Já não ia há uns bons tempos a este italiano do Pateo Bagatela. Costumo assentar mais numa tertúlia, na esplanada do Páteo 51, a casa imediatamente ao lado (onde não se come nada mal, adianto desde já, e a preços que me parecem mais em conta). Uns degraus acima, parei às vezes, com o Nuno Brederode e a Céu Guerra, no Sabor & Arte (de que guardo boa memória). Ao balcão do Il Mercato vendem-se produtos alimentares de Itália, que adivinho serem bons, a ajuizar por um queijo e um presunto desgustados. No restaurante, ao almoço de hoje, a comida estava muito boa, o serviço foi (mesmo) muito atencioso, os preços não me pareceram nada especulativos. O restaurante-loja é do mesmo dono (nepalês) do Forno d’Oro (a 100 metros, onde só fui uma vez, para uma pizza, depois de ali ter deixado de ser o excelente Mezzaluna), do meu quase vizinho de casa Come Prima (onde nunca comi mal, noto) e da Casa Nepalesa, na Elias Garcia (onde, há meses, jantei bem e prometi a mim mesmo voltar). Um dia, tendo-me eu queixado, aqui pelas redes sociais, de que não fazia sentido, no Il Mercato, pagar-se ao balcão, no fim da refeição, juntamente com os clientes da loja, o que originava filas e protestos, o dono teve a gentileza de telefonar-me, dizendo que o assunto estava a ser repensado. E fizeram-no. Hoje paguei na mesa. (Uma nota prática: o Páteo Bagatela possui um conveniente parque para automóveis, por debaixo, o que é sempre um “must” a considerar).
sábado, agosto 13, 2022
Rushdie
Salman Rushdie, celebrado escritor britânico, de origem indiana, foi ontem alvo de um atentado, sendo esfaqueado, numa universidade americana. Está entre a vida e a morte.
Nos anos 80, Rushdie teve sobre si uma "fatwa", uma determinação religiosa emitida por um "ayatolah" iraniano, que apelou a que os crentes muçulmanos executassem Rushdie onde quer que o encontrassem. A razão é que ele seria um blasfemo, na interpretação da lei corânica, por ter publicado, em 1989, o livro "Versículos satânicos", em que a figura de Maomé não saía bem tratada. É difícil de imaginar como terá sido, a partir daí, a vida de Rushdie, ao longos de décadas, sempre perseguido pela mesma intolerância que assassinou os caricaturistas do "Charlie Hebdo". Embora, até hoje, com mais sorte.
Uns anos antes desse episódio, creio que em finais de 1987 ou início de 1988, no Palácio das Necessidades, teve lugar uma receção oferecida por ocasião de um congresso internacional de escritores.
Como quase sempre acontece em ocasiões similares, os portugueses juntavam-se em grupinhos entre si, deixando os estrangeiros à sua própria conta. Notei então que uma figura com um ar bizarro, com uma cara algo mefistofélica e pouco comum, se passeava sozinho e olhava, com atenção, a grande tapeçaria que serve de cenário ao grande salão.
Ao vê-lo assim isolado, e por uma questão de mera cortesia de acolhimento, apresentei-me e expliquei-lhe a versão que tinha por boa do significado da cena que era retratada nessa peça decorativa. Ele acrescentou um comentário sobre o palácio onde estávamos, ao que eu terei explicado que aquela havia sido residência real até ao dia da implantação da República. Disse-me o nome, que não fixei. Apenas anotei que nascera na Índia e vivia em Londres. Anotei para sempre aquele fácies pouco comum, mas logo esqueci o episódio. Até ao dia, não muito tempo depois, em que Salman Rushdie passou a ser notícia, em todo o mundo, e eu fiz um “flash back” até àquela nossa brevíssima conversa.
Entretanto, alguns anos mais passaram. Um dia, creio quem em 1993, recebi na embaixada em Londres, onde estava colocado, um telefonema de um dirigente da Juventude Socialista, que eu nunca tinha visto e então só conhecia de nome. O seu nome era António José Seguro. Queria falar com o embaixador, que estava ausente. Falou comigo, que o substituía. Queria transmitir à embaixada a sua preocupação pelo facto do balcão da TAP, na capital britânica, se recusar a emitir um bilhete para Salman Rushdie se deslocar a Portugal, creio que ao Porto, a uma iniciativa para a qual a JS o tinha convidado. E pedia a nossa intervenção.
Rushdie estava no auge da sua "glória", mas também dos elevados riscos que estava a correr. Seguro explicou-me que estava previsto que o escritor viajasse sob pseudónimo, como já acontecera noutras ocasiões, para outros destinos, e que a sua segurança em Portugal estava plenamente assegurada pelas nossas autoridades, com o comando da PSP a ter o assunto a seu cargo. Foi-me dado o contacto do comandante-geral da PSP, com o qual tudo podia ser confirmado.
Expliquei a António José Seguro que a embaixada nada podia fazer, porque não lhe competia intervir nas regras, em matéria de segurança, pelas quais a TAP se regia. Podia, no entanto, pô-lo em contacto com o diretor da companhia no Reino Unido, a quem ele poderia expor diretamente o problema. Assim fiz. Ao diretor da TAP, sumariando a questão, disse, minutos depois, do telefonema que ia receber. E esqueci o assunto.
Até que, dias depois, mo "lembraram". A embaixada foi informada pelo MNE de que, contra mim, estava a ser encarada a instauração de um inquérito, possivelmente conducente a um processo disciplinar, a pedido do gabinete do primeiro-ministro português, por alegada "pressão" minha junto da TAP, num caso que tinha afetado a "segurança nacional". O homem da TAP em Londres, que logo contactei, deu-me a sua palavra de que, nem por sombras, dissera a Lisboa que tinha havido qualquer pressão da minha parte.
O tom com que o assunto chegou de Lisboa era sério. O MNE, na sua subserviência, zelosa e empanicada, face a S. Bento, passara entretanto a bola para o meu embaixador, o qual, claro, deu "dois berros por escrito”, depois de eu lhe explicar aquela que era uma coisa bem simples e verificável. A questão, não sem alguns outros episódios pouco edificantes para o estado da espinha dorsal de alguns colegas, acabou por morrer no seu ridículo e, até hoje, fiquei mesmo sem saber se Salman Rushdie veio então ou não a Portugal.
sexta-feira, agosto 12, 2022
Conceito Estratégico de Defesa Nacional
Tenho o gosto de integrar o grupo de 21 personalidades que, a convite da ministra da Defesa Nacional, professora Helena Carreiras, foi encarregado de elaborar a proposta para as Grandes Opções do Conceito Estratégico de Defesa Nacional, que vão vigorar na próxima década. Presidirá ao exercício o professor Nuno Severiano Teixeira.
Da anterior comissão, que preparou as bases para o Conceito Estratégico que esteve em vigor nos últimos dez anos, presidida pelo professor Luís Fontoura, e que havia sido nomeada em 2012 pelo então ministro da Defesa Nacional, Dr. Aguiar Branco, transitaram três nomes: Leonor Beleza, Nuno Severiano Teixeira e eu próprio.
Como é óbvio, nenhum dos membros desta comissão aufere qualquer remuneração pelas funções exercidas.
Ver a notícia aqui.
quinta-feira, agosto 11, 2022
A prova
O rapaz levantou-se da cadeira e saiu em direção à porta da Sala Azul das Necessidades, que dava para os claustros. Via-se que ia visivelmente aturdido. Para ele, os últimos cinco minutos daquela prova oral de conhecimentos que acabara de fazer, no concurso de acesso à Carreira Diplomática, tinham sido muito duros.
O professor universitário de Direito que havia sido convidado pelo MNE para integrar o juri, do qual eu fazia parte, tinha colocado ao candidato uma cerrada barragem de perguntas, procurando explorar o que parecia entender como contradições ou escassez de detalhe nos temas em debate. O rapaz, tenso mas muito concentrado, lá se ia defendendo, mas o arguente, quase não o deixando “pousar a bola”, mantinha um ritmo forte de questionamento.
