quinta-feira, maio 07, 2009

A senhora dona

Foi no Maputo, há já uns anos.

A lista dos condecorados era longa e o respectivo leitor, de nacionalidade portuguesa, era, manifestamente, uma pessoa pouco sensível às letras moçambicanas. Assim, sem hesitação, anunciou a certa altura da solenidade: "E agora, vai receber a ordem X a Senhora Dona Mia Couto".

Um frémito de embaraço e riso sacudiu a audiência. Mia Couto, o excelente escritor de Moçambique, afivelou um sorriso por detrás dos óculos e da barba, encaminhando-se para o palco onde o presidente português o aguardava, claramente um pouco incomodado com a inesperada feminização do agraciado.

Um colega meu, de graça rápida, logo deixou cair, baixo: "Ainda bem que hoje não é condecorada a Senhora Dona Sara ... mago!".

10 comentários:

Anónimo disse...

Foi para mim um privilégio conhecer esse vulto maior da literatura em língua portuguesa, idioma que não só domina com mestria, mas teima em constantemente reinventar com aquela magia do exotismo africano. Um "embaixador" da tradição oral africana. E de uma simplicidade de trato desconcertante...


Um abraço amigo. Ass.: João de Deus

Anónimo disse...

Eh Eh :-)
Realmente.

Bem, se fosse com a Dona Sara mago, o caso nao seria uma demonstraçao de ignorancia, mas provavelmente de... cegueira :-)

Mario

Anónimo disse...

Deixo aqui(José Barros)um texto de Mia Couto sobre a Vitória de Obama e, entre linhas, como ele viria a Victoria de um Obama branco num País africano...

