Para um Portugal que, por muito tempo, em televisão, se tinha habituado a ter, do humor brasileiro, a imagem de Badaró e pouco mais, ver surgir Jô Soares foi um imenso bálsamo, que nos obrigou mesmo a procurar um conjunto de referências novas sobre o Brasil. Foi, por exemplo, com ele que “vimos”, antes de os ver, os olhos de Bruna Lombardi e que percebemos que, às vezes, “tem pai que é cego”…
Curiosamente, Jô Soares, que parece que morreu hoje, faz parte daquelas figuras que, no passado, já “tinham morrido”, por diversas vezes, na boataria das redes sociais. Foi, por isso, com alguma cautela que aceitei a notícia.
Jô Soares era uma figura intelectualmente curiosa. Tinha, além disso, uma escrita limpa e ritmada, que o levou a ser escolhido para a Academia Brasileira de Letras, saga sobre a qual veio a escrever um divertido livro.
Um pouco como aconteceu por cá com Herman José, com o tempo, Jô Soares foi abandonando a escrita de humor e caiu na rotina, menos criativa, dos “talk shows”, com entrevistas mais ou menos interessantes, dependendo do convidado.
Um dia, saiu-me um dia na rifa ser um deles. Quando era embaixador no Brasil, Jô Soares convidou-me para ser entrevistado no seu programa, um dos mais vistos de toda a TV brasileira.
A conversa foi bastante simpática, com referências a um amigo comum que era Raul Solnado. Falámos da vida diplomática, do 25 de Abril, de dom João VI e, inevitavelmente, das diferenças entre o português do Brasil e de Portugal. Com notas dele ao nosso "sotaque", claro. E também por lá se falou da sua paixão pela obra de Fernando Pessoa.
Tudo estava a correr com normalidade até a um momento em que a conversa se me tornou incómoda. Jô Soares procurou que eu o ajudasse a completar uma anedota que envolvia Salazar, ao tempo da sua doença. Eu conhecia bem a historieta, que, à época, tinha feito as delícias das graças ao café.
Um célebre cirurgião americano, Houston Merritt, tinha sido chamado a Lisboa para avaliar o estado de saúde de Salazar, que estava então internado num hospital. À cabeceira do ditador, encontrava-se o presidente da República, a figura algo caricata de Américo Tomaz. No termo da consulta, o médico foi inquirido sobre se, no final da recuperação, Salazar "ficaria bem". Merritt, olhando para Tomaz, teria dito: "Bem, bem, não ficará, mas sempre ficará melhor do que aquele que ali está..."
Jô Soares sabia mal a historieta e procurou a minha ajuda para completar a anedota. Não lhe dei "saída", fingindo que não me lembrava.
Certo ou errado, entendi que, como embaixador de Portugal, não me ficava bem colaborar no apoucamento, perante um auditório estrangeiro, de figuras de Estado portuguesas, por mais detestáveis que elas pudessem ter sido, como evidentemente era o caso. No Brasil, onde alguns milhões de pessoas viam o programa, viviam muitos portugueses que tinham da memória de Salazar e de Tomaz uma visão muito diferente da minha. E eu também era embaixador dessas pessoas.
E foi assim que, numa entrevista em que se procurou fazer graça, acabei por ficar aquilo que se pode dizer, desta vez com toda s propriedade, um pouco ”sem graça".
7 comentários:
Gostei imenso do vídeo. Tenho saudades de ouvir as saídas cómicas do Jô. Realmente não reconheci aquela figura de velhinho "caquetico" do Almirante. Aí o Jô exagerou mas aos cómicos de gabarito até "desculpamos".
Muito obrigada pelo presente.
Como sei que aceita de bom grado um reparo a uma simples distracção, ali no início do 3º parágrafo será "intelectualmente".
Tenho todos os livros dele, acho eu.
Penso que fez muito bem em não alimentar o anedotário do pais que representava. Não esperava outra coisa. Por isso me
espantou quando há dias considerou excessiva a reação da embaixada da Federação Russa aos impropérios do abrunhosa. Se na altura da sua entrevista o Jô Soares tivesse enveredado por mandar f... o salazar, Portugal e os portugueses, como teria reagido o Embaixador de Portugal ?
MRocha
Nossa, ele faleceu??
Grande pessoa. Nunca o conheci sem ser pela TV. Mas me passava aquela impressão de grandiosidade, simplicidade e iluminação. Inteligencia. Bondade. Proporcionou-me, como comunicador, grandes momentos de talk show. Sei que teve um filho autista e da vida pessoal pouco mais. Nem preciso saber. Mas acho que conviver com essa realidade tem de tornar a pessoa mais humilde, mais pé-no-chão. O que nem sempre é fácil para pessoas que trabalham num meio com esta exposição pública global.
Adorava o Jo e vou continuar a adorar. Ele e Joan Rivers, Don Rickles: inteligência, ousadia, visão interior. Contribuiram melhor que muitos políticos para o melhoramento da sociedade através do humor e pelo verdadeiro sentido e importância da liberdade.
Respeito.
E o vídeo, senhor embaixador?
João Cabral: https://globoplay.globo.com/v/4405889/
Gostei de ver, senhor embaixador. Apenas um reparo: "algaraviada" nada tem que ver com o Algarve. Jô Soares, note-se, foi um crítico do AO90.
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