Eu, confesso, estava a achar um pouco demais aquele imparável fogo de barragem. Mas a regra, não escrita, era de que cada um de nós, membros do juri, não se imiscuia durante o período de questões dos outros.
O presidente em exercício do juri, o embaixador Cutileiro Navega, que ali estava em substituição do secretário-geral do MNE, o embaixador Costa Lobo, mantinha uma cara seráfica, que implicitamente traduzia o pleno respeito pelo direito do docente universitário de ir tão longe quanto quisesse, na condução da sua parte do exercício. O outro professor presente, que se encarregava dos temas económicos, Miguel Beleza, olhava, divertido, para a cena.
O rapaz, entretanto, já tinha saído da sala e fechado a porta, atrás de si. A regra era que discutíssemos, de imediato, a nota a atribuir a cada candidato, aproveitando o facto da prova estar “fresca” na nossa memória. Em regra, era o arguente quem propunha a nota, podendo nós opinar de que ela era alta ou baixa demais.
Ainda na ressaca do debate a que acabara de assistir, abri a discussão, dirigindo-me ao professor de Direito: “Desculpe lá, mas acho que foi duro demais com o rapaz! Ele estava destroçado! E, se atentarmos bem, ele até fez um boa prestação! Aguentou-se bem, perante o “bombardeamento” de perguntas que lhe fez. Não está de acordo comigo?”
O docente convidado abriu-se num imenso sorriso e disse: “Mas quem é que disse o contrário? Foi um dos melhores! Apreciei bastante o modo como resistiu às minhas provocações. O rapaz tem estofo! Vai fazer uma bela carreira. Temos de dar-lhe uma nota muito boa”. E lá avançou com um número que, no cômputo final das restantes provas, colocou o candidato bem junto ao topo dos novos “adidos de embaixada” que, semanas depois, entrariam nos quadros das Necessidades.
Ontem, por um mero acaso, à hora de jantar, cruzei-me com o “rapaz”, num restaurante da Carrasqueira, o porto palafítico alentejano, entre a Comporta e Alcácer. Ele é hoje, 27 anos depois da data do seu concurso de acesso, um dos melhores diplomatas portugueses, tendo já exercido funções de grande responsabilidade, como excelente servidor público que se revelou. O docente universitário que o interrogou nesse exame também não teve, a partir de então, uma má carreira. Hoje é presidente da República.
Guerra de verdades
A guerra que aí anda tem transformado pessoas que tinha por tolerantes e moderadas em ferozes soldados de um combate de argumentos ácidos, num tom desrespeitoso para com as opiniões alheias. Imagino que deva ser bom ter a “certeza” de que a sua verdade é a verdade.
Energia limpa
A Europa decidiu reverter a dependência energética da Rússia, dada a natureza do regime de Moscovo. Espera-se que os fornecedores alternativos escolhidos deem garantias de estabilidade e sejam todos sólidos pilares democráticos.
“ A Arte da Guerra”
O podcast semanal do “Jornal Económico”, em que falo com o jornalista António Freitas de Sousa sobre temas da vida internacional, dedica-se esta semana à Ucrânia, ao reacender das tensões entre Israel e a Palestina, terminando com uma análise à reação chinesa à visita de Nancy Pelosi a Taiwan.
Pode ver aqui.
Educação diplomática
O "jet lag" não ajudava nada. Naquele primeiro dia em Seul, mais do que seguir o calendário de eventos daquele seminário, eu morria de cansaço, por todos os lugares por onde era obrigado a andar.
Mas o "dever" chamava-me: cabia-me co-presidir a um exercício que pretendia retirar, da experiência da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), lições para a gestão das tensões na península da Coreia.
Eu era então o embaixador português junto da OSCE e presidia ao grupo de contacto com os parceiros asiáticos da organização. A convite desta, coordenava, por esses dias, uma delegação multinacional à República da Coreia, ida de Viena. Tinha como meu contraparte o secretário de Estado coreano dos Negócios Estrangeiros, velho amigo de outros postos.
O programa de uma das noites incluía assistir uma peça de teatro coreano, a que se seguia um jantar num restaurante típico. Estafado como estava, passei "pelas brasas" no espetáculo, aproveitando a redução das luzes.
Chegados ao restaurante, um espaço tradicional, percebi que nos íamos sentar "à coreana", em almofadas e com as pernas cruzadas sob uma mesa baixa, o que iria pôr à prova os meus sacrificados joelhos. Mas, pronto!, era serviço!
Por feitio, não sou muito dado a experiências gastronómicas radicais e, muito em especial, sou habitualmente avesso a culinárias étnicas. Por isso, à vista dos pratos locais, fui fazendo uma seleção criteriosa sobre aquilo que neles me apetecia comer. Até que chegou o prato principal. Não consigo recordar o que era. Só sei que era qualquer coisa "sinistra", pela prova. Com alguma arte, fui afastando a comida pelo prato, enquanto alimentava a conversa com o meu contraparte, sentado à minha frente. A certo passo, notando que eu já não comia e muito do que fora servido já estava disperso, o anfitrião coreano perguntou, preocupado:
- Não gosta da comida?
Senti-me culpado pelo facto de não estar a corresponder à sua gentileza, pelo que me saiu qualquer coisa como isto:
- De forma nenhuma! Estava muito boa! Gostei imenso.
O que eu fui dizer! O meu amigo coreano, temeroso que eu não tivesse ficado saciado, e apoiado no meu pronto elogio à sua comida nacional, logo mandou vir para mim uma nova dose, idêntica àquela que eu tinha dispersado com tanto cuidado pelo prato. E lá tive eu que comer aquela mistela, desta vez com escassa capacidade de disfarce.
Foi uma noite bem penosa, confesso! A educação diplomática, às vezes, tem um elevado preço. É uma profissão onde não se engolem só elefantes!
quarta-feira, agosto 10, 2022
Um Porto na Crimeia
Contrariamente ao que possam pensar, este texto não é sobre a guerra, que hoje, ao que leio, pode ter chegado à Crimeia.
Éramos aí umas quarenta pessoas. Todos noruegueses, com a nossa exceção, o casal de diplomatas portugueses que, nesse ano de 1980, estava a passar uma semana em Ialta, na Crimeia, integrado num grupo turístico ido de Oslo, numa visita de mais de duas semanas à União Soviética.
A guia norueguesa que acompanhava o grupo, ao qual se dirigia em norueguês, via-se obrigada a fazer um esforço suplementar para adiantar, aos dois únicos estrangeiros que nós éramos, alguma coisa em língua inglesa, para nos não sentirmos isolados. Mas, com a sua simpatia, tudo correu lindamente.
Numa das noites, incluída no programa, estava uma visita às caves de vinhos de Massandra, muito próximas de Ialta, para uma sessão de provas. A Crimeia, além de ser a sede da esquadra soviética, em Sebastopol, de ter belas praias e de ser o local onde foi firmado, no belo palácio de Livadia, o acordo de Ialta, que dividou entre os vencedores as esferas de influência no mundo, no final da Segunda Guerra mundial, era também famosa, entre outras escassas coisas, pelos seus vinhos. Aquela era uma boa oportunidade para poder constatar se isso era ou não verdade.
A certo momento da sessão de provas, depois de provarmos uns tintos bastante agradáveis (mas são esmagadores, na sua qualidade), foi-nos dado a testar um espumante, apresentado, sem hesitações, como champanhe. Até aí, tudo bem. Não havia por ali franceses para defenderem o seu produto.
O problema, se assim se pode dizer, foi quando nos foi dado a provar algo que a guia disse, traduzindo da apresentação em russo, ser “vinho do Porto”. Eu devo ter sorrido, mas nada mais. Porém, para minha surpresa, a minha mulher não resistiu e, alto e bom som, disse, em inglês: “Vinho de Porto? O vinho do Porto é produzido em Portugal e ninguém tem o direito de chamar “vinho do Porto” a qualquer outro produto. É um abuso!”
