quarta-feira, setembro 21, 2022

Élia



Tenho amigos que morrem discretamente. Agora, foi a vez da Élia Rodrigues.

Alimento a ideia de que cruzei a Élia, pela primeira vez, num corredor da nossa embaixada em Luanda, nos idos de 82. Era economista, "número dois” do recém-criado ICEP na capital angolana. 

A Élia era um mulher alta, muito bonita, inteligente e extraordinariamente simpática. Era então casada então com um meu antigo colega de "tropa", o Leonel, um amigo que viria a desaparecer nas vagas do tsunami, em 2004, na Tailândia.

Com naturalidade, a Élia passou a acompanhar-nos em todos os momentos em que, nessa Luanda de quotidiano difícil, inventávamos coisas para entreter o tempo que nos sobrava, entre os dias de muito trabalho e as noites de recolher obrigatório: almoços regulares na nossa casa no “compound” da embaixada (a Élia trabalhava no 2° andar, eu trabalhava no 3° e vivia, com a minha mulher, no 4° Andar), uma imensidão de jantaradas com amigos, idas ruidosas a Cabo Ledo, noites divertidas na casa dos "Guedais”, do Zé Guilherme Stichini Vilela, do Fernando Valpaços, da Alzira e João Sobral Costa, tardes serenas de conversa no Mussulo. Tenho uma fotografia com a Élia no monomotor em que o Pena nos levou a Benguela, ela divertida e eu num susto, pela consciência tardia dos riscos da viagem.

Nada fazíamos, nessa nossa Angola em guerra civil, sem a Élia. Na sua casa, num daqueles prédios luandenses imensos, em forma de "livro", creio que num 19° andar, frequentemente sem elevador, conheci gente interessantíssima, porque a Élia construía e cultivava amizades preciosas. Numa dessas noites, vivemos, esgazeados, em direto, as imagens televisivas da tragédia futebolística de Heisel. Às vezes, para a fazer sair de casa para um jantar, mobilizávamo-nos para arranjar alguém que ficasse com o seu “monstrozinho”, como ela chamava carinhosamente à pequenina Filipa, a quem mando um beijo saudoso, com o nosso pesar.

Depois, nas décadas seguintes, com a nossa mútua vida errante, encontrávamo-nos a espaços com a Élia - frequentemente em Lisboa, também em Londres, mais tarde em Berlim, onde ela veio a trabalhar, e em Viena, onde eu então vivia. Um dia, recordo a barulheira que fizémos ao cruzarmo-nos, por mero acaso, numa esquina do Sablon, em Bruxelas! 

Quando, em 2001, fui viver para Nova Iorque, a Élia lá estava a receber-nos, como depois esteve em Washington. Sempre igual, sempre calorosa, um esteio de amizade, de companheirismo. E sempre com uma imensa coerência, nas ideias e nas opções de vida.

Com a Élia, as conversas eram retomadas como se tivessem sido suspensas ontem, muitas vezes ao lado de pessoas que havíamos conhecido por seu intermédio. Quanta gente, ao longo dos anos, me surpreende ao dizer: “Temos uma grande amiga comum, a Élia”. Entre nós, foi uma amizade firme, sólida, sem sombras, feita da partilha de muitas coisas.

Um dia, já há bastantes anos, chegou-nos a notícia: a Élia estava com sinais de Alzheimer. Lembrámo-nos então, de imediato, da doença que afetara a sua mãe e de que ela nos contara o calvário. Já depois da deteção da doença, encontrámo-la ainda em algumas escassas ocasiões, por Lisboa. Assumia, com coragem, a situação que em si galopava, brincando mesmo com os seus lapsos. Mas aquele sorriso, bom e bonito, ia ficando mais triste, o olhar mais distante, pressentia-se que a estávamos lentamente a perder. Como veio a acontecer.

Deixo uma palavra de imensa admiração para os amigos mais próximos, que a acompanharam até ao fim, e que, durante muito tempo, insistiram em fazê-la conviver e viver o mundo que lhe era ainda acessível.

A Élia, que já tínhamos perdido há muito, desaparece agora de vez. Ficam-nos histórias, conversas, cumplicidades, gestos. A tristeza que sinto, ao saber da morte física da Élia, leva a que me apeteça dizer um palavrão, de raiva.

4 comentários:

Flor disse...

Uma revolta imensa mas ficam as recordações dos dias felizes. Que descanse em Paz!

Joaquim de Freitas disse...

Belo texto, Senhor Embaixador, onde a amizade e o "souvenir" têm o lugar que se impôe.

Luís Lavoura disse...

um 19° andar, frequentemente sem elevador

Era tudo gente jovem, quem frequentava essa casa.

Deolinda.leal@portugalglobal.pt disse...

A Élia era uma grande amiga,amiga do seu amigo.Ficam as recordações que nunca irão sair do nosso coração.
Belo texto Sr. Embaixador que ao lê-lo até parece que estamos com a Élia ao nosso lado.
Adorei.

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