quarta-feira, agosto 10, 2022

Um Porto na Crimeia


Contrariamente ao que possam pensar, este texto não é sobre a guerra, que hoje, ao que leio, pode ter chegado à Crimeia.

Éramos aí umas quarenta pessoas. Todos noruegueses, com a nossa exceção, o casal de diplomatas portugueses que, nesse ano de 1980, estava a passar uma semana em Ialta, na Crimeia, integrado num grupo turístico ido de Oslo, numa visita de mais de duas semanas à União Soviética.

A guia norueguesa que acompanhava o grupo, ao qual se dirigia em norueguês, via-se obrigada a fazer um esforço suplementar para adiantar, aos dois únicos estrangeiros que nós éramos, alguma coisa em língua inglesa, para nos não sentirmos isolados. Mas, com a sua simpatia, tudo correu lindamente.

Numa das noites, incluída no programa, estava uma visita às caves de vinhos de Massandra, muito próximas de Ialta, para uma sessão de provas. A Crimeia, além de ser a sede da esquadra soviética, em Sebastopol, de ter belas praias e de ser o local onde foi firmado, no belo palácio de Livadia, o acordo de Ialta, que dividou entre os vencedores as esferas de influência no mundo, no final da Segunda Guerra mundial, era também famosa, entre outras escassas coisas, pelos seus vinhos. Aquela era uma boa oportunidade para poder constatar se isso era ou não verdade.

A certo momento da sessão de provas, depois de provarmos uns tintos bastante agradáveis (mas são esmagadores, na sua qualidade), foi-nos dado a testar um espumante, apresentado, sem hesitações, como champanhe. Até aí, tudo bem. Não havia por ali franceses para defenderem o seu produto.

O problema, se assim se pode dizer, foi quando nos foi dado a provar algo que a guia disse, traduzindo da apresentação em russo, ser “vinho do Porto”. Eu devo ter sorrido, mas nada mais. Porém, para minha surpresa, a minha mulher não resistiu e, alto e bom som, disse, em inglês: “Vinho de Porto? O vinho do Porto é produzido em Portugal e ninguém tem o direito de chamar “vinho do Porto” a qualquer outro produto. É um abuso!”

Os olhos da guia norueguesa fitaram-me, à distância, com visível preocupação. Levantou-se do lugar, veio ter connosco à mesa, onde estávamos com outros membros do grupo e, em voz deliberadamente baixa, aconselhou: “Não protestem! Eles são muito sensíveis!”, referindo-se aos anfitriões soviéticos que, aparentemente, só tinham percebido que alguém se sentira incomodado com o que tinham informado sobre o que estavam a servir.

A minha mulher, contudo, não se aquietou por completo e retorquiu, já num tom de voz só para nós: “Eles podem dizer que isto é parecido com vinho do Porto, mas é ridículo afirmarem que é “vinho do Porto”. Além disso, nem sequer é grande coisa…” A guia sorria, em tom amarelo, e lá foi dizendo qualquer coisa ao pessoal das caves de Massandra, para os não indispor. Eu devo ter dito à minha mulher: “Deixa lá!”. E ela deixou. Comprar uma “guerra” naquele terreno, por tão pouco, era desnecessário e podia dar cabo das nossas férias.

Na véspera, eu já tinha criado um caso, no passeio público de Ialta, quando obriguei a parar um carro, com ar de viatura oficial, um Zil negro, que, sem a menor cerimónia, usava a faixa dos peões, forçando toda a gente a saltar para o lado, sem respeito pela integridade física de quem por ali se paseeava, inclusive crianças. Com algum risco, coloquei-me à frente do carro, obrigando-o a suspender a marcha. E, ao condutor, que entretanto abriu o vidro, mostrando uma cara patibular e espantada, em bom e franco português nortenho, com a “coragem” da certeza de não ser compreendido por quem só falava russo, deixei uma revoada de insultos, à altura do perigo que a sua condução representava.

O motorista olhou para mim, siderado pela minha ousadia, que era, há que convir, verdadeiramente irresponsável, num contexto como aquele. Ninguém falava assim para um carro oficial soviético! A nossa guia, preocupadíssima, tinha-me puxado para o lado, dizendo: “Não faça isso, por favor! Ainda vai preso! O que é que disse ao motorista?” Eu não tinha, à época, vocabulário suficiente em inglês para lhe traduzir os palavrões que tinha expelido, ali sobre a costa do Mar Negro. O Zil lá desapareceu e o assunto morreu.

Voltemos às caves. Alguns noruegueses do nosso grupo, no regresso ao autocarro que nos levaria de volta ao hotel, quiseram saber o que é que se tinha passado, porque eles não tinham compreendido o incidente que a minha mulher protagonizara. Tentámos explicar a nossa reclamação pela abusiva falta de respeito pela “denominação de origem” dos vinhos. (Mal eu sabia que, muitos anos depois, iria atazanar os sul-africanos pelo mesmo tema, dificultando as suas negociações com Bruxelas). Alguns perceberam. E ficaram mais convencidos quando eu disse a um deles: “Imaginem que eles vos diziam que estavam a produzir aqui Aquavit Linie! Gostavam?”. O exemplo terá calado fundo no patriotismo alcoólico dos nossos companheiros de viagem.

Pensando agora melhor, em lugar de ter sido eu quem foi entronizado, já há uns bons anos, na Confraria dos Vinhos do Porto, esse mérito deveria ter cabido à minha mulher.

2 comentários:

Flor disse...

Sem sombra de dúvida!

Anónimo disse...

Pois devia. Dito isto, correção: o acordo foi assinado na beira Ialta, toda a gente sabe
Fernando Neves

A lei da bomba

Acho de uma naïveté simplória os raciocínios que levam a sério a letra da doutrina nuclear russa. Como se a Rússia, no dia em que lhe der na...