Os olhos da guia norueguesa fitaram-me, à distância, com visível preocupação. Levantou-se do lugar, veio ter connosco à mesa, onde estávamos com outros membros do grupo e, em voz deliberadamente baixa, aconselhou: “Não protestem! Eles são muito sensíveis!”, referindo-se aos anfitriões soviéticos que, aparentemente, só tinham percebido que alguém se sentira incomodado com o que tinham informado sobre o que estavam a servir.
A minha mulher, contudo, não se aquietou por completo e retorquiu, já num tom de voz só para nós: “Eles podem dizer que isto é parecido com vinho do Porto, mas é ridículo afirmarem que é “vinho do Porto”. Além disso, nem sequer é grande coisa…” A guia sorria, em tom amarelo, e lá foi dizendo qualquer coisa ao pessoal das caves de Massandra, para os não indispor. Eu devo ter dito à minha mulher: “Deixa lá!”. E ela deixou. Comprar uma “guerra” naquele terreno, por tão pouco, era desnecessário e podia dar cabo das nossas férias.
Na véspera, eu já tinha criado um caso, no passeio público de Ialta, quando obriguei a parar um carro, com ar de viatura oficial, um Zil negro, que, sem a menor cerimónia, usava a faixa dos peões, forçando toda a gente a saltar para o lado, sem respeito pela integridade física de quem por ali se paseeava, inclusive crianças. Com algum risco, coloquei-me à frente do carro, obrigando-o a suspender a marcha. E, ao condutor, que entretanto abriu o vidro, mostrando uma cara patibular e espantada, em bom e franco português nortenho, com a “coragem” da certeza de não ser compreendido por quem só falava russo, deixei uma revoada de insultos, à altura do perigo que a sua condução representava.
O motorista olhou para mim, siderado pela minha ousadia, que era, há que convir, verdadeiramente irresponsável, num contexto como aquele. Ninguém falava assim para um carro oficial soviético! A nossa guia, preocupadíssima, tinha-me puxado para o lado, dizendo: “Não faça isso, por favor! Ainda vai preso! O que é que disse ao motorista?” Eu não tinha, à época, vocabulário suficiente em inglês para lhe traduzir os palavrões que tinha expelido, ali sobre a costa do Mar Negro. O Zil lá desapareceu e o assunto morreu.
Voltemos às caves. Alguns noruegueses do nosso grupo, no regresso ao autocarro que nos levaria de volta ao hotel, quiseram saber o que é que se tinha passado, porque eles não tinham compreendido o incidente que a minha mulher protagonizara. Tentámos explicar a nossa reclamação pela abusiva falta de respeito pela “denominação de origem” dos vinhos. (Mal eu sabia que, muitos anos depois, iria atazanar os sul-africanos pelo mesmo tema, dificultando as suas negociações com Bruxelas). Alguns perceberam. E ficaram mais convencidos quando eu disse a um deles: “Imaginem que eles vos diziam que estavam a produzir aqui Aquavit Linie! Gostavam?”. O exemplo terá calado fundo no patriotismo alcoólico dos nossos companheiros de viagem.
Pensando agora melhor, em lugar de ter sido eu quem foi entronizado, já há uns bons anos, na Confraria dos Vinhos do Porto, esse mérito deveria ter cabido à minha mulher.
terça-feira, agosto 09, 2022
Haja quem
Há quem deseje a vitória russa na guerra, menos por amor a Moscovo e, mais, por detestar os EUA. Há quem esteja aberto a absolver os pecados da Ucrânia, porque entende que um bem maior é provocar a derrota da Rússia. E há quem não esteja em nenhum desses lados. E que o diz.
O cúmulo da cretinice
Já tinha ouvido ideias muito estúpidas, mas a de proibir qualquer cidadão russo de entrar no espaço europeu é inqualificável, é um “benchmark” de xenofobia.
A vida tem destas coisas!
Foi há meia dúzia de anos. Eu tinha ido a Paris, numa tarefa no âmbito da Fundação Calouste Gulbenkian. Uma parte da tarde fora passada numa reunião num determinado local. Tive de sair dela disparado, porque tinha um outro compromisso, esse com hora bem marcada, na própria delegação da Gulbenkian, no boulevard La Tour Maubourg, bastante distante dali. Creio que me competia moderar ou participar num debate.
Não tinha carro. Os taxis passavam todos cheios. Os Uber, àquela hora, anunciavam-se com largos minutos de espera. O metro devia estar um inferno. De autocarro, não sabia lá chegar. E, à minha espera, estavam outros oradores do evento. Eu começava a ficar desesperado, saltitava de passeio em passeio, olhava ansiosamente em torno.
A certa altura, o meu passo rápido foi travado por duas jovens, uma com uma câmara, outra com um microfone. “Pode dizer-me o seu nome?”, perguntou em francês uma delas. Já não sei o que respondi, devo ter dito simplesmente que não, mas obviamente que não tinha nem um segundo para perder. E passei adiante, com elas a olharem, um pouco desapontadas, para mim. Em circunstâncias normais, teria parado, até por curiosidade. Naquela, era impensável fazê-lo. Esqueci o episódio, segundos depois. E, numa esquina, lá arranjei um táxi!
Passaram, entretanto, umas boas semanas. Um dia, alguém me chamou a atenção para um vídeo, que andava a circular, em que se afirmava que o anterior embaixador português em Paris teria, deselegantemente, recusado falar a duas luso-descendentes, que tinham um programa e que andavam a fazer um inquérito pela rua, em Paris, num fim de tarde. E lá estava a minha imagem, fugidia, entre os transeuntes.
Ora as senhoras tinham-me falado em francês, eu não fazia a mais leve ideia de quem elas eram (e tenho quase a certeza que elas também me não reconheceram, alguém o terá feito numa visualização posterior) ou o que representavam, além do mais estava roído de pressa, pelo que era óbvio que não podia estar minimamente disponível para um exercício que me iria fazer perder um tempo que não tinha.
E, dessa forma, ficou gravado, e explorado de forma negativa, um ato tido como de suposta deselegância face a um meio de informação da comunidade portuguesa em França, por parte de alguém que, em quatro anos de anterior trabalho por ali, podia (e pode) desafiar quem quer que seja a acusá-lo de uma deselegância, ainda que ínfima, face a essa mesma comunidade.
É assim que, às vezes, coincidências desagradáveis podem acontecer. A vida tem destas coisas!
segunda-feira, agosto 08, 2022
A futura Itália
Um possível governo das direitas italianas terá na luta anti-imigração o cimento implícito comum. A afirmação de apoio à Ucrânia será a cartada para atenuar as reservas dos parceiros da UE. Longe da Hungria, próxima da Polónia.
Poemas
A propósito da morte da escritora Ana Luísa Amaral, notou-se o cuidado da imprensa em qualificá-la de “poeta” e não de “poetisa”. Acho, em absoluto, ridícula esta tendência recente de fugir ao uso da palavra “poetisa”, como se ela pudesse ofender a qualidade literária de uma mulher que escreve poemas.
domingo, agosto 07, 2022
O meu clube
Bletchley Park
Nesta madrugada, deu-me para ler algumas páginas da biografia de Winston Churchill, de Martin Gilbert. Vi o livro em casa de uns amigos onde fui jantar e pedi-o de empréstimo, para verificar uns factos. (Não obstante ter trazido bastantes livros para férias, não resisti a pedir mais um de empréstimo!)
Na obra, nos capítulos que me interessavam, constatei que surgem várias menções a Bletchley Park, o mítico local onde, durante a Segunda Guerra Mundial, funcionou uma celebrada estrutura de descriptagem das mensagens alemãs, que terá dado um importante contributo para a vitória aliada. O local, dependente do famoso MI5 (serviço de contraespionagem), manteve-se fechado durante décadas.
Um dia de 1994, quando estava colocado na nossa embaixada em Londres, li anunciado, numa discreta notícia num jornal, que, a partir desse fim de semana, Bletchley Park passava a ser visitável. Dias depois, lá fomos nós.
