quinta-feira, setembro 29, 2022

O tiro

Conheci o José Simões Ilharco na Escola Prática de Administração Militar, onde fui seu instrutor da especialidade de Ação Psicológica, no período do 25 de Abril. 

Era jornalista de profissão, uma pessoa muito agradável e de excelente trato. Foi ele quem deu destaque no “Diário de Notícias”, onde trabalhava com o seu pai, a um polémico discurso que fiz no primeiro juramento de bandeira, após o 25 de Abril. 

Eu saí em junho de 1974 da EPAM e perdi-o de vista durante algum tempo. Voltei a reencontrá-lo no mês de outubro desse ano, na 2ª Divisão do EMGFA, no Palácio da Ajuda. Ele trabalhava na área da Comunicação Social, num gabinete ao lado do meu. 

O Ilharco, como eu lhe chamava com ele a designar-me por Seixas, era um declarado adepto do PPD e grande admirador de Sá Carneiro. Foi ele quem me apresentou António Patrício Gouveia, pessoa de quem fiquei amigo até à sua morte trágica em Camarate, bem antes de ele vir a ser chefe de gabinete de Sá Carneiro. 

Simões Ilharco, por esse tempo, estava em minoria num serviço onde a esquerda dominava, como era vulgar à época, mas onde também havia gente do CDS e muitas outras pessoas sem um alinhamento político claro. Não deixava de ter alguma graça, nesses tempos agitados do final de 1974 e inícios de 1975, vivermos ali num ambiente muito pluralista, onde, sem uma excepção que me lembre, as discussões foram sempre pautadas por uma total ausência de qualquer acrimónia. 

Com o Ilharco, eu havia então retomado o convívio que já vinha da EPAM. Por essa razão, o nosso relacionamento, sem ser íntimo, era mais próximo do que aquele que mantinha com a generalidade dos meus colegas daquele serviço militar onde trabalhávamos. 

O trabalho na 2ª Divisão só nos ocupava a parte da tarde – o que, aliás, me permitia ter um emprego durante toda a manhã no Restelo, na Ciesa-NCK. Creio que o Ilharco também tinha a sua atividade profissional durante a manhã. Muitos dos que ali prestávamos serviço militar, como era o meu caso e do Ilharco, aproveitávamos para almoçar diariamente na messe de oficiais em Pedrouços, após o que rumávamos para o Palácio da Ajuda, de onde não saíamos antes das sete da tarde. 

Num desses dias, à saída da messe, dei boleia ao Ilharco, o qual, por uma qualquer razão, estava nesse dia sem carro. Viémos a conversar nos breves minutos da viagem. Subimos no elevador que nos levava ao 3º andar do palácio e entrámos juntos na sala maior que era ocupada pelo serviço da Comunicação Social. 

Porque era o mais espaçoso dos nossos quatro gabinetes, em regra, algum do pessoal juntava-se por lá, antes de seguir para os seus locais de trabalho.

Nesse dia, à nossa entrada, estavam na sala quatro pessoas, em amena cavaqueira, entre o quais o João Lima Pimentel, chefe do serviço, e o Alexandre Pinto Monteiro, que trabalhava numa sala ao lado da minha. Todos éramos oficiais milicianos. Todos continuam hoje a ser testemunhas daquilo que se seguiu.

Nunca consegui estabelecer o sentido da conversa em que ambos ingressámos. Num certo ponto da mesma, o Simões Ilharco – que, como referi, havia sido meu instruendo – terá dito algo que me levou a retorquir, em tom jocoso: 

- Este aspirante já não tem respeito pela antiguidade!. 

Nesse instante, vi que o Pinto Monteiro tinha na mão o velho revólver que havia sido “desviado” no assalto à sede da Legião Portuguesa, na Penha de França, no 25 de Abril. 

Era uma arma bastante antiga, que ele tinha quase sempre sobre a sua mesa, com que todos brincávamos quando visitávamos o seu gabinete. Para nós, era uma peça de museu e não uma arma. Nem me passava sequer pela cabeça que ainda funcionasse. Aliás, creio que na 2ª Divisão não havia nenhuma arma, só lidávamos ali com papelada. 

Ao ver que o Pinto Monteiro empunhava o velho revólver, tenho ideia de que lhe disse: 

- Passa-me aí isso para pôr este nosso aspirante em sentido. É preciso restabelecer aqui a autoridade.

