segunda-feira, julho 02, 2018

A alegria da pobreza


Não quero ser desmancha prazeres. Mas ver amigos que muito prezo, aos saltos, num palco, a debitarem, aos berros, uma parte desta reacionaríssima letra fez-me sentir algo estranho

Que saudades eu já tinha
da minha alegre casinha
tão modesta como eu.
Como é bom, meu Deus, morar 
assim num primeiro andar 
a contar vindo do céu 
O meu quarto lembra um ninho 
e o seu tecto é tão baixinho 
que eu, ao ir para me deitar, 
abro a porta em tom discreto, 
digo sempre: «Senhor tecto, 
por favor deixe-me entrar.» 
Tudo podem ter os nobres 
ou os ricos de algum dia, 
mas quase sempre o lar dos pobres 
tem mais alegria. 
De manhã salto da cama 
e ao som dos pregões de Alfama 
trato de me levantar, 
porque o sol, meu namorado, 
rompe as frestas no telhado 
e a sorrir vem-me acordar. 
Corro então toda ladina 
na casa pequenina, 
bem dizendo, eu sou cristão, 
“deitar cedo e cedo erguer 
dá saude e faz crescer” 
diz o povo e tem razão. 

Eu sei que era uma homenagem a Zé Pedro, dos Xutos e Pontapés, mas isso não invalida que quem canta um texto saiba o que está efetivamente a cantar. Ou será que, um destes dias, ainda poderemos voltar a ver as três principais figuras do Estado, divertidas, a zurzir os nossos ouvidos com uma versão rock desta outra peça do miserabilismo lusitano mais retrógado?

Numa casa portuguesa fica bem
Pão e vinho sobre a mesa
E se à porta humildemente bate alguém,
Senta-se à mesa com a gente. 
Fica bem essa franqueza, fica bem,
Que o povo nunca desmente
A alegria da pobreza
Está nesta grande riqueza 
De dar, e ficar contente 
Quatro paredes caiadas,
Um cheirinho à alecrim,
Um cacho de uvas doiradas,
Duas rosas num jardim, 
Um São José de azulejo 
Mais o sol da primavera, 
Uma promessa de beijos 
Dois braços à minha espera 
É uma casa portuguesa, com certeza!
É, com certeza, uma casa portuguesa!
No conforto pobrezinho do meu lar,
Há fartura de carinho
A cortina da janela e o luar,
Mais o sol que bate nela 
Basta pouco, poucochinho pra alegrar 
Uma existência singela 
É só amor, pão e vinho 
E um caldo verde, verdinho 
A fumegar na tijela 

Não tem importância nenhuma? É apenas uma memória da tradição, que nada tem de ideológico? Ai não? Então, e se acaso a um destes modernaços intérpretes lhe desse na veneta de fazer um rap de outra peça? Será que essas mesmas figuras (e os seus "compagnons" de palco) aceitariam debitar estas estrofes?

Lá vamos, cantando e rindo

Levados, levados, sim
Pela voz de som tremendo
Das tubas, clamor sem fim.
Lá vamos, que o sonho é lindo!
Torres e torres erguendo.
Rasgões, clareiras, abrindo!
Alva da Luz imortal,
Roxas névoas despedaça
Doira o céu de Portugal!
Querer! Querer! E lá vamos!
Tronco em flor, estende os ramos
À Mocidade que passa.
Cale-se a voz que, turbada,
De si mesma se espanta,
Cesse dos ventos a insânia,
Ante a clara madrugada,
Em nossas almas nascida.
E, por nós, oh! Lusitânia,
Corpo de Amor, terra santa, 
Pátria! Serás celebrada,
E por nós serás erguida,
Erguida ao alto da Vida!
Querer é a nossa divisa.
Querer, palavra que vem
Das mais profundas raízes.
Deslumbra a sombra indecisa
Transcende as nuvens de além...
Querer, palavra da Graça
Grito das almas felizes
Querer! Querer! E lá vamos
Tronco em flor estende os ramos
À Mocidade que passa.


Um pouco mais de atenção àquilo que se diz era capaz de não ser uma má política. Digo eu...

domingo, julho 01, 2018

Afinal, é o que era!