Bletchley Park fica a umas dezenas de quilómetros de Londres, a sul de Milton Keynes. À entrada da propriedade, fomos informados de que o espaço, infelizmente, não era ainda visitável. Dei da conta da minha estranheza: via algumas outras pessoas a entrar e não percebia por que razão nós não podíamos integrar esse grupo. Expliquei que era diplomata português, que vira a notícia da abertura na imprensa e que, precisamente por isso, tínhamos vindo expressamente de Londres.
Notei algum embaraço no pessoal da portaria. Um deles chegou a dizer que a abertura ainda não era para o “público em geral”. Fiquei intrigado e mantive a minha insistência. Depois de minutos de parlamentação e de alguns contactos telefónicos que vi fazerem, autorizaram-nos a entrar, num registo que me pareceu ser de alguma exceção.
Fomos integrados num grupo de menos de duas dezenas de pessoas. Não havia, disseram, qualquer custo de ingresso. Como, em Inglaterra, se paga para entrar em qualquer sítio, tudo aquilo soava a estranho. Mas lá fomos. A visita foi extremamente interessante, com uma guia que nada tinha de profissional de turismo e, claramente, conhecia o assunto da casa em grande profundidade.
Ficou evidente que, tal como a notícia do jornal referia, aquele era, de facto, o primeiro dia, desde a Segunda Guerra, em que o local era visitável. Nós estávamos radiantes por ter tido aquela experiência, tanto mais que, visivelmente, éramos os únicos estrangeiros no grupo.
Tínhamos notado, aliás, da parte dos restantes visitantes, alguma curiosidade a nosso respeito. No caminho da saída, um casal, não resistindo a essa curiosidade, perguntou-nos: "What's your link with the British intelligence community?" Expliquei que não tínhamos a mais leve relação com os serviços de informações britânicos (nem portugueses, já agora!) e expliquei que era apenas um diplomata português colocado no Reino Unido, ali movido por um interesse histórico.
Os nossos interlocutores mostraram então o seu espanto: é que, tanto quanto tinham sido informados, no primeiro mês, o acesso a Bletchley Park estava exclusivamente reservado a membros dos "British special services", e respetivas famílias, como, confessaram, era o seu caso.
Sem o sabermos, pela nossa teimosa insistência, somada à simpatia de quem nos acolheu, tínhamos “infiltrado” um grupo de gente ligada ao MI 5, a contraespionagem britânica. Ele há cada coisa na vida!
Ao ver, às vezes, documentários ou obras de ficção assentes na história do local, vem-me à memória essa visita. Constato que, nos dias de hoje, Bletchley Park é uma atração bem acessível, como se pode ver aqui: https://bletchleypark.org.uk/see-do/explore/
sábado, agosto 06, 2022
“Nazdarovya”
A Rússia teve a sua melhor semana, desde há meses, independentemente da imensa mossa que os Himars começam a fazer no terreno. Mas ver a China de completas cadeias às avessas com os EUA e Erdogan a fazer rapapé a Putin em Sochi justificará ouvir-se ”nazdarovya” no Kremlin.
Orbán
A ida de Orbán à América de Trump revela que ele se está a posicionar para uns EUA de ascendente republicano, no pós-Biden. A Europa, quer queira quer não, vai ter de aturar e de ouvir falar muito do autocrata de Budapeste.
Leiam!
O artigo de Bárbara Reis no Público de hoje, devia ser de leitura obrigatória. O combate ao racismo não se faz com chavões académicos para absolver más consciências históricas, faz-se denunciando atos concretos e reclamando a responsabilização de quem os pratica.
Foi uma bela ideia!
Cabia-me, por essa altura, em substituição de Jaime Gama, chefiar, por parte da União, uma reunião em Bruxelas com uma delegação da Moldova (ou Moldávia, como alguns “tintinólogos” gostam), no quadro do diálogo com aquela antiga República da União Soviética, nos dias de hoje também candidata a uma futura adesão - porque ou há moralidade ou comem todos!
A Moldova é um país política e economicamente frágil, situado entre a Roménia e a Ucrânia. Da Moldova cindiu-se, há muito, a região da Transnístria, um território pró-russo onde existe uma base militar que Moscovo tem encontrado sucessivos pretextos para não abandonar, desde o fim da União Soviética. A Transnístria, que ambiciona ser reconhecida como uma República independente, parece estar à espera de poder um dia ser integrada na Federação Russa - o que poderia acontecer se a “operação militar especial” que Moscovo leva a cabo na Ucrânia conseguisse expandir-se ao ponto de ali chegar. De Odessa à fronteira da Moldova são menos de 60 km! Entre a Moldova e a Transnístria mantem-se um permanente ambiente de tensão política, embora sem afloramentos militares recentes, com a primeira nunca reconciliada com a ideia de perder, em definitivo, o controlo da segunda.
A chefia da delegação moldava a essa reunião era assegurada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Nicolae Tabacaru, um homem muito agradável e cordial, com quem, já não sei bem como, quando e porquê, eu tinha estabelecido uma muito boa relação pessoal anterior.
Semanas antes dessa reunião em Bruxelas, Nicolae Tabacaru contactou-me, fazendo um pedido: gostava que o vinho que viesse a ser servido durante o almoço, aquando desse encontro entre a União Europeia e a Moldova, fosse “da sua colheita familiar”. Era, disse-me, uma forma de demonstrar o seu reconhecimento pela abertura que a União vinha a demonstrar face ao seu país. Ao mesmo tempo, era também um modo de promover “o excelente vinho moldavo”.
A ideia pareceu-me aceitável e, por um mecanismo logístico que se montou já nem sei como, a embaixada da Moldova fez chegar uma partida desse vinho ao edifício Justus Lipsius, onde funciona o Conselho de Ministros da União, a montante da reunião.
Em regra, os almoços na sala do andar de topo do edifício (7° andar, se a memória não me falha) tinham uma qualidade razoável, embora não primassem pela imaginação e diversidade. Para os membros dos governos, que chegavam das capitais, era uma experiência de quando em quando, mas, para os embaixadores dos então Quinze, aquilo devia ser uma imensa “seca”. O vinho servido, às vezes originário do país detentor da presidência rotativa (mas duvido que os finlandeses ousassem ir além da vodka!) era, recordo, quase semprevde uma qualidade bastante razoável, embora nunca deslumbrante, por assumida modéstia orçamental.
Durante a manhã, Tabacaru e eu tínhamos conduzido os trabalhos na forma ritual. Este tipo de encontros obedece a um modelo “standard” e, salvo na ocorrência de questões pontuais, corre com uma suave linearidade. Acabada a reunião, convidei-o a acompanhar-me, pelo elevador, ao local do almoço. Agradeci-lhe o amável gesto de ter oferecido o vinho para a ocasião. Tabacaru estava radiante: ia ser uma oportunidade para a União, através dos seus embaixadores, experimentar o tal “excelente vinho moldavo”, ainda por cima da sua tal “colheita familiar”.
Sentados para o repasto, abri com um brinde, durante o qual, para além das tradicionais palavras sobre a “importância das relações entre a Moldova e a União Europeia”, tenho a certeza de ter destacado o facto do nosso hóspede ter tido a gentileza de nos trazer o vinho do seu país, o que talvez fosse inédito numa ocasião daquele género (ou talvez não).
Ainda tenho na imagem a vistosa entrada dos empregados de mesa - que sempre acho que eram italianos, mas devo estar a caricaturar - avançando, com estilo, para a meia dúzia de mesas espalhadas pela sala, levando na mão garrafas sem rótulo, cujo conteúdo foram deixando nos copos, criando uma imensa expetativa.
Os segundos seguintes, porém, foram mais inesquecíveis: os esgares de desgosto, logo ao primeiro trago, daqueles diplomatas “chevronés”, mirando-se uns aos outros, incrédulos, constituiu um momento único. O vinho era, sejamos claros, uma inenarrável zurrapa!
