quarta-feira, agosto 03, 2022

Black sauce

 


Imagino que possa ser um pouco estranho, para quem aqui me lê regularmente a falar de restaurantes e de academias gastronómicas, ouvir esta singela confissão: não sei estrelar um ovo! A cozinha é uma realidade “que não me assiste”, como alguns dizem, salvo como utente do ”output” de quem por lá opera. Não vou discutir nem elaborar sobre isto, peço apenas que tomem nota, antes de lerem o que vem a seguir.

Há já muitos anos, mas com uma idade em que os anos não eram muitos, numa determinada cidade do mundo onde vivia, num grupo de casais, diplomatas de vários países, surgiu uma ideia: e se as nossas mulheres, em lugar de estarem encafuadas nas cozinhas antes dos jantares, fossem brindadas, uma vez por mês, com uma refeição preparada exclusivamente por nós, pelos maridos? Elas ficariam na sala, bebendo uns copos, que também partilharíamos e, chegada a hora, seriam servidas de um repasto da nossa responsabilidade, a que, claro, nos juntaríamos. Se bem me recordo, os maridos eram quatro: um americano, um norueguês, um francês e eu. Rotativamente, caber-nos-ia uma das quatro funções: preparar bebidas e com elas uns amuse-bouche, uma entrada, o prato principal e a sobremesa. 

A ideia, que já não sei de quem foi, foi acolhida com imenso júbilo. Por todos? Não. Eu, sob o olhar divertido da minha mulher, entrei em pânico e com um sorriso amarelo, avancei com a dúvida de que poderia não estar à altura do desafio. Todos acharam que eu exagerava! Às tantas, até eu! E passou-se a vias de facto, logo se estabelecendo um calendário para os meses seguintes. 

Nos três primeiros meses, num slalom de pretextos, fui adiando a vez em que me competia a execução do prato principal. Sei que, entretanto, me safei bem nas bebidas (era só o que faltava!), inventei um dia uma salada tida por aceitável para entrada (tirada de uns magníficos livros ilustrados da Time-Life que a minha mulher colecionava) e já não recordo o que fiz de sobremesa (conhecendo-me, imagino que uma “laboriosa” salada de frutas). 

Um dia, chegou a vez em que me cabia a execução do “plat de résistence”. Era uma carne, ao que retive. Na véspera, como que para um exame, fechei-me a ler a Maria de Lourdes Modesto, cruzei dados com mais dois ou três livros de cozinha que havia lá por casa e tomei imensos apontamentos.

Aquilo metia batatas, arroz e legumes, numa complexidade cumulativa que me parecia impossível de acompanhar, pela ubiquidade de tarefas que implicava. Era-me dificil entender como se podiam fazer tantas coisas ao mesmo tempo! Pendurado com fita-cola no exaustor, tinha montado um “horário”, de acordo com os ensinamentos do livro, com os minutos exatos para cada procedimento, que tentava seguir com precisão, numa contagem decrescente até à hora de chegada das coisas à mesa. 

Os meus colegas, com as outras tarefas a seu cargo, estavam impedidos de me ajudar, a minha mulher estava refastelada na sala, à conversa com as amigas, imagino que temendo o pior. Eu suava em bica - aprendi então que faz um calor terrível nas cozinhas, coisa de que, até então, só suspeitava, quando por lá passava para ir buscar gelo para o whisky -, estado físico apenas atenuado por um bom tinto, cuja garrafa desviara e cujo consumo, a pouco e pouco, embora me tivesse descontraído, terá acabado por afetar, no rigor, o meu angustiado trabalho. 

“To make a long story short”, no meio de toda aquela azáfama, para mim em absoluto inédita, houve um molho que, quiçá por excesso de tempo de fervura, ficou negro que nem um tição e tinha um travo de leitura gustativa bastante complexa. Recordo, para sempre, que a chegada do produto à mesa foi “saudada” com uma unanimidade de apreciação embaraçante. (A carne parece que estava comestível, dizem).

Durante meses, com estoicismo e fazendo orelhas moucas, senti espalhar-se pelos círculos diplomáticos dessa capital, muito para além do nosso, então já propalado, “grupo dos cozinheiros”, a referência a uma tal “Chico’s black sauce”, de que se diziam “maravilhas”… Felizmente, acabei por ser transfererido de posto diplomático antes de me calhar outra vez a execução de um prato principal. Não sei se teria convivas!

Lembrei-me disto ontem, ao notar a arte com que um outro Chico, emérito fazedor de iguarias, se movimentava, com calma olímpica, entre a cozinha, um grelhador no jardim e a sala onde estávamos, parecendo ter tempo para tudo, produzindo, no final, um magnífico e muito variado jantar para um considerável grupo de pessoas. Ando cá a pensar se, um destes dias, lhe passo ou não a receita da minha “Chico’s black sauce”…

7 comentários:

João Cabral disse...

O senhor embaixador é bom na arte de dar ao dente. Já percebemos.

João Cabral disse...

Ou por outras palavras, tem conhecimentos de gastronomia na óptica do utilizador.

Flor disse...

:) :) :)

manuel campos disse...


"um travo de leitura gustativa bastante complexa".

Se me permite vou usar esta quando fôr oportuno e prometo que citarei a fonte sempre que possível...

Nuno Figueiredo disse...

piéce de resistence.

Francisco Seixas da Costa disse...

Olhe o acento, Nuno Figueiredo

S.Carvalho disse...

Pimba!!!! Cá se fazem .....

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