática, com a integração europeia, com a adesão a objectivos respeitáveis na ordem externa - de que o caso da autodeterminação timorense é talvez o melhor exemplo.

Ao longo dos últimos 35 anos, a diplomacia portuguesa soube projectar a imagem de um país com uma grande capacidade de diálogo, empenhado nas grandes causas da modernidade e da ética internacionais, com posições quase sempre de grande equilíbrio e sentido de compromisso, com uma leitura serena das grandes questões mundiais - enfim, uma "diplomacia previsível", que creio ser uma das grandes armas para afirmar a credibilidade de qualquer Estado moderno. A política externa do Portugal democrático - independentemente dos governos, apenas com pontuais rupturas do consenso - constitui hoje um dos pilares mais sólidos da imagem do país, para a qual também contribui, no mesmo âmbito, o empenhamento das nossas Forças Armadas em importantes cenários de preservação da paz.

Porém, na minha resposta à estudante não disse algo que acho importante referir. Falta ainda a Portugal atingir um patamar que é condição essencial para uma imagem internacional completamente sólida: um amplo bem-estar colectivo. Lá chegaremos um dia!

Descolonização

Texto de um "take" da Agência Lusa de hoje: O embaixador de Portugal em Paris, Francisco Seixas da Costa, opinou quarta-feira, em Paris, que no seu "ponto de vista pessoal", a descolonização "foi uma tragédia, tal como foi a colonização, mas não era possível fazer de outra maneira."

A expressão, em rigor, foi esta: "A descolonização foi uma trágédia, da mesma maneira que a colonização foi uma tragédia. Esta é uma frase de Melo Antunes que eu subscrevo". Mais adiante referi: "A descolonização foi feita da forma que foi porque o estado a que o regime anterior tinha conduzido a situação nas colónias não possibilitou outra solução", tendo também referido que uma solução negociada teria sido possível, se para tal houvesse vontade política, nos anos 50, e tendo ainda detalhado as muito difíceis condições político-militares nas colónias com que o novo poder se viu confrontado e que impediam que se seguissem outras vias.

As sínteses têm sempre riscos, o principal dos quais é a imprecisão.

quarta-feira, abril 29, 2009

O Quarto

Era o tempo das negociações para a entrada de Portugal nas Comunidades Europeias, essa primeira década dos anos 80 em que, com muito esforço e dedicação, vários sectores da sociedade portuguesa foram chamados a dar o seu testemunho sobre as práticas em vigor no nosso país, a fim de as procurar tornar compatíveis com as que eram seguidas nessa Europa a que pretendíamos aderir.

A vida europeia tem regras, padrões e medidas que, parecendo bizarrias a muitos, têm como objectivo garantir uma presença no mercado comum comunitário dos produtos originários dos vários países, em moldes susceptíveis de garantirem uma livre e equilibrada concorrência.

Nesse dia, eram os nossos produtores de leite que explicavam qual o tipo de vasilhame que era usado em Portugal. O técnico que tinha ido a Bruxelas falava um francês razoável, porém com algumas falhas que, não sendo trágicas, eram, pelo menos, cómicas. Uma delas teve graça. Ao referir-se ao tipos de garrafas utilizadas em Portugal para a venda de leite, terá dito mais ou menos isto: "Au Portugal, nous avons des bouteilles de litre, de demi-litre et de chambre de litre".

O espanto dos auditores de língua francesa terá sido muito, ao serem confrontados com esta criativa forma de se referir ao quarto de litro...

terça-feira, abril 28, 2009

Jornalistas

Jean Lacouture é das grandes personalidades do jornalismo francês, com uma carreira brilhante que passa pelo histórico Combat, pelo Le Monde e pelo France Soir, antes de se afirmar como um dos mais notáveis colunistas do Nouvel Observateur. Apaixonado pelas lutas anti-coloniais, foi um feroz anti-gaullista, antes de se converter num admirador do General. A sua obra no campo da biografia é imensa e variada, sempre servida por uma escrita ágil e rica.

Ao 88 anos, acaba de publicar uma excelente memória biográfica de 14 grandes jornalistas franceses. A escolha é porventura polémica, por alguns que lá estão - Mauriac, Pivot - e por alguns que não estão - como Camus, Fauvet, JJ Servan-Schreiber ou mesmo Aron. Uns por umas razões, outros por outras. Não deixa, contudo, de ser um livro fascinante, uma verdadeira pequena história do jornalismo francês.