Tabacaru, em frente a mim, fitava-me, sorridente, desejoso de recolher a minha opinião. Muitos anos de profissão ensinaram-me a cultivar, para os momentos certos, uma apreciável dose de hipocrisia amável: “C’est un saveur plutôt intéressant. Ce sont des cépages nationales?”
Enquanto Tabacaru me explicava, em detalhe, a feitura do néctar, com as notas da tradição familiar, eu olhava, em cumplicidade de desespero, o nosso embaixador, Vasco Valente, que já devia estar a antecipar o que o esperaria, quando, no final da refeição, tivesse de aturar os comentários dos colegas, sobre a “brilhante” ideia que eu tivera em deixar trazer aquela pisorga para a a mesa. Basta pensar no que terá dito o francês Pierre de Boissieu! Eu, durante semanas, ainda aturei algumas graças: “Francisco, tu sais où on peut acheter quelques bouteilles de la production de ton ami moldave?”
Contudo, as restantes mesas ainda podiam remediar a tragédia, notando-se uma coreografia apressada pela sala, por forma a garantir o rápido fornecimento de um outro vinho. Na nossa mesa, isso era impossível: até ao final da refeição, sob o olhar deliciado do meu amigo Nicolae Tabacaru, tivemos de manter, com o garbo possível, o gasto, imagino que tão moderado quando a cerimónia o permitia, de alguns copos daquela intragável produção. Quantas garrafas de água Perrier não teremos pedido, para atenuar o nefasto efeito gástrico da mistura…
sexta-feira, agosto 05, 2022
Jô Soares
Para um Portugal que, por muito tempo, em televisão, se tinha habituado a ter, do humor brasileiro, a imagem de Badaró e pouco mais, ver surgir Jô Soares foi um imenso bálsamo, que nos obrigou mesmo a procurar um conjunto de referências novas sobre o Brasil. Foi, por exemplo, com ele que “vimos”, antes de os ver, os olhos de Bruna Lombardi e que percebemos que, às vezes, “tem pai que é cego”…
Curiosamente, Jô Soares, que parece que morreu hoje, faz parte daquelas figuras que, no passado, já “tinham morrido”, por diversas vezes, na boataria das redes sociais. Foi, por isso, com alguma cautela que aceitei a notícia.
Jô Soares era uma figura intelectualmente curiosa. Tinha, além disso, uma escrita limpa e ritmada, que o levou a ser escolhido para a Academia Brasileira de Letras, saga sobre a qual veio a escrever um divertido livro.
Um pouco como aconteceu por cá com Herman José, com o tempo, Jô Soares foi abandonando a escrita de humor e caiu na rotina, menos criativa, dos “talk shows”, com entrevistas mais ou menos interessantes, dependendo do convidado.
Um dia, saiu-me um dia na rifa ser um deles. Quando era embaixador no Brasil, Jô Soares convidou-me para ser entrevistado no seu programa, um dos mais vistos de toda a TV brasileira.
A conversa foi bastante simpática, com referências a um amigo comum que era Raul Solnado. Falámos da vida diplomática, do 25 de Abril, de dom João VI e, inevitavelmente, das diferenças entre o português do Brasil e de Portugal. Com notas dele ao nosso "sotaque", claro. E também por lá se falou da sua paixão pela obra de Fernando Pessoa.
Tudo estava a correr com normalidade até a um momento em que a conversa se me tornou incómoda. Jô Soares procurou que eu o ajudasse a completar uma anedota que envolvia Salazar, ao tempo da sua doença. Eu conhecia bem a historieta, que, à época, tinha feito as delícias das graças ao café.
Um célebre cirurgião americano, Houston Merritt, tinha sido chamado a Lisboa para avaliar o estado de saúde de Salazar, que estava então internado num hospital. À cabeceira do ditador, encontrava-se o presidente da República, a figura algo caricata de Américo Tomaz. No termo da consulta, o médico foi inquirido sobre se, no final da recuperação, Salazar "ficaria bem". Merritt, olhando para Tomaz, teria dito: "Bem, bem, não ficará, mas sempre ficará melhor do que aquele que ali está..."
Jô Soares sabia mal a historieta e procurou a minha ajuda para completar a anedota. Não lhe dei "saída", fingindo que não me lembrava.
Certo ou errado, entendi que, como embaixador de Portugal, não me ficava bem colaborar no apoucamento, perante um auditório estrangeiro, de figuras de Estado portuguesas, por mais detestáveis que elas pudessem ter sido, como evidentemente era o caso. No Brasil, onde alguns milhões de pessoas viam o programa, viviam muitos portugueses que tinham da memória de Salazar e de Tomaz uma visão muito diferente da minha. E eu também era embaixador dessas pessoas.
E foi assim que, numa entrevista em que se procurou fazer graça, acabei por ficar aquilo que se pode dizer, desta vez com toda s propriedade, um pouco ”sem graça".
quinta-feira, agosto 04, 2022
Contrastes
O Eça dizia, num dos seus raros (e injustos) momentos de modéstia: “Sou um pobre homem da Póvoa de Varzim” (Eça nunca escrevia, como alguns fazem, “do Varzim”). Façamos de conta que, em lugar do nascimento, ele se referia à praia.
Ao passar, há pouco, de raspão, pela Comporta, e para efeitos de férias, pensei: “Sou um pobre homem de Soltróia”.
Deixo a imagem do final de tarde deste lugar, sem um glamour comparável com aqueloutro, mas onde (não espalhem muito, está bem?) se está muito bem.
“A Arte da Guerra”
Conversa com o jornalista António Freitas de Sousa, no podcast do Jornal Económico, sobre os aspetos mais salientes da guerra na Ucrânia, as repercussões da ida de Nancy Pelosi a Taiwan e o cenário pré-eleitoral na Itália.
Pode ver clicando aqui.
Gravatas
Começa a ser patente uma crescente desabituação no uso da gravata. Nota-se isso em alguns contextos profissionais onde, até há poucos anos, tal era impensável. Ao que li, a indústria do adereço estará mesmo a declinar, um pouco por todo o mundo. Não por minha causa: continuo, ainda que só de quando em quando, a comprar gravatas, a somar às largas (mesmo muito largas) dezenas que há lá por casa (ofereci um número considerável, há tempos, à portaria do Círculo Eça de Queiroz, local onde o uso da gravata continua a ser um imperativo - e acho muito bem!) Gosto de usar gravatas, embora, cada vez mais, apenas quando me apetece.
Há mais de duas décadas, em Chipre (e não “no Chipre”, porque também não é “na Malta”…), numa conversa com um ministro, ele fez-me uma curiosa revelação. Nos anos 60, depois de independência do país, tinha ali sido introduzida oficialmente a dispensa do uso da gravata. A justificação dada para a adoção dessa moda “levantina” seria o clima local, embora também pudesse haver, por detrás da decisão, a assunção de um subliminar contraste com o formalismo da anterior administração britânica. Mas a nota mais interessante, para justificar o facto de então estarmos a ter essa conversa de fato e gravata, foi a de que tinha sido a posterior generalização do ar condicionado nos escritórios que tinha levado à retoma de um maior rigor no traje.
Em inícios de 2012, logo após ter assumido funções na Unesco, acumulando com a chefia da embaixada em Paris, a ministra que tinha a seu cargo o Ambiente e a Energia, Assunção Cristas, pediu para me ver, por razões de trabalho. Dias antes, a imprensa tinha dado grande destaque a uma instrução da ministra, tida então por insólita, de dispensar, nas instalações do seu ministério, o uso da gravata, por razões de alegada poupança energética.
À entrada da audiência, a que naturalmente fui de gravata, recordo ter perguntado à ministra, em tom de brincadeira, se não "levava a mal" que eu usasse o adereço. Ela riu-se, claro. Ali estava um embaixador, com fama de socialista, a adotar um hábito "reacionário", que uma governante democrata-cristã dispensara.