A frase comum - ouvida da boca dos desiludidos, às vezes dos snobes, dos de má ou boa memória ou de quantos combinam tudo isso - é “já não é o que era!”. A expressão remete sempre os circunstantes para uma natural inveja face a quem a proferiu e que teve o privilégio de ter sido testemunha, com proveito, desses tempos em “que foi”. Refiro-me aos restaurantes, onde regressamos, anos depois, provamos, refletimos e, sobranceiros, concluímos com o desencantado “já não é o que era!”

Vem isto a propósito do facto de, nos últimos três dias, ter ido a três restaurantes que, felizmente, não me deram a mínina oportunidade de dizer a frase fatal. É que pude encontrar tudo como era. E bem!

O primeiro foi a “Casa de Armas”, em Viana do Castelo, onde, num registo clássico mas de qualidade constante, tenho vindo a acumular boas experiências, com um serviço muito profissional e atento. O segundo foi o “Bocados”, nos arredores de Ponte de Lima, onde um “conceito” gastronómico bastante atípico para a região nos traz surpresas cada vez mais agradáveis e imaginativas. O terceiro é o renovado “Fernando”, em Pedras Rubras, onde hoje voltei a comer um dos mais saborosos cabritos que se encontra pelo país. 

Deixo-os com uma fotografia do “Bocados”, o mais difícil de descortinar no mapa, mas que, como diz o Michelin quando a deslocação merece o esforço, “vaut le détour”.

sábado, junho 30, 2018

Ao Zé e à Catarina

Sou feito de hábitos. Muitas vezes, sou mesmo um comodista de rotinas. Sem a menor vergonha. Como todos os velhos, faço um esforço para me adaptar àquilo que não conheço. O verdadeiro barómetro da idade é aquele instante em que, perante uma dificuldade tecnológica, temos a tentação de desistir, o momento em que interiorizamos que “já não vale a pena”. Ainda lá não cheguei, mas já estive mais longe.

Hoje, na manhã deste sábado frescote, num quiosque em Âncora, pedi uma braçada de jornais em papel. “O Diário de Notícias não chegou”. “Essa agora! Mas hoje ainda era em papel. Tem a certeza de que não saiu?” Ele não sabia. Cheguei a Caminha e, na “Atenas” (eu ia acompanhado dos embaixadores gregos em Portugal, o que proporcionou uma conversa filosófica com o dono da tabacaria), lá estava o “Diário de Notícias”. O último dia em papel. Está agora aqui à minha frente. Ainda bem.

Amanhã, sai a primeira edição do “Diário de Notícias” dominical. Depois, passamos a ter o “online”, para os restantes dias da semana. Prometo tentar ser fiel, mas já tenho idade para, quando me apetece, poder ser nostálgico.

sexta-feira, junho 29, 2018

Pobre Humberto Delgado!


Terça-feira passada. Atraso no voo TAP para Madrid: cinco minutos! Quase a perfeição! No aeroporto, percebi que as coisas não iam ser bem assim. A porta foi anunciada e já havia mais 25 minutos. Era a porta 16. Tomei assento por lá. Minutos depois, vi no quadro: o embarque tinha passado para a porta 26, bastante mais longe. E lá fui eu. Encontrei um amigo de jornada e começámos a conversar. A certa altura, um de nós olhou o quadro e reparou: o embarque tinha mudado para a porta 13. Precisamente no outro extremo do aeroporto. Lá teria que ser! E fomos. Chegados, sentámo-nos. Anunciado entretanto um novo atraso. Afinal, já ia numa hora e dez. Retomada a conversa. Aviso: o embarque voltava, de novo, para a porta 26, repito, no outro extremo do longo corredor. Bem mandados, lá fomos. Embarcámos. Tinha saído de casa às 11.30, chegado ao aeroporto às 12.00, partido às 15.00. Cheguei ao hotel em Madrid às 18.30 locais. De porta a porta, seis horas, contando com a diferença horária! O voo Lisboa-Madrid demora 50 minutos! (No regresso, no dia seguinte, tudo “melhorou”: mais de duas horas de atraso!)

Todos os dias há notícias de frequentes atrasos da TAP, que cancelou, nos primeiros dias desta semana, meia centena de voos. A “nova” TAP pode já dar lucros aos donos, mas só dá dores de cabeça aos utentes.