O título do livro é, em si mesmo, uma definição magnífica dos jornalistas: os impacientes da História. E bem verdadeiro, para alguns.

Leixões


O site da TSF titula: Leixões empatam com Guimarães.

A isto se chama pluralismo desportivo.

segunda-feira, abril 27, 2009

Racismo

As conclusões da Conferência da ONU sobre o Racismo, que teve lugar em Genève, deram plena razão à posição do Governo português que, desde muito cedo, entendeu, no seio da União Europeia, que era importante distinguir entre o essencial e o acessório, evitando que este último pudesse colocar em causa o esforço, longo e meritório, que a comunidade internacional tem vindo a fazer desde a reunião de Durban I.

O nosso país sempre afirmou que não deixaria de estar presente na Conferência, desde que o documento final mantivesse um padrão globalmente positivo, como veio a acontecer. Não foi esse, infelizmente, o entendimento de um escasso número de parceiros europeus, o que, não sendo dramático, configurou uma dissonância numa dimensão importante da acção externa europeia.

Nestas como em outras temáticas centrais da cena multilateral, importa sempre estar presente e actuante, trabalhar bem a montante das reuniões finais e não deixar que elas venham a ficar reféns fáceis de gestos mediáticos e espectaculares que, lançando uma imagem de conflitualidade e polémica, não reflectem a qualidade do trabalho efectivamente realizado. E não devem pô-lo em causa.

O documento final da Conferência sobre o Racismo, segundo todos os especialistas, configura uma salto qualitativo muito significativo na matéria, desenha um conjunto objectivo de compromissos e prolonga a responsabilidade internacional num processo de execução de medidas fundamentais na luta contra o racismo, xenofobia e todas as formas de discriminação e intolerância.

Agora, o esforço principal deverá ser tentar reconduzir a nova Administração americana, que se sabe ter uma particular sensibilidade perante esta temática mas encontrou o processo negocial num estádio já muito avançado, a trabalhar de forma conjugada com os principais actores que podem levar a bom porto as medidas que agora foram acordadas. Nestas como em outras questões de natureza global, a experiência prova que faz toda a diferença ter os Estados Unidos no grupo impulsionador.

domingo, abril 26, 2009

Bartolomeu

Este 25 de Abril já não teve o Bartolomeu, o Bartolomeu Cid dos Santos.

Para ele, para quem a data era talvez a sua mais importante estação da vida, aqui fica a memória de uma sua gravura.

Poemas de Abril

O magnífico Tim Tim no Tibet traz-nos uma bela memória poética do 25 de Abril.

Para além de uma homenagem a Melo Antunes. Coronel, claro.

sábado, abril 25, 2009

O herói


Quando abrimos a porta, o Ramos dormitava numa sala de instrução, cabeça sobre a mesa, barba por fazer. Horas antes, tinha sido detido. Ele era o oficial de dia e, não estando no segredo do golpe, sendo imprevisível a sua reacção e não havendo tempo para operações de recrutamento por convicção, foi essa a decisão que os responsáveis pela tomada da unidade militar assumiram como a melhor, até para sua própria defesa, se algo corresse mal.

O Ramos era um tenente miliciano que decidira integrar a carreira profissional, uma facilidade a que o corpo militar recorria com cada vez mais frequência. Era um homem jovial, um pouco “militarão”, mas boa pessoa, com excelente relação com todos nós. Nada indicava que pudesse ser hostil à nova situação. Ora as coisas começavam a serenar, a unidade estava sob total controlo, Marcello Caetano estava cercado no Carmo, não havia razão para lhe prolongar o sofrimento. Foi solto.

De início ficou um pouco confuso, mas foi-lhe explicado o que acontecera, as razões da sua detenção e que, naturalmente, se contava com ele, dali em diante. Ficou outro. Foi tomar um banho e juntou-se-nos, com uma alegria genuína.

Perdi-o de vista durante o dia mas, ao final da tarde, venho a encontrá-lo na RTP, objectivo estratégico que a nossa unidade ocupara nessa noite. Tinha sido, entretanto, encarregado da segurança da entrada dos estúdios de televisão, com um grupo de soldados cadetes.