Há dias, vi a notícia de que o presidente do governo espanhol (é este, por ali, o nome dado ao cargo de primeiro-ministro) tomou a decisão de abolir oficialmente o uso da gravata, não percebi bem em que âmbitos. No fundo, acaba por ser uma vingança póstuma de Pablo Iglesias, antigo líder do Podemos (e, vá lá!, também do desaparecido Tsipras, do Syrisa, grego como os de Nicosia).
A ministra Assunção Cristas pertenceu a um "infamous" governo, do qual não guardo a mais ínfima saudade. Mas, com justiça, devemos creditar-lhe alguma presciência na medida de contemporaneidade que então determinou - e foi há mais de uma década, caramba!
Esquadrilha
Quando as coisas começam a descarrilar, vai tudo “a eito”, diz-se na minha terra. É a Ucrânia, reemergem o Kosovo e o Nagorno-Karabakh, Taiwan é o que é. Como se vê, continua válida a sugestiva imagem aeronáutica de Jacques Chirac: "Les emmerdes, ça vole toujours en escadrille..."
quarta-feira, agosto 03, 2022
Black sauce
Imagino que possa ser um pouco estranho, para quem aqui me lê regularmente a falar de restaurantes e de academias gastronómicas, ouvir esta singela confissão: não sei estrelar um ovo! A cozinha é uma realidade “que não me assiste”, como alguns dizem, salvo como utente do ”output” de quem por lá opera. Não vou discutir nem elaborar sobre isto, peço apenas que tomem nota, antes de lerem o que vem a seguir.
Há já muitos anos, mas com uma idade em que os anos não eram muitos, numa determinada cidade do mundo onde vivia, num grupo de casais, diplomatas de vários países, surgiu uma ideia: e se as nossas mulheres, em lugar de estarem encafuadas nas cozinhas antes dos jantares, fossem brindadas, uma vez por mês, com uma refeição preparada exclusivamente por nós, pelos maridos? Elas ficariam na sala, bebendo uns copos, que também partilharíamos e, chegada a hora, seriam servidas de um repasto da nossa responsabilidade, a que, claro, nos juntaríamos. Se bem me recordo, os maridos eram quatro: um americano, um norueguês, um francês e eu. Rotativamente, caber-nos-ia uma das quatro funções: preparar bebidas e com elas uns amuse-bouche, uma entrada, o prato principal e a sobremesa.
A ideia, que já não sei de quem foi, foi acolhida com imenso júbilo. Por todos? Não. Eu, sob o olhar divertido da minha mulher, entrei em pânico e com um sorriso amarelo, avancei com a dúvida de que poderia não estar à altura do desafio. Todos acharam que eu exagerava! Às tantas, até eu! E passou-se a vias de facto, logo se estabelecendo um calendário para os meses seguintes.
Nos três primeiros meses, num slalom de pretextos, fui adiando a vez em que me competia a execução do prato principal. Sei que, entretanto, me safei bem nas bebidas (era só o que faltava!), inventei um dia uma salada tida por aceitável para entrada (tirada de uns magníficos livros ilustrados da Time-Life que a minha mulher colecionava) e já não recordo o que fiz de sobremesa (conhecendo-me, imagino que uma “laboriosa” salada de frutas).
Um dia, chegou a vez em que me cabia a execução do “plat de résistence”. Era uma carne, ao que retive. Na véspera, como que para um exame, fechei-me a ler a Maria de Lourdes Modesto, cruzei dados com mais dois ou três livros de cozinha que havia lá por casa e tomei imensos apontamentos.
Aquilo metia batatas, arroz e legumes, numa complexidade cumulativa que me parecia impossível de acompanhar, pela ubiquidade de tarefas que implicava. Era-me dificil entender como se podiam fazer tantas coisas ao mesmo tempo! Pendurado com fita-cola no exaustor, tinha montado um “horário”, de acordo com os ensinamentos do livro, com os minutos exatos para cada procedimento, que tentava seguir com precisão, numa contagem decrescente até à hora de chegada das coisas à mesa.
Os meus colegas, com as outras tarefas a seu cargo, estavam impedidos de me ajudar, a minha mulher estava refastelada na sala, à conversa com as amigas, imagino que temendo o pior. Eu suava em bica - aprendi então que faz um calor terrível nas cozinhas, coisa de que, até então, só suspeitava, quando por lá passava para ir buscar gelo para o whisky -, estado físico apenas atenuado por um bom tinto, cuja garrafa desviara e cujo consumo, a pouco e pouco, embora me tivesse descontraído, terá acabado por afetar, no rigor, o meu angustiado trabalho.
“To make a long story short”, no meio de toda aquela azáfama, para mim em absoluto inédita, houve um molho que, quiçá por excesso de tempo de fervura, ficou negro que nem um tição e tinha um travo de leitura gustativa bastante complexa. Recordo, para sempre, que a chegada do produto à mesa foi “saudada” com uma unanimidade de apreciação embaraçante. (A carne parece que estava comestível, dizem).
Durante meses, com estoicismo e fazendo orelhas moucas, senti espalhar-se pelos círculos diplomáticos dessa capital, muito para além do nosso, então já propalado, “grupo dos cozinheiros”, a referência a uma tal “Chico’s black sauce”, de que se diziam “maravilhas”… Felizmente, acabei por ser transfererido de posto diplomático antes de me calhar outra vez a execução de um prato principal. Não sei se teria convivas!
Lembrei-me disto ontem, ao notar a arte com que um outro Chico, emérito fazedor de iguarias, se movimentava, com calma olímpica, entre a cozinha, um grelhador no jardim e a sala onde estávamos, parecendo ter tempo para tudo, produzindo, no final, um magnífico e muito variado jantar para um considerável grupo de pessoas. Ando cá a pensar se, um destes dias, lhe passo ou não a receita da minha “Chico’s black sauce”…
terça-feira, agosto 02, 2022
Mundos & fundos
Não desejo o fim dos fundos europeus. Contribuí bastante para obter e aumentar alguns deles. Contudo, sempre alimentei o sonho de vir a ser cidadão de um país que, um dia, ficasse “descolonizado” dos cíclicos “2020s” e conseguisse finalmente viver por si, sem essas “mesadas”.
Transexuais
O debate recente tem trazido justa evidência à questão dos direitos das pessoas transexuais. É um salto cultural importante na consciência da sociedade portuguesa. Não me pareceu, contudo, que tivesse ficado claro um dado: de que universo quantitativo de pessoas estamos a falar?
Ar mesmo condicionado
O meu colega Paulo Castilho (esse mesmo, o escritor) e eu tínhamos chegado a Bridgetown, para uma determinada reunião internacional.
Estávamos então a dar os nossos primeiros passos nas instituições europeias. Competia-nos defender as cores nacionais na capital dos Barbados, num encontro dedicado a questões de comércio e desenvolvimento.
Arribávamos de Londres, na véspera da reunião plenária. Fomos informados de que só fora possível reservar aposentos num hotel "um pouco fora da cidade".
Jantámos, bem dispostos, com outras pessoas, num grande (e esgotado, claro!) hotel da cidade, antes de rumarmos ao nosso alojamento. No táxi para lá, começámos a preocupar-nos. O tempo passava. Depois de mais de meia hora viagem, por caminhos estreitos e rurais, chegámos ao destino.
Era um hotel visivelmente medíocre, na soleira de ser uma espelunca. Já tivera os seus dias, há muitos anos! Olhámos um para o outro, na certeza de que esse facto não iria atenuar as invejas que tínhamos deixado para trás, em Lisboa, ao termos tido o privilégio de ser designados para uma reunião nas Caraíbas.
Nada podíamos fazer: havia que passar ali três noites. E, em especial, teríamos de madrugar e conseguir transporte para estar a tempo nas reuniões.
Na receção do hotel, em face do calor húmido da noite caribenha, perguntámos se os quartos tinham ar condicionado. A resposta foi críptica: "Sim, mas tem um pormenor que explicaremos quando chegarmos aos quartos". Estranhei o “pormenor”, mas lá fomos. Sem elevador, claro. O quarto estava ao nível das baixas expetativas que já levávamos. Mas, vá lá!, tinha ar condicionado.
