O inferno das máscaras retira a naturalidade às relações humanas e, em especial, à alegria dos bons encontros fortuitos. Damos de frente (ia dizer “de caras”, mas, afinal, é só meia cara) com pessoas que julgamos conhecer e, a menos que um de nós arrisque identificar-se, ficamos a olhar-nos de modo estranho, até que desistimos de consumar esse potencial reconhecimento.
Há poucas horas, numa cerimónia oficial, fiquei sentado ao lado de uma senhora de idade (constato agora que tem 23 anos mais do que eu e já há anos que sou "um senhor de idade"). Fizemos um cumprimento leve com a cabeça e coloquei a minha própria a pensar: quem poderá ser esta senhora? Ela estava ali com um estatuto similar ao meu. Aquele cabelo dizia-me alguma coisa! Demorou um minuto até se me fazer luz.
Aquela senhora tinha sido minha professora, nos idos de 1968. Era a professora catedrática de Geografia, Raquel Soeiro de Brito, reconhecida como uma das figuras mais marcantes daquela especialidade académica a nível nacional.
Há cinco anos, num tempo em que ainda não andávamos no atual baile pandémico de máscaras, no dia em que ambos tínhamos tomado posse das funções que ainda hoje ocupamos, a professora Raquel Soeiro de Brito tinha tido a gentileza de atravessar uma sala do Palácio de Belém para vir ter com este seu antigo aluno, a quem saudou com generosa simpatia. Fiquei encantado com o seu gesto!
Falámos então desses tempos antigos no Palácio Burnay, na Junqueira, numa escola onde preponderava Adriano Moreira, tendo ela lembrado que, no seio do corpo docente, eu tinha uma imagem de “revolucionário” (era dirigente estudantil e tive por ali alguns conflitos, mas, na realidade, eu era um “paz de alma”, ao lado de outros). A faculdade era o ISCSP, que na altura tinha um "U" no final da sigla, tal como o país tinha um "Ultramar" cujas geografias a professora Raquel Soeiro de Brito nos ensinava a conhecer melhor.
A professora Raquel Soeiro de Brito é hoje uma senhora de 96 anos, com um aberto e agradável sorriso. Na ocasião, devo dizer que não consegui ter coragem de dizer-lhe que, como professora, há mais de meio século, ela projetava, com aquele seu ar quase nórdico, uma imagem um pouco intimidante e que dela recordava umas graças cortantes, das quais alguns colegas eram frequente alvo.
Há pouco, quando ainda pensei relembrar-lhe quem eu era, para o que me preparava para tirar a minha máscara por um instante, o “dono da casa”, do Palácio de Belém, entrou no espaço onde estávamos, a cerimónia teve início e eu perdi assim o ensejo de saudar, como devia ter feito, a minha antiga professora de Geografia.
É que gostaria de lhe ter dito que, se no exame que fiz no fim das suas aulas teóricas não passei então de um mísero e justo 13, eu viria, afinal, a ter o privilégio de uma imensidão de “aulas práticas”, na muita geografia de algum mundo por onde a vida me fez andar. E que, para esse meu olhar de andarilho, incessantemente curioso, muito tinha contribuido o que tinha decantado das suas lições, sempre marcadas por uma leitura culta, interdisciplinar, aberta, interrogativa, à procura da riqueza das coisas que sempre está por detrás das coisas que estão à vista. Fico para sempre a dever-lhe isso.