Quando se aproximou a hora da chegada à RTP da Junta de Salvação Nacional, para fazer a sua proclamação ao país, o Ramos montou aquela que viria a ser a guarda de honra para a chegada de Spínola, Costa Gomes e os outros membros do novo poder. Por curiosidade, confesso, para poder estar presente nessa ocasião com laivos de histórica, juntei-me a ele na entrada da RTP, onde, à época, havia uma bomba de gasolina. Como eu era aspirante e ele tenente, fiquei sob o seu episódico comando, para o exercício de protocolo militar que se iria seguir.

O grupo de cinco ou seis soldados cadetes que compunham a “tropa” do Ramos, que passei a “subcomandar”, estava num estado de cansaço que não augurava uma grande dignidade ao momento que se iria seguir. Bom conhecedor da poda militar, o Ramos relembrou a todos a forma de proceder na cerimónia de apresentação de armas.

Todos os soldados tinham G-3. Eu, porém, ainda hoje estou para saber porquê, tinha andado todo o dia com uma metralhadora FBP (na qual eu tinha “forçado”, por lapso, um carregador de balas errado, creio que de uma Vigneron, o que, mesmo que fosse preciso, me teria impedido de dar um único tiro durante todo o 25 de Abril...), arma que exigia um gestual protocolar diferente. Mas que lá aprendi, graças ao Ramos.

Chegado o grande momento, o Ramos afina a guarda de honra à Junta. Do primeiro carro, que me recordo de ser acinzentado, saiu Spínola, grave como sempre. O Ramos, com garbo, deu as vozes de comando necessárias e lá fizémos a melhor “apresentação de armas” que nos foi possível organizar.

Spínola perfilou-se face ao Ramos, fez continência, fixou o monóculo e olhou-o, por um imenso instante. O resto dos membros da Junta pararam, um pouco atrás, expectantes do momento. Spínola lançou então, para o perfiladíssimo Ramos, sempre em continência:

- "Eu não o conheço da Guiné, nosso tenente?".

O Ramos só conseguiu balbuciar, esmagado de comoção:

- "Meu general, efectivamente tive a honra de servir com V. Exa. na Guiné".

Spínola grunhiu algo, do tipo "logo vi!", e afastou-se, de capote e pingalim, rampa acima, a caminho dos estúdios.

Aí, o Ramos virou-se para mim, impante:

- "Estás a ver, pá, ele reconheceu-me, lembra-se de mim. Este gajo sempre foi o meu herói!".

E continuou a sê-lo, a partir daí. Para o Ramos.

A Festa

É diferente o 25 de Abril em França.

Os portugueses comemoraram, um pouco por toda a França a Revolução de Abril, em algumas dezenas de festas populares, que se iniciaram ontem e cujos eventos se prolongam, nalguns casos, por toda a próxima semana. Alguns não deixam de lembrar a ditadura, a censura, os presos políticos, a PIDE e o obscurantismo anti-democrático, bem como os capitães de Abril que ajudaram a pôr um ponto final a tudo isso e às três guerras coloniais. Eu próprio o fiz, ontem à noite, em Fontenay-sous-Bois, numa magnífica jornada de alegria e cravos, com muita juventude, mobilizada pelo entusiasmo democrático de Baptista de Matos, após um desfile à luz de archotes que terminou naquilo que é o único monumento ao 25 de Abril erigido no estrangeiro.

Mas, repito, há algo de diferente no 25 de Abril em França.

Por aqui, para além da Revolução, comemora-se a recuperação da cidadania dos portugueses que a ditadura obrigou a sair de Portugal. Celebra-se o início de um caminho para a atribuição do estatuto pleno de que hoje beneficiam na sociedade francesa, graças à sua pertinácia, à sua força, à sua capacidade de afirmação, eles que entraram para as Comunidades Europeias bem antes de Portugal a elas ter aderido formalmente. Celebram a sua liberdade. Um jantar-encontro na noite de hoje, organizado em Ivry-sur-Seine por essa figura indomável da cultura portuguesa em França que é João Heitor, recheado de músicas de Abril e de boa disposição, com a presença honrosa do antigo embaixador português, Coimbra Martins, provou-me que a festa é, por aqui, o outro nome do 25 de Abril.