O pormenor? Bom, o pormenor é que, para que o ar condicionado funcionasse era necessário, de duas em duas horas, meter uma moeda, tipo parquímetro. Coisa simples, está bem de ver!, desde logo para quem pretendia dormir, depois de uma imensa jornada, com “jet lag” à mistura.
É a vida! Há pior, como sabem.
segunda-feira, agosto 01, 2022
Ucrânia
Kherson, no sul da Ucrânia, foi, com o Donbass, das primeiras regiões ucranianas a serem ocupadas pela Rússia, depois de 24 de fevereiro, dada a sua importância para a Crimeia, nomeadamente para abastecimento de água. Nestes meses, o “oblast” de Kherson atravessou um processo acelerado de “russificação”, falando-se da iminente realização de um referendo, com vista à constituição de uma república, a exemplo do que aconteceu em Donetsk e Luhansk. Processo idêntico poderia vir a suceder em Zaporizhzia, se a Rússia viesse a conseguir controlar essa região, depois de completada a tomada do Donbass. Ora acontece que o ritmo das operações russas no Donbass não parece estar a ter, nos últimos dias, o sucesso que Moscovo previa e, para piorar as coisas, os russos parece estarem a necessitar de trazer tropas dessa sua operação no leste para reforço do esforço de guerra a sul.
A confirmarem-se as notícias de que uma contra-ofensiva ucraniana estará agora a ameaçar a continuidade da presença russa em Kherson, estar-se-á perante um significativo volte-face nesta guerra, ao qual não seria estranha a importância vital da ajuda militar ocidental. Perante este cenário, cabe no domínio da especulação pensar o que Moscovo poderá vir a fazer para tentar “compensar” estes eventuais desaires.
“À suivre”.
Ciao!
A possibilidade da Itália poder vir a ter em breve um governo de direita radical, tem uma implicação externa de monta: a Itália desaparecerá, de um dia para o outro, da “troika” de liderança europeia. E isso não se fará sem consequências para o “saldo” decisório no seio da UE.
Racismo
Portugal é um país racista? Não há países racistas, a menos que a constituição e as leis de um país consagrassem o racismo como política de Estado. O que há é portugueses racistas e, como país, seremos responsáveis se eles puderem exercer esse preconceito sem consequências.
Granel
Espero que, na sequência da saída do primeiro barco de cereais da Ucrânia para o porto de Tripoli, no Líbano, não surja um estagiário qualquer a escrever que os carregamentos estão a caminho da capital da Líbia. É que aquilo, por lá, no dia de hoje, não está muito para cereais…
O último telegrama
Foi numa conversa na Noruega, com o embaixador Fernando Reino, o meu primeiro chefe no exterior, que ouvi falar, também pela primeira vez, dos “valedictory despatches”. Explicou-me ele, nesse longínquo ano de 1979, que era uma tradição dos embaixadores britânicos, no último dia do seu último posto, enviarem para Londres “um bem elaborado telegrama” (aproveito aqui uma fórmula tradicional das Necessidades) em que faziam uma espécie de balanço dos ensinamentos (as “lessons learned”) que tinham retirado dos seus anos de experiência. Outras carreiras diplomáticas tinham seguido o exemplo britânico e, ele próprio tinha a intenção de vir a fazer isso.
Não sei se Fernando Reino o fez ou não, quando saiu de Nova Iorque para o seu pouso final na Azóia, mas recordo ter lido alguns exemplos dessa espécie de “testamentos”, subscritos por alguns embaixadores portugueses, à medida que se iam aposentando. Mas não foram muitos. Alguns tinham qualidade e até graça, outros revelavam apenas desencanto e azedume. Nada que não fosse expectável, à medida do que sabia de cada um.
Devo dizer que, por alguns anos, alimentei intimamente a ideia de, no termo do último posto da minha carreira, preparar um “valedictory despatch”. Com o tempo, contudo, fui perdendo a vontade de o fazer. E já se verá porquê. Disse-o “a Lisboa”, ao meu último ministro, Paulo Portas, na comunicação em que fazia a minha despedida da embaixada em Paris, na véspera de ter atingido o limite de idade para servir no exterior.
Não tenho comigo esse texto (não guardei documentos das minhas quatro décadas de funcionário diplomático), mas tenho uma vaga ideia (quem quiser pode ir conferir) que escrevi qualquer coisa como isto: tinha chegado a pensar em enviar a Lisboa um “valedictory despatch”, mas decidi não o fazer, por duas razões: por um lado, porque não tinha tido tempo para o exercício e, por outro, por ter quase a certeza de que a vida agitada de trabalho “na Secretaria de Estado” (como, no MNE, se chama às Necessidades) dificilmente permitiria que tivessem tempo para o ler Assim, limitei-me a transmitir ao ministro os meus “respeitosos cumprimentos”. Portas retorquiu-me com um “despacho telegráfico” (os telegramas oriundos da capital chamavam-se assim) em que agradecia o meu trabalho ao longo de 38 anos. E assim “encerrámos as contas”, a contento das partes.
Por que refiro isto hoje? Porque trouxe para férias um delicioso livro organizado pelo excelente jornalista que é Matthew Parris, onde ele compila e comenta dezenas de “valedictory despatches” dos arquivos do “Foreign Office”. Muitos são banais, mas sempre curiosos, outros são magníficos de graça, de finura, inteligência, argúcia, sentido de serviço público e outras qualidades que se apuram no melhor serviço diplomático do mundo - o britânico. Já tinha lido páginas do livro, intitulado “Parting Shots”, que uma pessoa amiga me tinha oferecido em 2010. No sábado, à saída de casa, ao vê-lo numa estante, juntei-o à vintena que trouxe (com a esperança vã de, entre eles, conseguir ler quatro ou cinco). E estou a divertir-me imenso. Livros para férias é isto!
domingo, julho 31, 2022
É a vida!
Nas últimas horas do mês que ora termina, surgiu, com insistência, nas redes sociais, uma citação sazonal de Quim Barreiros. Somos um país com memória: há datas que se não devem esquecer.
Ai Tito!
Estalou um conflito entre a Sérvia e o Kosovo. Não faço a menor ideia de quem agravou a situação, que se sabe historicamente tensa. De uma coisa tenho absoluta certeza: da forma como a opinião pública se ”balcanizará”. Vive-se o “pavlovianismo” na política.
Maisons
- Isto é um escândalo! O meu bairro está cada vez mais cheio de franceses. Compram tudo! As casas velhas estão todas em obras! Um dia, cansam-se de Lisboa e então vai ser o bom e o bonito!
- Tens razão! E tu achas que levam as casas com eles?
Justiça
Por princípio, desconfio da justiça exemplar, pela sua frequente instrumentalização. Contudo, acho que a comunicação social deveria continuar a dar todo o relevo ao desfecho do caso da agressão verbal racista e xenófoba na Costa da Caparica. A consciência cívica adquire-se assim.
Adeus, Pereira?
Soltróia é um grande e agradável “bairro” de praia entre Tróia e a Comporta. Não tem o caráter compacto da primeira, nem o glamour “lux” da segunda. Uma certa Lisboa, às vezes com menos pachorra para os Algarves e desejosa de ter areia e mar, sem multidões, à mão de semear, num cenário com bastante qualidade, serenidade q.b. e, garantidamente, sem os alardes “do social”, tem vindo a fazer de Soltróia o seu discreto poiso, desde há décadas (no meu caso, há quase uma década). Soltróia tem uma praia mais ”produzida”, com algum “apoio”, e uma outra um pouco mais selvagem (a minha, claro), mas onde se pode deixar os guarda-sóis e as cadeiras durante a noite, sem qualquer guarda (É verdade! Isto ainda existe!). Para além do mini-mercado e café do senhor Ursino, com a clássica fila para os jornais, e de um restaurante-bar sazonal que se pretende um pouco mais “in”, mas que tem tido altos-e-baixos, o “bairro”, até agora, só tinha, no setor comercial, uma outra unidade, o Pereira.