Por Mia Couto

Os africanos rejubilaram com a vitória de Obama. Eu fui um deles. Depois de uma noite em claro, na irrealidade da penumbra da madrugada, as lágrimas corriam-me quando ele pronunciou o discurso de vencedor. Nesse momento, eu era também um vencedor. A mesma felicidade me atravessara quando Nelson Mandela foi libertado e o novo estadista sul-africano consolidava um caminho de dignificação de África.
Na noite de 5 de Novembro, o novo presidente norte-americano não era apenas um homem que falava. Era a sufocada voz da esperança que se reerguia, liberta, dentro de nós. Meu coração tinha votado, mesmo sem permissão: habituado a pedir pouco, eu festejava uma vitória sem dimensões. Ao sair à rua, a minha cidade se havia deslocado para Chicago, negros e brancos respirando comungando de uma mesma surpresa feliz. Porque a vitória de Obama não foi a de uma raça sobre outra: sem a participação massiva dos americanos de todas as raças (incluindo a da maioria branca) os Estados Unidos da América não nos entregariam motivo para festejarmos.
Nos dias seguintes, fui colhendo as reacções eufóricas dos mais diversos recantos do nosso continente. Pessoas anónimas, cidadãos comuns querem testemunhar a sua felicidade. Ao mesmo tempo fui tomando nota, com algumas reservas, das mensagens solidárias de dirigentes africanos. Quase todos chamavam Obama de "nosso irmão". E pensei: estarão todos esses dirigentes sendo sinceros? Será Barack Obama familiar de tanta gente politicamente tão diversa? Tenho dúvidas. Na pressa de ver preconceitos somente nos outros, não somos capazes de ver os nossos próprios racismos e xenofobias. Na pressa de condenar o Ocidente, esquecemo-nos de aceitar as lições que nos chegam desse outro lado do mundo.
Foi então que me chegou às mãos um texto de um escritor camaronês, Patrice Nganang, intitulado: "E se Obama fosse camaronês?". As questões que o meu colega dos Camarões levantava sugeriram-me perguntas diversas, formuladas agora em redor da seguinte hipótese: e se Obama fosse africano e concorresse à presidência num país africano? São estas perguntas que gostaria de explorar neste texto.
E se Obama fosse africano e candidato a uma presidência africana?
1. Se Obama fosse africano, um seu concorrente (um qualquer George Bush das Áfricas) inventaria mudanças na Constituição para prolongar o seu mandato para além do previsto. E o nosso Obama teria que esperar mais uns anos para voltar a candidatar-se. A espera poderia ser longa, se tomarmos em conta a permanência de um mesmo presidente no poder em África. Uns 41 anos no Gabão, 39 na Líbia, 28 no Zimbabwe, 28 na Guiné Equatorial, 28 em Angola, 27 no Egipto, 26 nos Camarões. E por aí fora, perfazendo uma quinzena de presidentes que governam há mais de 20 anos consecutivos no continente. Mugabe terá 90 anos quando terminar o mandato para o qual se impôs acima do veredicto popular.
2. Se Obama fosse africano, o mais provável era que, sendo um candidato do partido da oposição, não teria espaço para fazer campanha. Far-Ihe-iam como, por exemplo, no Zimbabwe ou nos Camarões: seria agredido fisicamente, seria preso consecutivamente, ser-Ihe-ia retirado o passaporte. Os Bushs de África não toleram opositores, não toleram a democracia.
3. Se Obama fosse africano, não seria sequer elegível em grande parte dos países porque as elites no poder inventaram leis restritivas que fecham as portas da presidência a filhos de estrangeiros e a descendentes de imigrantes. O nacionalista zambiano Kenneth Kaunda está sendo questionado, no seu próprio país, como filho de malawianos. Convenientemente "descobriram" que o homem que conduziu a Zâmbia à independência e governou por mais de 25 anos era, afinal, filho de malawianos e durante todo esse tempo tinha governado 'ilegalmente". Preso por alegadas intenções golpistas, o nosso Kenneth Kaunda (que dá nome a uma das mais nobres avenidas de Maputo) será interdito de fazer política e assim, o regime vigente, se verá livre de um opositor.
4. Sejamos claros: Obama é negro nos Estados Unidos. Em África ele é mulato. Se Obama fosse africano, veria a sua raça atirada contra o seu próprio rosto. Não que a cor da pele fosse importante para os povos que esperam ver nos seus líderes competência e trabalho sério. Mas as elites predadoras fariam campanha contra alguém que designariam por um "não autêntico africano". O mesmo irmão negro que hoje é saudado como novo Presidente americano seria vilipendiado em casa como sendo representante dos "outros", dos de outra raça, de outra bandeira (ou de nenhuma bandeira?).
5. Se fosse africano, o nosso "irmão" teria que dar muita explicação aos moralistas de serviço quando pensasse em incluir no discurso de agradecimento o apoio que recebeu dos homossexuais. Pecado mortal para os advogados da chamada "pureza africana". Para estes moralistas - tantas vezes no poder, tantas vezes com poder - a homossexualidade é um inaceitável vício mortal que é exterior a África e aos africanos.
6. Se ganhasse as eleições, Obama teria provavelmente que sentar-se à mesa de negociações e partilhar o poder com o derrotado, num processo negocial degradante que mostra que, em certos países africanos, o perdedor pode negociar aquilo que parece sagrado - a vontade do povo expressa nos votos. Nesta altura, estaria Barack Obama sentado numa mesa com um qualquer Bush em infinitas rondas negociais com mediadores africanos que nos ensinam que nos devemos contentar com as migalhas dos processos eleitorais que não correm a favor dos ditadores.
Inconclusivas conclusões
Fique claro: existem excepções neste quadro generalista. Sabemos todos de que excepções estamos falando e nós mesmos moçambicanos, fomos capazes de construir uma dessas condições à parte.
Fique igualmente claro: todos estes entraves a um Obama africano não seriam impostos pelo povo, mas pelos donos do poder, por elites que fazem da governação fonte de enriquecimento sem escrúpulos.
A verdade é que Obama não é africano. A verdade é que os africanos - as pessoas simples e os trabalhadores anónimos - festejaram com toda a alma a vitória americana de Obama. Mas não creio que os ditadores e corruptos de África tenham o direito de se fazerem convidados para esta festa.
Porque a alegria que milhões de africanos experimentaram no dia 5 de Novembro nascia de eles investirem em Obama exactamente o oposto daquilo que conheciam da sua experiência com os seus próprios dirigentes. Por muito que nos custe admitir, apenas uma minoria de estados africanos conhecem ou conheceram dirigentes preocupados com o bem público.
No mesmo dia em que Obama confirmava a condição de vencedor, os noticiários internacionais abarrotavam de notícias terríveis sobre África. No mesmo dia da vitória da maioria norte-americana, África continuava sendo derrotada por guerras, má gestão, ambição desmesurada de políticos gananciosos. Depois de terem morto a democracia, esses políticos estão matando a própria política. Resta a guerra, em alguns casos. Outros, a desistência e o cinismo.
Só há um modo verdadeiro de celebrar Obama nos países africanos: é lutar para que mais bandeiras de esperança possam nascer aqui, no nosso continente. É lutar para que Obamas africanos possam também vencer. E nós, africanos de todas as etnias e raças, vencermos com esses Obamas e celebrarmos em nossa casa aquilo que agora festejamos em casa alheia.

margarida disse...

