sábado, agosto 13, 2022

Rushdie


Salman Rushdie, celebrado escritor britânico, de origem indiana, foi ontem alvo de um atentado, sendo esfaqueado, numa universidade americana. Está entre a vida e a morte.

Nos anos 80, Rushdie teve sobre si uma "fatwa", uma determinação religiosa emitida por um "ayatolah" iraniano, que apelou a que os crentes muçulmanos executassem Rushdie onde quer que o encontrassem. A razão é que ele seria um blasfemo, na interpretação da lei corânica, por ter publicado, em 1989, o livro "Versículos satânicos", em que a figura de Maomé não saía bem tratada. É difícil de imaginar como terá sido, a partir daí, a vida de Rushdie, ao longos de décadas, sempre perseguido pela mesma intolerância que assassinou os caricaturistas do "Charlie Hebdo". Embora, até hoje, com mais sorte.

Uns anos antes desse episódio, creio que em finais de 1987 ou início de 1988, no Palácio das Necessidades, teve lugar uma receção oferecida por ocasião de um congresso internacional de escritores. 

Como quase sempre acontece em ocasiões similares, os portugueses juntavam-se em grupinhos entre si, deixando os estrangeiros à sua própria conta. Notei então que uma figura com um ar bizarro, com uma cara algo mefistofélica e pouco comum, se passeava sozinho e olhava, com atenção, a grande tapeçaria que serve de cenário ao grande salão. 

Ao vê-lo assim isolado, e por uma questão de mera cortesia de acolhimento, apresentei-me e expliquei-lhe a versão que tinha por boa do significado da cena que era retratada nessa peça decorativa. Ele acrescentou um comentário sobre o palácio onde estávamos, ao que eu terei explicado que aquela havia sido residência real até ao dia da implantação da República. Disse-me o nome, que não fixei. Apenas anotei que nascera na Índia e vivia em Londres. Anotei para sempre aquele fácies pouco comum, mas logo esqueci o episódio. Até ao dia, não muito tempo depois, em que Salman Rushdie passou a ser notícia, em todo o mundo, e eu fiz um “flash back” até àquela nossa brevíssima conversa.

Entretanto, alguns anos mais passaram. Um dia, creio quem em 1993, recebi na embaixada em Londres, onde estava colocado, um telefonema de um dirigente da Juventude Socialista, que eu nunca tinha visto e então só conhecia de nome. O seu nome era António José Seguro. Queria falar com o embaixador, que estava ausente. Falou comigo, que o substituía. Queria transmitir à embaixada a sua preocupação pelo facto do balcão da TAP, na capital britânica, se recusar a emitir um bilhete para Salman Rushdie se deslocar a Portugal, creio que ao Porto, a uma iniciativa para a qual a JS o tinha convidado. E pedia a nossa intervenção.

Rushdie estava no auge da sua "glória", mas também dos elevados riscos que estava a correr. Seguro explicou-me que estava previsto que o escritor viajasse sob pseudónimo, como já acontecera noutras ocasiões, para outros destinos, e que a sua segurança em Portugal estava plenamente assegurada pelas nossas autoridades, com o comando da PSP a ter o assunto a seu cargo. Foi-me dado o contacto do comandante-geral da PSP, com o qual tudo podia ser confirmado.

Expliquei a António José Seguro que a embaixada nada podia fazer, porque não lhe competia intervir nas regras, em matéria de segurança, pelas quais a TAP se regia. Podia, no entanto, pô-lo em contacto com o diretor da companhia no Reino Unido, a quem ele poderia expor diretamente o problema. Assim fiz. Ao diretor da TAP, sumariando a questão, disse, minutos depois, do telefonema que ia receber. E esqueci o assunto.

Até que, dias depois, mo "lembraram". A embaixada foi informada pelo MNE de que, contra mim, estava a ser encarada a instauração de um inquérito, possivelmente conducente a um processo disciplinar, a pedido do gabinete do primeiro-ministro português, por alegada "pressão" minha junto da TAP, num caso que tinha afetado a "segurança nacional". O homem da TAP em Londres, que logo contactei, deu-me a sua palavra de que, nem por sombras, dissera a Lisboa que tinha havido qualquer pressão da minha parte.

O tom com que o assunto chegou de Lisboa era sério. O MNE, na sua subserviência, zelosa e empanicada, face a S. Bento, passara entretanto a bola para o meu embaixador, o qual, claro, deu "dois berros por escrito”, depois de eu lhe explicar aquela que era uma coisa bem simples e verificável. A questão, não sem alguns outros episódios pouco edificantes para o estado da espinha dorsal de alguns colegas, acabou por morrer no seu ridículo e, até hoje, fiquei mesmo sem saber se Salman Rushdie veio então ou não a Portugal.

2 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

As barracas em que uma pessoa inocentemente se pode meter...

ZeBarreto disse...

Vergonhosos Cavaco e Barroso!
Rushdie veio mesmo a Portugal, esteve no Porto no Festival dos Jovens Socialistas (julho de 1993) e foi recebido pelo presidente Mário Soares, que estava de laço azul. A RTP fez uma reportagem no Porto, em que também aparecem Seguro e Guterres. Rushdie deu uma entrevista à RTP em que disse esperar chegar a velho e que os Versículos Satânicos eram, "já ninguém se lembra", um "livro cómico".
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/salman-rushdie-no-porto/
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/entrevista-a-salman-rushdie/
Abraço do
Zé B

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