O aeroporto de Lisboa está hoje transformado num verdadeiro caos, vivido como se tal fosse a coisa mais natural do mundo. A começar pelo desfuncional sistema de chegada dos automóveis nas partidas, a acabar no mundo quase mafioso do transporte público nas chegadas, converteu-se num monstro à beira da iminente rotura. A certas horas, as filas para os controlos de segurança e para o “check-in” têm uma dimensão que obriga a um gasto de tempo perfeitamente irracional, que dilui as vantagens do transporte aéreo. Estes atrasos só são batidos pela tragédia em que se transformaram as chegadas de países fora da zona Schengen, numa mostra de desprezo objetivo por quem nos visita. Por insuficiência de instalações, a densidade dos passageiros tornou-se abafante, com falta de lugares sentados, sem o cuidado de haver suficientes passadeiras rolantes, evitando que as pessoas sejam obrigadas a calcorrear centenas de metros por corredores, nos quais beber uma água ou comer alguma coisa as sujeita a um assalto à mão armada em matéria de preços.

Salazar rir-se-ia se soubesse o vexame que Humberto Delgado está a passar por ter o seu nome nesta espécie de aeroporto, tendo sido ele o criador da TAP.

quarta-feira, junho 27, 2018

A Europa em palavras


Quinta-feira, dia 28 de junho, pelas 17 horas, na Sociedade de Geografia, em Lisboa, na rua das Portas de Santo Antão, no âmbito de um conjunto de conferências sobre “As Décadas da Europa”, farei uma palestra sobre o tema “A Europa do Milénio - a presidência portuguesa de 2000 e depois”.

Sexta-feira, dia 29 de junho, pelas 14.30 horas, na Universidade Católica, na rua Diogo Botelho 1327, no Porto, farei uma palestra sobre o tema “A União Europeia no mundo - Desafios estratégicos”.

Madrid e a vida


“Madrid me mata” era o nome de uma revista que me lembro de ter comprado nos anos 80, uma idade em que aquilo que nela era anunciado como vida noturna já começava a descolar da “pedalada” minha geração. 

Hoje e ontem, Madrid “matou-me” de calor, mas isso não me impediu, com a ajuda da Uber, de, após o trabalho, conhecer uma excelente livraria, a “Marcial Pons”, dedicado ao direito, economia e não só. E de passar duas boas horas no “Reina Sofia”, um museu onde os “seniores” entram sem pagar (o desconto não deu para os gastos em livros).

A associação - um pouco funesta, reconheço - da palavra morte a Madrid trouxe-me à memória o filme “Mourir à Madrid”, do início dos anos 60. O governo franquista, com rara ingenuidade, havia dado autorização e imensas facilidades a um cineasta francês para fazer um documentário, que achava ia redundar numa operação de propaganda do regime. Enganou-se redondamente: o filme acabou por resultar num forte libelo acusatório contra Franco e o comportamento das suas tropas durante a Guerra Civil, bem como revelador da pobreza de muitos setores da Espanha dos tempos mais recentes, funcionando mesmo como uma magnífica ajuda às forças oposicionistas. Furibundo, o governo de Madrid chegou a ameaçar De Gaulle de congelar as relações económicas, se o filme viesse a ser exibido. Claro que acabou por não ter o menor sucesso.

Tudo isso já passou à história. Hoje, Madrid é apenas vida. E que vida!

Leis da bola

Pergunto-me se as detalhadas transmissões televisivas, com o VAR à mistura, não deveriam levar a uma reconsideração da crescente complacência com que os árbitros julgam os lances de área. 

Se as placagens e “arrastões” feitos pelos defesas aos adversários, nas cenas das marcações dos cantos e dos livres, fossem mais frequentemente punidas com penalti, talvez aquele espetáculo não se repetisse com tanta frequência. 

Mas, para isso, teria de haver um aviso geral prévio, por parte das estruturas de arbitragem da FIFA, seguido de instruções concretas à arbitragem. 

Estejam atentos! O que se está a passar neste domínio no Mundial já raia o absurdo.

terça-feira, junho 26, 2018

“Vizinha” Espanha?