Histórias do 25 de Abril - O comandante

As ordens tinham sido claras: os portões da unidade ficavam fechados e ninguém entrava sem uma autorização, dada caso a caso. A surpresa foi, assim, muito grande quando vimos o comandante da unidade, em passo lento mas firme, arrastando o corpo pesado, a subir a ladeira que levava à parada onde nos encontrávamos. O sargento de guarda ao portão ter-se-á amedrontado com a aparição da sua figura e, perante um berro hierárquico, lá o teria deixado entrar.

Ao ver surgir o comandante, o capitão do quadro que assumira as funções de oficial de dia, desde as primeiras horas do golpe, ficou lívido.

- “Ora bolas! E agora, que fazemos?”, voltando-se para o António e para mim, que o acompanhávamos na parada.

Não deixava de ter a sua graça: nós, meros aspirantes a oficial miliciano, a aconselhar um profissional que era o responsável máximo de uma unidade militar amotinada.

Entretanto, o comandante ia-se aproximando, tínhamos poucos segundos para reagir.

- “Prenda-o de imediato, mal ele chegar ao pé de nós”, disse-lhe eu, em tom baixo, delegando comodamente a minha coragem.

Ainda era muito cedo, nesse dia 25 de Abril, não fazíamos a mais leve ideia de como estava a situação pelo país, não sabíamos mesmo se não seríamos das poucas unidades amotinadas.

- “Você está doido, então eu ia lá prender o homem!”. Pela disposição do capitão, eu e o António percebemos que as coisas não iam ser nada fáceis.

O comandante aproximou-se de nós e estacou, aí a dois metros. Trocámos as continências da praxe, com o António, dado que tinha a boina displicentemente no ombro, a fazer um mero aceno com a cabeça.

- “O que é que você está aí a fazer de oficial de dia?”, lançou o comandante, em voz bem alta, ao vê-lo com a braçadeira encarnada da função. “Não era o Ramos que estava de serviço? E o que é que andam os cadetes a fazer pela parada? Porque é que a instrução ainda não começou?”.

Eram aí oito e meia da manhã e, desde as oito, os soldados cadetes deveriam, em condições normais, estar a ter aulas. O capitão, sempre ladeado por nós os dois, estava, manifestamente, sem saber o que fazer, com o quarteto já sob os olhares gerais.

- “Ó meu comandante, é que houve uma revolução…”, titubeou o capitão, em tom baixo, como que a desculpar-se. Não explicou que o oficial de dia, que ele substituíra, havia sido detido nessa madrugada e estava fechado numa sala.

O comandante, sempre ignorando-nos olimpicamente, olhou o capitão nos olhos e atirou-lhe, com voz forte e bem audível à volta:

- “Qual revolução, qual carapuça! Você está-se é a meter numa alhada que ainda lhe vai arruinar a carreira! Ouça bem o que lhe digo!”.

O momento começava a ser de impasse. O comandante olhava já em redor, num ar de desafio, consciente de que recuperara algum terreno, mas também sem soluções óbvias para retomar a autoridade. Não havia mais militares do quadro à vista, alguns tinham ido para a missão externa que a unidade tivera a seu cargo, outros ter-se-ão prudentemente esgueirado, para evitar a incomodidade deste confronto com o comando legal. O capitão quase que empalidecia de crescente angústia.

É então que o António, com o ar blasé de quem já estava a perder paciência, lança um providencial:

- “Ó meu capitão, vamos lá acabar com isto!”.

O comandante olhou então finalmente para o António e para mim, dois mero aspirantes, com uma fácies de extremo desprezo, como se só então tivesse acordado para a nossa presença em cena.

Aproveitei a boleia da indisciplina, aberta pelo António, e fiz das tripas coração:

- “Ó meu coronel, e se fôssemos andando para o seu gabinete?”.

O coronel olhou-me, com uma raiva incontida:

- “Coronel? Então já não sou comandante?”.

A crescente nervoseira deu-me um rasgo, com uma ponta de sádica ironia:

- “Não, não é, ainda não percebeu? E a conversa já vai muito longa, não acha, meu capitão?”.

Mas o capitão continuava abúlico. O impasse ameaçava prosseguir.

- “Então você deixa-se comandar por dois aspirantes?!”, lançou o coronel, numa desesperada tentativa de puxar pelo orgulho do pobre oficial.