O Pereira era dois-em-um: um restaurante que sempre foi um pouco abaixo de assim-assim e uma cafetaria-bar, com uma esplanada “de segunda” (para utilizar uma expressão que era cara ao meu pai), mas que sempre dava para beber uma cervejola e pôr a conversa de praia em dia. O próprio senhor Pereira foi, por muitos e bons tempos, além do mais, uma espécie de agente imobiliário formal ou informal de Soltróia.
Constatei, há horas, algo de que já me tinha chegado um rumor: o Pereira fechou. Sente-se o seu vazio em Soltróia. A culpa é só nossa: habituamo-nos às coisas e não respeitamos a liberdade que elas também têm de poder desaparecer.
sábado, julho 30, 2022
sexta-feira, julho 29, 2022
Abrunhosa e Olena
O autor e cantor Pedro Abrunhosa, perante uma questão que todos sabemos que fratura a emoção nacional, como é o caso da invasão russa da Ucrânia, disse algumas coisas fortes sobre Vladimir Putin.
Era só o que faltava que o não pudesse fazer! Vivemos num país livre onde Abrunhosa, estou certo, interpretou o sentimento de uma grande maioria de pessoas, muitas das quais, porventura, talvez não tivessem usado as palavras que Abrunhosa usou, mas as sentiram como merecidas. Repito, Abrunhosa esteve no seu pleno direito de fazer o que fez.
A embaixada russa, numa reação de virgem ofendida, a cheirar a tentativa de censura, a lembrar outros tempos deles e também nossos, veio ameaçar Abrunhosa com um processo. Nada mais ridículo! O nosso MNE respondeu-lhe à letra.
Entretanto, Zelensky e a mulher decidiram fazer umas fotografias para a Vogue. Cada um é livre de ler esse gesto da maneira que lhe apetecer e quiser. Continuamos em Portugal, continuamos num país livre. Um país onde Abrunhosa tem o direito de dizer de Putin o que Maomé não diz do toucinho (como o faz imensa gente, na comunicação social e não só) e onde, da mesma forma, quem quiser pode achar o que muito bem lhe apetecer sobre Zelensky, elogiá-lo ou vilipendiá-lo, além de igualmente ter o direito de achar insensata a exposição que o casal fez na revista. Ou entender exatamente o contrário: considerar que essa atitude foi a atitude certa, para a defesa e visibilidade da sua causa, com elegância e beleza fotográfica.
A mim, confesso, o que mais me custa, porque revelar bem que, no fundo, somos um país pouco livre e bastante seguidista, é não assistir a defensores da causa ucraniana a considerarem que Abrunhosa foi longe demais, ao dizer o que disse de Putin, lamentando, de igual modo, não ver críticos ferozes da liderança de Kiev, quiçá mesmo simpatizantes da causa russa, a terem a independência de espírito para virem a público defender Olena e o marido, na sua legítima opção de serem fotografados pela lente mágica da Leibovitz.
Infelizmente, o que por aí vimos foi apenas o óbvio: os pró-russos escandalizados com o palavrão de Abrunhosa sobre o ditador russo e os pró-ucranianos a defenderem a opção fotográfica do casal presidencial de Kiev Ora bolas! Isto assim não tem a menor graça.
quinta-feira, julho 28, 2022
António Vaz Pereira (1929-2022)
“Ó homem! Eu não sei nem quero saber se a decisão foi sua ou de quem manda em si! A única coisa que eu sei é que isso é uma estupidez, pelo que, enquanto eu aqui for embaixador, não vou cumprir essa instrução”.
António Vaz Pereira dizia isto ao telefone, para Lisboa, para um colaborador de uma elevadíssima personalidade da nossa República. Minutos antes, eu, que era o seu Ministro Conselheiro, o seu “número dois”, na nossa embaixada em Londres, tinha entrado no seu gabinete, mostrando-lhe uma instrução, acabada de receber, para que embaixada fizesse, junto das autoridades britânicas, uma determinada diligência. Eu entendia que aquela determinação era completamente insensata e Vaz Pereira, que logo concordou comigo, tirou-se dos seus cuidados e desancou, pelo telefone, quem tinha de desancar.
Ouvi aquilo deliciado, sentado numa das largas cadeiras de braços, forradas a palhinha, que o embaixador mantinha em frente à sua imensa secretária, no nº 11 de Belgrave Square. Aprendi, naquele instante, de que ter razão e saber afirmá-la com coragem era algo que caraterizava uma atitude de uma chefia confiante.
Ter-me-ei cruzado com o embaixador Vaz Pereira, pela primeira vez, na Noruega, em 1980, numa visita de Estado, quando Ramalho Eanes era presidente. Apenas recordo termos falado sobre a nossa comum ligação a Viana do Castelo, onde ainda então vivia a sua mãe.
À época, Vaz Pereira era diretor-geral dos Negócios Políticos nas Necessidades. Tinha iniciado a sua carreira no Rio de Janeiro (então capital), passando depois, uma primeira vez, por Londres. Em seguida, foi cônsul-geral em Joanesburgo. Estreou-se como embaixador em Copenhague, seguindo-se Maputo e a delegação junto da NATO. Terminou a carreira na chefia da embaixada em Londres, de 1989 a 1994.
Quando eu ali fui colocado, em 1990, como o seu colaborador mais próximo, interroguei-me intimamente sobre como iria ser a minha relação com ele. Sabia-o um homem bastante conservador, com toques de algum snobismo, um pouco distante, por detrás de um fácies com um esgar sorridente que, vim a perceber, não significava necessariamente satisfação. Tal como acontece com algumas equipas de futebol, no primeiro quarto de hora de jogo, o nosso mês inicial de convívio profissional foi de observação mútua. Mas tudo iria correr às mil maravilhas, daí para a frente, durante quatro anos.
Vaz Pereira era intolerante perante a mediocridade, impaciente em face da estupidez, incapaz de aturar chatos, desprezando, não o escondendo, atitudes “poseur” e de pompa saloia. Como tinha um forte sentido do interesse nacional, caldeado por muitos anos de um capaz exercício da profissão, não se impressionava com o falso “barulho das luzes” das “rising stars” da política, gargalhando e ridicularizando os seus pavoneamentos. Era um homem com sentido da História, culto, vivido, com gosto. Desenhava muito bem, tendo estado ligado, na juventude, ao movimento estético “Távola Redonda”.
O grande hóbi de António Vaz Pereira era a cozinha. Neste domínio, era impiedoso na crítica, na desconstrução dos erros, no sublinhar das coisas que tinha por essenciais. Nos últimos anos, coincidimos como membros dos restritos “trinta”, no seio da Academia Portuguesa de Gastronomia. Ficou por publicar o seu “livro de receitas”, onde estaria a genuína “culinária” portuguesa, ideia que o animou desde sempre. Na última conversa telefónica que tivemos, há meses, disse-lhe do interesse que a nossa Academia seguramente teria em ajudar a essa publicação, que espero sinceramente que alguém promova.
Teria muitas e divertidas histórias a contar do meu convívio com António Vaz Pereira. Um homem que recordarei pela sua inteligência, pelo seu humor, pela sua frontalidade, pela sua sabedoria. Tenho imensa pena em ver desaparecer uma pessoa que admirei, com quem muito aprendi e de quem fiquei amigo. Neste momento de tristeza, quero deixar um abraço de grande solidariedade a Teresa Gouveia, a maior e mais fiel amiga de António Vaz Pereira.
“A Arte da Guerra”
Esta semana, no podcast do “Jornal Económico”, converso com o jornalista António Freitas de Sousa sobre a situação na Ucrânia, a nova ditadura em que Tunísia parece estar prestes a entrar e as ambições de Trump na política americana. Pode ver aqui: https://youtu.be/koDYvHksxEc
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Olhar os dias em quinze notas
1. As palavras têm um peso, mas as mesmas palavras não querem dizer exatamente o mesmo. Biden defendeu hoje a independência da Ucrânia. Puti...