De início, o atraso no voo TAP para Madrid era de 5 minutos! Que perfeição! Chegado ao aeroporto, percebi que as coisas não iam ser bem assim. Quando a porta foi anunciada, já havia mais 25 minutos “à marca” (como na linguagem do bilhar). Era a porta 16. Fui andando para lá. Lia eu a net quando vi no quadro (e recebi um SMS): o embarque tinha passado para a porta 26, bem mais longe. Ainda havia muito tempo. E lá fui eu. Encontrei um amigo que ia na mesma jornada e começámos a conversar. A certa altura, um de nós olhou para o quadro e viu que o embarque passou para a porta 13. Precisamente outra ponta do longo corredor. Lá teria que ser! Andámos um bom bocado e chegámos. Sentámo-nos. Anunciado um novo atraso. Afinal já ia numa hora e dez. Conversámos e, num certo momento, outro SMS: o embarque era de novo na porta 26, repito, no outro extremo do aeroporto. E lá fomos. E lá embarcámos. Tinha saído de casa às 11.30, chegado ao aeroporto de Lisboa às 12.00, partido às 14.45. Cheguei ao meu hotel em Madrid às 18.30. De porta a porta, sete horas*! O voo Lisboa-Madrid demora 50 minutos!

(*Na realidade, seis, porquanto há a diferença horária)

segunda-feira, junho 25, 2018

Irão



Foi também em finais de junho. Há precisamente 18 anos. Eu tinha ido a Teerão chefiar uma missão da União Europeia. O dia havia sido preenchido por uma reunião de “diálogo político” algo tensa. As relações entre a União e o Irão estavam num período difícil.

O embaixador português em Teerão, Costa Arsénio, convidou-nos para jantar num restaurante, num antigo “caravanserai” (estalagem usada no passado para acolher caravanas). Na sala, havia algumas mulheres, todas em trajes locais. Mas, no palco, a tocar e cantar música típica, só havia homens.

Durante o jantar, era visível que a nossa mesa era objeto de alguma curiosidade por parte dos circunstantes. Uma espécie de ilha estrangeira. No final, ao passarmos por um grupo de jovens, um deles tentou matar a curiosidade e perguntou-me, em inglês, de onde vínhamos. Ao ouvir o nome de Portugal, o coro do grupo foi unânime: “Figo!” No Irão, o futebol é muito popular e, à época, aquela era a nossa principal vedeta.

Se fosse logo à noite, gritariam “Ronaldo!” ? Espero bem que tenham razões para isso! 

José Azevedo



Acabo de saber que morreu, aos 84 anos, José Azevedo, consul honorário de Portugal em Manaus. Tive-o ao meu lado quando, em 2005, poucos meses depois de chegar ao Brasil como embaixador, decidi comemorar junto da Comunidade portuguesa no Amazonas o Dia de Portugal. 

Na considerável rede de cônsules honorários de que Portugal dispunha no Brasil, que conheci bastante bem e que reforcei quanto pude, sem nunca me ter arrependido de nenhuma das escolhas feitas, raramente encontrei figuras com o empenhamento de José Azevedo. Dotado de forte personalidade, determinado, com um feitio que, à primeira vista, parecia menos fácil, José Azevedo era um português de corpo inteiro, com forte sentido patriótico. 

Chegado ao Brasil, ido de Portugal com os pais, apenas com um ano de idade, foi um homem que se construiu a si próprio, um empreendedor que juntou imenso sucesso económico a um justo prestígio local. Era proprietário de uma importante rede de distribuição e, desde há muito, exercia cargos de responsabilidade no associativismo empresarial amazonense. 

Pude verificar como era imensamente considerado no seio dos portugueses que servia, bem como das autoridades locais. Recordo-me do orgulho com que me mostrou as instalações do consulado, que pagou do seu próprio bolso, no rés-do-chão do qual tinha organizado uma exposição relembrando a figura de uma personalidade da minha terra, de Vila Real, Emídio Vaz d’Oliveira, também uma destacada figura da comunidade luso-brasileira.

