É conhecida a graça
jornalística britânica segundo a qual era o continente, nunca a Grã-Bretanha,
que ficava “isolado” quando o nevoeiro se levantava na Mancha. O cultivo
deliberado de uma identidade própria, bem como a capacidade para sustentar um frequente
isolamento, foi algo que o Reino Unido sempre se habituou a fazer ao longo da
sua presença nas instituições europeias. Por muito que as atitudes britânicas às
vezes nos choquem, não podemos deixar de reconhecer que, a grande distância, o
Reino Unido foi o país que melhor conseguiu que a sua ideossincrasia fosse
respeitada e afirmada na Europa, ao longo das últimas décadas.
Por muitos anos, foi o laço
transatlântico que deu o tom à especificidade britânica no quadro da integração
continental. Sem chegarmos à teoria conspirativa francesa segundo a qual o
Reino Unido funcionava como uma espécie de uma “quinta coluna” americana, é uma
evidência que os britânicos usavam a special
relationship para alimentar essa atitude distanciada. E, há que dizê-lo,
fizeram-no muitas vezes com sucesso e viriam a encontrar, nesse tabuleiro de
entendimento privilegiado com o “amigo americano”, uma espécie de elemento
compensatório para as crises europeias.
Em muitos anos de convívio
próximo com a excelente diplomacia do “Foreign Office”, nunca vislumbrei o
menor embaraço da sua parte em sustentarem algumas posições “impossíveis”, às vezes
com algum cinismo, outras vezes recorrendo a uma realpolitik quase obscena – como aconteceu no caso de Timor-Leste.
Certos ou errados, com governos de várias colorações, os britânicos mantiveram-se
sempre muito determinados na defesa da sua agenda nacional. Esta passava,
sinteticamente, por três pilares: defesa dos direitos adquiridos em várias
dimensões da vida institucional europeia, preservação de autonomia estratégica
no plano externo, assente na preeminência do vetor transatlântico e da defesa da
sua posição na ONU, e, last but not least,
conservação dos privilégios da praça londrina, associada à permanente defesa de
uma postura liberal no comércio internacional.
Os tempos mudaram para todos,
e também para o Reino Unido. A relação transatlântica passa hoje por uma época
menos “entusiasmada”, a capacidade britânica de projeção de influência e força já
está muito longe de se poder sentir num mundo “onde o sol não se punha”, o seu
tecido social interno sofre tensões que não só suscitam legítimas interrogações
sobre a bondade do seu potencial integrador como induzem novos reflexos
soberanistas que condicionam, a um grau nunca antes atingido, a gestão da sua
política para a Europa.
David Cameron, o
primeiro-ministro britânico, fez uma “fuga em frente” ao propor um referendo interno
sobre a permanência na Europa. Perante uma opinião pública cultivada na
diabolização de Bruxelas, uma operação desta natureza acarreta um elevadíssimo
risco, que Cameron agravou agora ao colocar sobre a mesa uma agenda
reivindicativa onde, a par de coisas de meridiana sensatez e passíveis de algum
acordo, colocou alguns temas inegociáveis, que vão desde um “droit de regard”
sobre a evolução da zona euro até uma derrogação dos direitos sociais dos
migrantes. Os portugueses seriam aqui gravemente afetados e Londres sabe bem que
isto, para nós, é inaceitável.
Foi um antecessor de Cameron,
o lorde Palmerston, quem um dia afirmou que o Reino Unido “não tem amigos, só
tem interesses”. Talvez os tempos tenham entretanto ensinado aos britânicos que
podem ter algum interesse em ter amigos, mas que esses amigos – como é o nosso
caso – não poderão estar com eles quando é o próprio Reino Unido quem se
obstina em afetar os seus interesses.