Mas o vento já tinha claramente mudado e achei que tinha de aproveitar a minha inesperada onda de coragem, até porque, no fundo, já pouco tinha a perder:

- “O meu coronel quer fazer o favor de nos acompanhar até ao seu gabinete? É que, se não for a bem, tem que ir a mal e era muito mais simpático que tudo isto se passasse sem chatices”.

Confesso que me espantei com a minha própria firmeza mas, pronto, o que disse estava dito. O capitão não reagiu, para meu sossego. O coronel entendeu então, talvez pela primeira vez, a irreversibilidade da situação. A sua voz baixou para um limiar de resignada humilhação:

- “Então eu estou preso, é isso?”, disse, num tom muito menos arrogante.

- “Mais ou menos. Vamos andando, então”, cortei, rápido, dando o capitão por adquirido, mas sem fazer a mais pequena ideia se ele queria ou não prender o coronel.

Nesse segundo, dei-me conta que, se tudo acabasse por correr mal, o meu futuro iria ser complicado.

E lá fomos para o gabinete do comando. Duas horas depois, mandámos um carro levar o coronel de volta a casa.

Só o voltei a ver, anos mais tarde, ao entrar no Café Nicola. Recordo o olhar gélido que me lançou, com porte ainda altivo, barriga saliente, muito na reserva. Já com toda a liberdade, pedi uma bica.

Canções de Abril (3)

... e foi assim, com a "Grândola, Vila Morena", que o Portugal democrático renasceu em 25 de Abril de 1974.

Ouça a canção aqui.

Histórias do 25 de Abril - O Telefone


Estava-se nas primeiras horas do dia 25 de Abril de 1974. Todo o pessoal que dormia no quartel tinha sido acordado e mandado formar no escuro da parada. De megafone na mão, o capitão que liderava a revolta, anunciou que a unidade ia integrar um movimento militar que tinha como finalidade “acabar com a ditadura”, competindo-lhe atacar um determinado objectivo.


Os soldados, quase todos ensonados, alguns ainda a despistar a hipótese de se tratar de um mero exercício, ouviram em silêncio as palavras do capitão: quem quisesse alinhar que fosse buscar a sua arma, os restantes podiam voltar para a cama.


Mas já ninguém conseguiria dormir. Ouviram-se alguns comentários e apartes mais entusiastas, de milicianos com tarimba das lutas do associativismo universitário, alguns dos quais já previamente contactados, para o que viria a ser uma das primeiras operações militares que o Movimento das Forças Armadas iria efectuar nessa madrugada.


O pessoal foi mandado destroçar e, em pequenos grupos, regressou, cochichando, às camaratas, em busca da arma ou do travesseiro para a vigília.


Foi então que um soldado, discretamente, se aproximou da cabina telefónica que existia num canto da parada. Abriu a porta e, nessa altura, alguém, mais atento, atirou-lhe um berro:


- "Eh! pá, o que é que vais fazer?".


O rapaz olhou, meio apalermado, largou a porta da cabina já entreaberta e disse, com toda a candura, que só queria avisar a família, não fossem ficar em cuidados quando ouvissem as notícias.


- “Nem as penses! Pira-te daí!”, ouviu logo.


Desapareceu de imediato, rumo à camarata. Alguém entrou na cabina e arrancou o fio do telefone.


Como se faria hoje uma revolução, na era dos telemóveis?


sexta-feira, abril 24, 2009

25 de Abril

Esta é a madrugada que eu esperava
0 dia inicial inteiro e limpo
onde emergimos da noite e do silêncio
e livres habitamos a substância do tempo

Sofia de Mello Breyner

Canções de Abril (2)

Hoje à noite, precisamente há 35 anos, uma canção funcionou como a primeira senha para os militares que, por todo o país, se preparavam para lançar aquela que viria a ser a Revolução de 25 de Abril.

Foi João Paulo Dinis, uma voz agora histórica da rádio, que a Comunidade portuguesa em Paris pôde ouvir durante algum tempo na Rádio Alfa, quem sugeriu e colocou "no ar" o som de Paulo de Carvalho, cantando "E depois do adeus", a canção que, pouco tempo antes, havia sido escolhida para representar Portugal no festival da Eurovisão.

Ouça-a aqui.

Politicamente correcto (2)

Agora foi a vez de Coco Chanel (na foto).