À família de José Azevedo quero deixar expresso o meu pesar pelo seu falecimento.

domingo, junho 24, 2018

Os malabaristas da palavra

Recordo-me de um cromo, do mundo do futebol, que um dia disse que “o que hoje é verdade pode ser mentira amanhã”, ou o seu contrário. Na política, habituei-me a passar a olhar de soslaio, oferecendo-lhes o sorriso irónico da eterna dúvida, os que um dia disseram “nunca mais” e, tempos depois, com ou sem “vaga de fundo” inventada como alibi, regressam pela irresistível porta da ambição. 

Tenho orgulho de fazer parte do grupo de pessoas - que, felizmente, não são tão poucas quanto isso - que, quando comprometem a sua palavra, não voltam atrás com ela. É que vida, para quem quer ser respeitado, só tem uma cara.

Por essa razão, ao assistir, nas últimas horas, ao espetáculo de indignidade perante a palavra dada, revelado por um patusco ex-dirigente desportivo, não me apetece apenas rir. É que, mais do que o riso, este tipo de “flick-flack” convoca um inevitável juízo de piedade, em face de uma evidente indigência moral. A qual, aliás, nada surpreende, diga-se.

sábado, junho 23, 2018

Chamado à Guarda


Na minha infância, nas visitas à casa de aldeia do meu avô materno, em Bornes de Aguiar, ouvia por ali histórias muito divertidas. Ou, talvez, elas fossem apenas sedutoras para a minha ingenuidade de então. Registei algumas na memória, nenhuma no papel. E já não estão comigo as pessoas que me poderiam ajudar a reconstituí-las.

Uma dessas histórias, de cujo protagonista não cuido em lembrar o nome, tinha a ver com uma espécie de gatuno “oficial” da aldeia. De dia, era um fulano como os outros, trabalhador rural, com um rancho de filhos. Mas tinha um lado “Dr. Jeckill and Mr. Hyde”. Era conhecido por golpes noturnos à propriedade alheia, desviando desde fruta a materiais de construção, isso num tempo em que os cuidados de segurança eram mínimos e, quase sempre, desnecessários.

O homem foi várias vezes detido, passou mesmo algum tempo em prolongado confinamento prisional (hoje deu-me para este “understatement”) e, tal como Claude Rains dizia na cena final do “Casablanca”, passou a ser um dos “usual suspects” sempre que alguma coisa desaparecia na aldeia.

Na memória de infância ficou-me para sempre a expressão ouvida, a propósito das aventuras anti-patrimoniais do homem: “Foi chamado à Guarda”. Era ao posto da Guarda Nacional Republicana, nas Pedras Salgadas, ali ao lado, a que ele era convocado, para “averiguações”, como escreveria um estagiário de imprensa.

O fulano já morreu há várias décadas. Agora, perante um incidente daquela natureza, seria pouco eficaz “chamá-lo à Guarda”. É que o posto da GNR nas Pedras Salgadas já só tem um único guarda, imagino que num regime “from-nine-to-five”, o que permite suposições divertidas sobre a sua operacionalidade. Mas, pelo menos, em matéria de “recursos humanos”, passará a ter precisamente uma unidade mais do que a agência local da Caixa Geral de Depósitos, porque essa vai mesmo fechar.

Felizmente que, como se vê, o combate à desertificação do interior vai de vento em pôpa. O que faria se não fosse...

Waldir Pires


Aos 92 anos, morreu agora uma grande figura da política brasileira, Waldir Pires. O brasileiro comum conhece mal este homem político discreto, que teve o seu primeiro cargo no governo em 1950, esteve exilado pela ditadura militar, foi ministro de várias pastas, foi candidato à vice-presidência da República, ocupou vários cargos parlamentares e foi, por duas vezes, governador da Bahia.

Conheci-o em Brasília, quando fazia parte do governo de Lula. Waldir era um homem encantador, com um sorriso bom e uma permanente “boa onda”. Falámos algumas vezes, numa das quais me contou a sua aventurosa fuga para o Uruguai, com pormenores deliciosos. O seu último cargo foi como ministro da Defesa e tenho bem presente uma coisa que me disse - e em que tinha toda a razão: “depois da minha luta contra o regime militar, o facto de hoje ser aceite por eles como ministro, sem o menor problema, é a prova da democraticidade das suas chefias”. Só posso desejar que Waldir Pires se não tenha enganado.