Linda! Outra história linda!
Porque é. A candura do leitor pouco dado às letras é uma nota que só pode causar o sorriso que o escritor ostentou.
O desconforto dos presentes só poderia ter sido vago e momentâneo.
Foi... bonito, reitero. Acho que me apetecia abraçá-lo e dar-lhe beijinhos.
Imagino como se terá sentido embaraçado quando foi alertado para a 'gaffe'...
Não sabemos tudo.
Mais: não sabemos nada.
Tenhamos sempre condescendência e ensinemos com ternura.
Os resultados ver-se-ão.
Quanto mais não seja, no nosso coração.

(versejei mas não foi de propósito, aliás, é até um nadinha pindérico, mas enfim... :)) )

margarida disse...

..e Evelyn Waugh?!
A quantos equívocos não se terá prestado?
E George Sand
Ui...
;)

Anónimo disse...

Simplesmente espectacular.

Então quem atirou a da Dona Sara Mago, esteve muito bem.

Continue a brindar-nos com estes pequenos grandes apontamentos.

Um abraço,

Pedro Duarte Dâmaso

Anónimo disse...

Tenho um cunhado bom rapaz e “meio cegueta” que uma vez confundiu uma senhora com um cavalheiro, num jantar. A fisionomia da dita era uma mescla de “mulher-homem feia”. Como vestia umas calças e nos pés trazia uns horrendos ténis pretos, desses modernos que agora se vêm muito e parece que toda a gente “curte” (que tanto dá para homem, como para mulher) e - como digo - vendo mal, cumprimentou-a: “como vai o Senhor?” Nestas coisas há que ter um certo flair-play. Mas Ela não teve. E resmungando algo, não lhe apertou a mão e foi-se para outro lado da sala. Ficando atrapalhado com a situação, procurou, a meu ver desnecessariamente visto já ter passado tempo, “compor o ramalhete”, no final. À saída, dirigindo-se à Senhora, disse-lhe: “peço-lhe desculpa por a ter confundido há pouco por um cavalheiro, mas não foi por mal. Não vejo lá muito bem!” Se vissem os olhos da “rapariga”, Jesus! Fuzilavam-no. Não contive, mais tarde, uma sonora gargalhada.
P.Rufino

Anónimo disse...

Adorei o post. Ainda me estou a rir, quase caí no chão. Vá lá que o meu Amigo Couto nestas coisas não Mia...

Helena Sacadura Cabral disse...

Outra. E esta foi comigo. Há muitos anos, mas já menina e moça dava-me com um casal em que o marido era negro e a mulher branca. Ele, de seu nome Mario Domingues, autor de vários livros sobre história.
Numa tarde, vinha eu Costa da Caparica, com o meu irmão mais novo, quando os vejo encaminharem-se para nós.
Dou um abraço a cada um e sai-me esta: " Maria, estás negra!". No segundo imediato dei conta da gaffe. E, na ansia de compor o que não tinha composição, acrescento: " quer dizer, estás queimadíssima".
O Mário que era um senhor, a sorrir, respondeu-me " sabes, quem branco ama...preto lhe parece!".
Ia morrendo. Mas vendo a minha aflição, soltou uma boa gargalhada e acrescentou que, de facto, com tanto Sol, " A Maria estava uma verdadeira "preta"...".
Ainda hoje, depois de tantos anos passados, o meu irmão, se me quer irritar, diz-me "mana, olha que estás quase... preta"!
Logo eu, que tanto gostava deles!

Anónimo disse...

No fundo, Mia Sara, e Couto Mago.

A realidade ultrapassa sempre a ficção.

As letras em grande e os conteúdos corrosivos.

A criatividade à solta. Lindissimo. Um abraço.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...