quinta-feira, julho 28, 2022

António Vaz Pereira (1929-2022)

Ó homem! Eu não sei nem quero saber se a decisão foi sua ou de quem manda em si! A única coisa que eu sei é que isso é uma estupidez, pelo que, enquanto eu aqui for embaixador, não vou cumprir essa instrução”.

António Vaz Pereira dizia isto ao telefone, para Lisboa, para um colaborador de uma elevadíssima personalidade da nossa República. Minutos antes, eu, que era o seu Ministro Conselheiro, o seu “número dois”, na nossa embaixada em Londres, tinha entrado no seu gabinete, mostrando-lhe uma instrução, acabada de receber, para que embaixada fizesse, junto das autoridades britânicas, uma determinada diligência. Eu entendia que aquela determinação era completamente insensata e Vaz Pereira, que logo concordou comigo, tirou-se dos seus cuidados e desancou, pelo telefone, quem tinha de desancar.

Ouvi aquilo deliciado, sentado numa das largas cadeiras de braços, forradas a palhinha, que o embaixador mantinha em frente à sua imensa secretária, no nº 11 de Belgrave Square. Aprendi, naquele instante, de que ter razão e saber afirmá-la com coragem era algo que caraterizava uma atitude de uma chefia confiante.

Ter-me-ei cruzado com o embaixador Vaz Pereira, pela primeira vez, na Noruega, em 1980, numa visita de Estado, quando Ramalho Eanes era presidente. Apenas recordo termos falado sobre a nossa comum ligação a Viana do Castelo, onde ainda então vivia a sua mãe. 

À época, Vaz Pereira era diretor-geral dos Negócios Políticos nas Necessidades. Tinha iniciado a sua carreira no Rio de Janeiro (então capital), passando depois, uma primeira vez, por Londres. Em seguida, foi cônsul-geral em Joanesburgo. Estreou-se como embaixador em Copenhague, seguindo-se Maputo e a delegação junto da NATO. Terminou a carreira na chefia da embaixada em Londres, de 1989 a 1994.

Quando eu ali fui colocado, em 1990, como o seu colaborador mais próximo, interroguei-me intimamente sobre como iria ser a minha relação com ele. Sabia-o um homem bastante conservador, com toques de algum snobismo, um pouco distante, por detrás de um fácies com um esgar sorridente que, vim a perceber, não significava necessariamente satisfação. Tal como acontece com algumas equipas de futebol, no primeiro quarto de hora de jogo, o nosso mês inicial de convívio profissional foi de observação mútua. Mas tudo iria correr às mil maravilhas, daí para a frente, durante quatro anos.

Vaz Pereira era intolerante perante a mediocridade, impaciente em face da estupidez, incapaz de aturar chatos, desprezando, não o escondendo, atitudes “poseur” e de pompa saloia. Como tinha um forte sentido do interesse nacional, caldeado por muitos anos de um capaz exercício da profissão, não se impressionava com o falso “barulho das luzes” das “rising stars” da política, gargalhando e ridicularizando os seus pavoneamentos. Era um homem com sentido da História, culto, vivido, com gosto. Desenhava muito bem, tendo estado ligado, na juventude, ao movimento estético “Távola Redonda”.

O grande hóbi de António Vaz Pereira era a cozinha. Neste domínio, era impiedoso na crítica, na desconstrução dos erros, no sublinhar das coisas que tinha por essenciais. Nos últimos anos, coincidimos como membros dos restritos “trinta”, no seio da Academia Portuguesa de Gastronomia. Ficou por publicar o seu “livro de receitas”, onde estaria a genuína “culinária” portuguesa, ideia que o animou desde sempre. Na última conversa telefónica que tivemos, há meses, disse-lhe do interesse que a nossa Academia seguramente teria em ajudar a essa publicação, que espero sinceramente que alguém promova.

Teria muitas e divertidas histórias a contar do meu convívio com António Vaz Pereira. Um homem que recordarei pela sua inteligência, pelo seu humor, pela sua frontalidade, pela sua sabedoria. Tenho imensa pena em ver desaparecer uma pessoa que admirei, com quem muito aprendi e de quem fiquei amigo. Neste momento de tristeza, quero deixar um abraço de grande solidariedade a Teresa Gouveia, a maior e mais fiel amiga de António Vaz Pereira.

4 comentários:

Anónimo disse...

Obrigado, Senhor Embaixador, por nos recordar que Portugal não se reduz à apagada e vil tristeza com que nos enfastia a classe política. "Intolerante perante a mediocridade". Bendito elogio. Houvesse mais gente assim... Lamento a sua/nossa perda.

JPGarcia disse...

Meu caro Francisco,

O Embaixador Vaz Pereira costumava sentar-se no meu gabinete da Embaixada em Paris quando lá ia para reuniões da UEO. Contava muitas histórias, sempre com humor certeiro quando se referia a pessoas que o mereciam. Ficava sempre instalado no hotel Westminster, como tinha que ser por ser embaixador em Londres. Pelo seu talento como desenhador, fora convidado para colaborar na sua juventude com o estilista francês Jacques Fath, um dos três grandes costureiros franceses do
pós-guerra, sendo os dois outros Dior e Balmain. Quem mo contou foi um seu antigo companheiro da Távora Redonda, já falecido e muito meu amigo. Felizmente para Portugal, a sua carreira foi outra.

Um abraço

JPGarcia

Anónimo disse...

Tambem lamento. Tambem conheci e apreciei a sua inteligência e bom humor.
Talvez vá a tempo de corrigir. Não é evidentemente "Távora Redonda", mas "Távola Redonda". Pelos vistos,nem o autor nem os comentadores aqui e no fakebook se preocupam com uma pequena correcção dum disparate que com certeza divertiria o nosso "Natas"...

Francisco Seixas da Costa disse...

É verdade, caro Anónimo das 00:46. O que ele se divertiria ao notar o lapso!

Hoje lembrei-me do padre Domingos

Das traseiras da igreja de São Martinho de Bornes tem-se esta vista. Estava assim, hoje à tarde. Lá em baixo, ficam as Pedras Salgadas, com ...