No Brasil, por razões que não interessa agora explicar, toda a estrutura da aeronáutica civil mantém-se sob o controlo dos militares, pelo que o ministro da Defesa superintende no setor. 

Um dia, o caos instalou-se no serviço de transportes aéreos do Brasil. Creio que foi uma greve dos controladores que desencadeou uma crise que praticamente paralisou o país por uns dias. No Brasil, com aquela dimensão, viajar de avião é a regra, dado que as distâncias terrestres são imensas e, além disso, em grande parte do território, as estradas, quando as há, estão longe de ser recomendáveis. Essa crise nos transportes ficou conhecida como o "apagão" aéreo (a palavra "apagão" nasceu numa crise energética que deixou sem eletricidade o país, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, e, a partir daí, o brasileiro passou a utilizar o termo para designar tudo o que "está parado").

O ministro foi então pessoalmente acusado de inoperância na resolução rápida da crise e, meses depois, na sequência de um desastre aéreo, foi obrigado a demitir-se. Estive na sua despedida e na serena substituição no Ministério da Defesa por Nelson Jobim, outro bom amigo com quem, ainda há dias, almocei por aí.

No Brasil, há uma magnífica revista chamada “Piauí”, que faz um excelente jornalismo. Grande no formato, com papel "pesado", grafismo atraente mas sóbrio, tem artigos longos mas muito substanciais, embora num estilo solto que leva a que a qualifiquem como "uma revista sem gravata". Ora a "Piauí", no número editado imediatamente após o "apagão aéreo" inseriu um histórico e irónico editorial com o título "Obrigado, Waldir!" 

Porquê? O texto ligava a caótica gestão que o ministro teria feito da situação, obrigando as pessoas a esperar, às vezes por dias, nas salas de espera e no chão dos aeroportos, à exponencial subida no número de exemplares da "Piauí" vendidos. E explicava (si non è vero, è ben trovato): a "Piauí" é uma revista com longos artigos, que precisam de muito tempo para serem lidos. Ora, segundo o divertido texto, fora precisamente o facto das pessoas "terem mais tempo", isto é, estarem bloqueadas e sem nada para fazer nos aeroportos a razão do sucesso editorial desse mês. E, por essa razão, agradecia ao ministro do "apagão aéreo" a involuntária contribuição dada para o seu sucesso...

Tendo conhecido o humor de Waldir Pires, tenho a certeza de que se riu desta graça, como se ria de muitas outras coisas divertidas da vida, que foi merecidamente longa e bem cheia. 

Oportunismo

Sou do tempo em que se acusava Tiago Brandão Rodrigues de ser um títere, à frente do Ministério da Educação. Para esses críticos, Mário Nogueira era o verdadeiro ministro. Por essa razão, todas as decisões de Brandão Rodrigues eram más e perniciosas para o país.

Nos dias de hoje, Brandão Rodrigues resiste às pressões sindicais e está em conflito aberto com Mário Nogueira. Este passou agora a ser olhado com outros (oportunistas) olhos. Porquê? Ora essa! Porque o que é preciso e continuar a dizer mal de Tiago Brandão Rodrigues, isto é, do governo.

sexta-feira, junho 22, 2018

Sorrisos a mais


No início de 2000, o líder conservador austríaco, vencedor das eleições no seu país, decidiu fazer uma coligação com um partido de extrema-direita, cujos responsáveis haviam dado mostra pública de simpatias pelo nazismo. A Europa comunitária reagiu, em polvorosa, e Portugal, enquanto presidência da União Europeia, teve de gerir aquele que foi um período muito delicado da vida europeia. A Áustria foi alvo de “sanções” e o assunto acabou por vir a originar a inserção de disposições no novo tratado europeu então em curso de negociação, contemplando a possibilidade de um Estado poder vir a ser suspenso de membro, em determinadas condições. Noto, para se perceber o que mais adiante refiro, que aí se fala de “um” Estado, pressupondo-se que os restantes se mantêm no completo respeito pelo acervo legislativo relevante.