Um filme sobre a sua vida, que dizem ser excelente, teve a sua publicidade impedida no metro de Paris pelo facto da actriz que a representa aparecer a fumar.

Tenho cá para mim que, um destes dias, vamos acabar por ter "westerns" sem Colt 45, numa qualquer campanha contra as armas.

Histórias do 25 de Abril - Testemunho


Parece que foi ontem, mas passaram já 35 anos sobre o movimento do 25 de Abril, a data que mudou Portugal e os portugueses.

Eu prestava serviço como oficial miliciano numa unidade militar de Lisboa. Desde os últimos meses de 1973, era patente que uma agitação atravessava os militares profissionais com que diariamente contactávamos. Inicialmente, sabíamos tratar-se de reivindicações corporativas, precisamente de protesto contra as facilidades concedidas aos milicianos de poderem vir a integrar o quadro profissional, modelo a que a instituição militar crescentemente se via obrigada a recorrer, perante as exigências de uma guerra em três frentes.

Mas, a partir de determinado momento, demo-nos conta de que as coisas tinham já uma amplitude maior, que os militares profissionais estavam cada vez mais conscientes da sua força potencial e de que começava a consensualizar-se, no seu seio, uma vontade de provocar uma mudança política no país. Se bem que não merecesse um apoio generalizado dos oficiais com que convivíamos, tornava-se claro que o general António de Spínola, recém-regressado do cargo de Governador da Guiné, acabava por funcionar como um polo de referência para muitos, em especial pela frontalidade que vinha a demonstrar nos últimos anos. A publicação do seu livro “Portugal e o Futuro”, que conduziu à sua subsequente demissão, terá sido a gota de água que terá feito acelerar a agitação que já era latente. Menos claro era, para muitos de nós, o sentido em que essa mesma inquietação caminharia e se ela teria, ou não, condições para conduzir a uma mudança democrática consequente.

Com efeito, o espectro de que um golpe mal preparado pudesse levar a uma rigidificação do regime assustava muitos de quantos tinham uma experiência de associativismo universitário e alguma formação política, que temiam que Marcelo Caetano acabasse por ser substituído por um “ultra” – nome que utilizávamos para designar os radicais conservadores do regime. O fracasso do movimento de 16 de Março, iniciado e acabado nas Caldas da Rainha, permitiu perceber que a força de resposta do regime tinha, contudo, sérios limites. E, não obstante o malogro dessa intentona, o sucesso de um golpe bem organizado pareceu mais próximo.

Por essa altura, os nossos contactos com os militares profissionais começaram a intensificar-se, embora de uma forma um tanto caótica, unidade a unidade, dependendo das relações pessoais, sempre com precauções de segurança mínimas, que temíamos fossem detectadas facilmente pela polícia política. Nada aconteceu, porém.

Ao fim da manhã do dia 24 de Abril, um grupo de oficiais milicianos “de confiança”, que reuni na biblioteca (de que era responsável) da minha unidade militar, recebeu a indicação de que o golpe era para ter lugar nessa noite. Lembro-me de que, apesar de estarmos preparados para o facto de que esse dia iria chegar, mais cedo ou mais tarde, ficámos então num misto de excitação e ansiedade, tanto mais que nos não foram dados pormenores sobre as tarefas que nos iam ser pedidas. Apenas era requerida a nossa disponibilidade.


E foi assim que se avançou pela noite, para o dia seguinte, um dia a que, na altura, ninguém se lembrou de chamar “o 25 de Abril”.

quinta-feira, abril 23, 2009

Lusofonia

À volta de um bacalhau e de um Quinta do Cabriz, tive hoje em casa, a almoçar, os meus colegas da lusofonia. A gastronomia de matriz lusa é uma das raras unanimidades no seio dos "oito". A outra é o futebol, claro.

Que bom que é esta sensação de podermos discutir as nossas questões comuns na mesma língua! Mas há muito mais, para além dessa facilidade comunicacional: há cumplicidades, referências e um mundo que nos é próximo, que ganha com a diversidade dos vários mundos em que cada um de nós se move.

A ver vamos se, em Paris, vai ser possível garantir a conjugação de estratégias e a definição de planos para um bom trabalho conjunto. É importante que a CPLP não seja um grupo de países separados por uma língua comum.

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...