O Ilharco era tão aspirante como eu, a autoridade funcionava ali como uma graça.

O que se passou a seguir, levou um trágico segundo: o Pinto Monteiro passou-me o revólver para a mão e eu encostei-o à barriga do Simões Ilharco. Num acto irrefletido que não sei explicar, pressionei o gatilho, ouviu-se um estalido seco, que, no instante, não pareceu sequer ser o som de uma bala.

O Ilharco recuou um pouco, levou a mão à barriga e, com voz cava, disse: 

- Mataste-me - e foi caindo para trás, lentamente, sobre um degrau alcatifado, de um modo tão teatral que levou alguns dos presentes a esboçarem sorrisos, convictos de que estavam a assistir a uma “partida” por nós encenada. 

Do lado, ouvi então a voz trémula do Pinto Monteiro: “Estava carregada…”

Entretanto, o Ilharco deixou cair a mão com que segurava a barriga e um fio de sangue começou a deslizar sobre a camisa verde clara do uniforme. Toda a gente correu para ele.

Fiquei lívido! Apenas me recordo de, sem saber bem o que fazer, ter saído para a minha sala, logo ao lado, atirando-me para um sofá e gritando, para um atónito Pacheco Talhinhas, o capitão da Força Aérea (hoje general) que era meu chefe: “Dei um tiro no Ilharco!”

O Ilharco foi transportado para o Hospital Militar da Estrela, onde foi operado. Talvez porque a bala era velha, ou pelo facto do tiro ser à queima-roupa, o impacto da bala terá sido atenuado. Pelo menos, foi o que, à época, constou, para meu sossego.

Fui nessa noite ao hospital, com a minha mulher, tendo que enfrentar a legítima fúria de seu pai, convencido de ter-se tratado de uma tentativa de assassinato, com motivações políticas. Dizem-me que chegou a sair num jornal uma notícia nesse sentido, mas nunca a li. Dias mais tarde, já recuperado, o Ilharco terá esclarecido junto do seu pai o que realmente terá acontecido. Isso explica o modo afável como ambos então me receberam, ainda no hospital.

Como é de regra, houve um processo disciplinar, instruído pelo então major Espírito Santo (depois general e CEMGFA), tendo eu sido ilibado de qualquer intencionalidade no ato, no entanto irresponsável, que praticara. Toda a gente que assistiu ao incidente, sem exceção, confirmou os factos, sem uma reticência que fosse. Nunca ninguém, no serviço onde trabalhávamos, alguma vez deu voz a outra versão que não fosse a de um lamentável acidente. Ofende-me profundamente a insinuação de que possa ter havido uma motivação dolosa naquele infortunado momento. Aliás, não tendo havido entre nós a menor altercação, outra hipótese seria sempre absurda. Mas, claro, não me espanto que quem não gosta de mim possa lançar dúvidas sobre aquilo que sempre foi incontroverso para toda a gente que trabalhava naquele serviço.

Porém, a minha culpabilidade pessoal face ao José Simões Ilharco nunca se atenuou e só é minorada por saber que ele não terá ficado, por esse motivo, com a sua saúde afectada. Com a posterior vida profissional a levar-me para o estrangeiro, raramente voltei a cruzar-me com o Ilharco e só de quando em vez o acaso fez com que nos encontrássemos. Nessas ocasiões, dialogámos de forma serena e, recordo-me, na primeira delas, revelou-me que "vivia" ainda com a bala no corpo, depois do incidente - o que muito me surpreendeu. Riu-se quando lhe perguntei se "apitava" quando passava nos detetores de metais dos aeroportos.

Este incidente abalou-me imenso. Sempre tive uma profunda rejeição a armas, nunca na vida cacei ou dei um tiro de pistola, tendo sido essa única excepção. Ainda me lembro do martírio que para mim era ter de disparar a G-3, na instrução, em Mafra. 

A história deste malfadado tiro, que para sempre passou a fazer parte da minha vida, e que continuo a contar amiúde, porque a assumo em pleno, sem nunca a esconder, é a mais triste de todas as memórias que guardo desse alegre tempo de Abril. 

Em Vila Real, há 115 anos...

... o rei não apareceu, o jantar não aconteceu mas o menu existiu e sou proprietário de um dos exemplares.