Lembro-me bem de que, à época, alguns se interrogaram: mas então os cidadãos de um país não podem eleger para os governar quem muito bem entendam, independentemente da sua ideologia? Sim e não. Sim, porque cada país é plenamente livre de escolher os seus deputados e, a partir deles, formar governos. Não, porque, ao entrarem para a União Europeia, subscrevendo os seus tratados, os Estados que dela são membros comprometem-se a observar um conjunto de princípios e valores. E, da mesma maneira que isso inclui o respeito pela democracia, pelas liberdades, pelo Estado de direito e pela separação de poderes, o traumatismo da II Guerra mundial faz com que haja uma particular sensibilidade negativa a tudo quanto se aparente ao nazi-fascismo.

Ora, nos últimos anos, alguns Estados europeus têm vindo a atuar de um modo que, claramente, justificaria a invocação e aplicação das tais regras que os tratados contemplam. O procedimento é, como se compreende, complexo. O que se compreende menos é que esses Estados, não obstante os alarmes desencadeados, persistam nas mesmas políticas. E aqui, retomo a referência a “um” Estado, que atrás fiz: é que, para punir um desses Estados infratores é necessária a unanimidade dos restantes e, entre esses, estão já... outros infratores. A Europa atou as suas próprias mãos.

Como sair disto? Pelo mesmo modo político como, em 2000, se fez com a Áustria. Perante um governo italiano que anuncia um recenseamento étnico e, de forma ostensiva, desrespeita regras de direito humanitário básico, torna-se vergonhoso que os Estados europeus cumpridores se sentem à mesma mesa, sem protesto público, mantendo os sorrisos nas “fotos de família”. 

Lipp, Sorman e o sexo da Brasserie



Deve haver largas dezenas de “brasseries” em Paris. Mas sou suspeito: sou fã, há décadas, da “Brasserie Lipp”, no Boulevard Saint-Germain, em frente ao “Café de Flore“ e ao “Les Deux Magots” - e, vá lá, à livraria “L’Écume des Pages”, onde, ao final da tarde de ontem, como sempre acontece quando por aqui passo, o meu cartão de crédito leva um considerável rombo. Com a “La Coupole” e a “Bofinger”, a “Brasserie Lipp” faz parte das mais conhecidas, embora haja outras tanto ou mais antigas, de que um bom exemplo é a “Polidor”, que anuncia não aceitar cartões de crédito desde 1849...

Com muito mais de um século de existência, a “Brasserie Lipp” tem um menu que prima pela teimosa estabilidade. A mim, leva-me a ser conservador: quase sempre peço o mesmo, por ali. E já tenho suficientes “diuturnidades” para conseguir alguma estabilidade “geográfica” no espaço, ainda antes dos tempos do grande “chefe de sala” que foi o Jean-Louis. Guardo mesmo uma fotografia com ele, na sua última noite, à porta do restaurante, creio que em 2012.

Ontem, o seu excelente substituto, o simpático Christian, disse-me que, para me colocar na zona mais simpática da sala, teria de ficar numa mesa um pouco “serrée”. Na realidade, as mesas no restaurante são todas justapostas, todas “serrées”. E as conversas misturam-se quase sempre. Já por ali esqueci a comida, uma noite, com a Kate Moss ao meu lado... (Com quem não troquei uma palavra, porque não me ligou “peva”).

Ontem, de um dos lados, dois cavalheiros falavam de negócios. No fim, um deles, mais velho, entrou em pânico por ter falhado duas vezes o código do cartão. Podia ser o Alzheimer ou o Bordeaux, seguido do Calvados, que vi que tinha emborcado. Mas tudo acabou em bem.

Do outro lado, um casal um pouco mais velho que nós meteu conversa. A senhora, num determinado momento, disse-me: “Conhece, com certeza, o meu marido. É Guy Sorman”.

O marido estava ao meu lado. Olhei para ele, mas a cara não me dizia nada. O nome, sim. Mas estava a demorar algum tempo para a memória emergir. Demasiado para o meu embaraço. Não usei o truque: “O seu nome diz-me algo, mas está a escapar-me”. A frase da senhora não me tinha dado o menor espaço para tal: eu “tinha” de conhecer Guy Sorman. Como a minha origem portuguesa já estava estabelecida na conversa, ele não se fez rogado: “Estou traduzido no seu país”. Mas a minha memória continuava a “plissar”, como as embraiagens antigas.

A certa altura, o alemão da memória desistiu e, triunfante, eu disse: “Li um livro seu, em espanhol, que comprei em Buenos Aires”. A minha mulher olhou para mim com um ar de incredulidade (pergunto mesmo se de receio que eu estivesse a ousar meter uma “galga”). E acrescentei: “Não consigo precisar o título, mas creio que era sobre a Argentina. Mas posso estar enganado...”

Não estava. Acertara. A Argentina era uma paixão de Sorman. (Tínhamos acabado se saber que levara uma “abada” de 3-0 da Croácia, para gáudio da maioria dos empregados). O livro era o “Diario de un optimista” (mas eu, no momento, confesso que não me lembrei). Vim a recordar-me de ter lido também, embora sem a ter terminado, uma outra obra de Sorman, que não ppsso precisar. Mas de uma coisa tinha absoluta certeza: não gostava das suas ideias, por razões que não suscitei, claro, e que se prendem com as suas opções doutrinárias. Mas o casal até me pareceu muito simpático! E assim nos despedimos, num mar de sorrisos.

E o “sexo” que deixei no título? É simples. Quando falo da Brasserie Lipp digo sempre “a” Lipp. Um dia, um amigo que, não sendo francês, conhece Paris melhor que os “clochards”, corrigiu-me: “Deves dizer ‘o’ Lipp e não ‘a’ Lipp”. Ora essa! Porquê? “Porque esse era o nome do proprietário e passou a ser regra comum referir assim a casa”. Não aceitei a retificação e sempre feminizo a Lipp. E nunca me arrependi.

quinta-feira, junho 21, 2018

Nacionalismo saloio


Durante a ditadura, João Abel Manta foi levado a tribunal por ter feito um desenho tido como desrespeitoso para com a bandeira nacional. A palermice patrioteira morreu no ridículo da acusação. 

Agora, o surgimento da nossa bandeira com o colorido da diversidade sexual provocou um novo sobressalto conservador, em que me parece evidente um toque de inescapável homofobia.

Em ambos os casos, trata-se de passar mensagens concretas: num caso, denunciar o aproveitamento nacionalista das cantorias, noutro a necessidade do país estar aberto a aceitar a liberdade da opção sexual de cada um.

Ridicularizar a bandeira é uma coisa, não ter cerimónia com ela, sem deixar de a respeitar, é outra. Não perceber a diferença entre as duas coisas é algo que dá pena.


segunda-feira, junho 18, 2018

José Monteiro Baptista


O veludo puído do sofá em que eu estava sentado, naquela sala da Sociedade de Geografia, amorteceu há pouco o choque da minha surpresa: 84 anos! Era a idade do Zé Monteiro Baptista, que ali ia apresentar o seu livro de memórias. Olhando para ele, fora alguma nostalgia que neste fim de tarde lhe atravessava o olhar, ninguém diria.

Conheci o Zé Monteiro Baptista, há meio século, no ISCSPU. Separavam-nos quase década e meia de idade. Na política, quase tudo. À época, isso era decisivo para muita gente. Mas não para nós, que estabelecemos, desde o primeiro momento, uma bela relação de amizade, que sempre ficou muito para além desse inevitável contraste de ideias. Continuando sempre a discutir por elas, até hoje, claro.

Por um acaso, anos mais tarde, o Monteiro Baptista e eu coincidimos no concurso para a carreira diplomática. Entrámos com alguns meses de diferença e lembro-me bem dele, impaciente, a “fazer horas”, durante algumas semanas, de visita a um outro colega, o João Amador, no sala que eu e ele ocupávamos, no Gabinete Coordenador para a Cooperação, uma estrutura da então Comissão Nacional de Descolonização, onde estávamos destacados. Ele e o João, ambos já com mais de quarenta anos, com uma comum experiência no quadro administrativo de África, eram os colegas mais velhos dessa geração diplomática. Essa circunstância não deixaria de vir a ter consequências negativas nas respetivas carreiras e o Zé Monteiro Baptista fixa, neste seu livro de memórias, algumas notas de amargura sobre essas e outras questões que, para além das muitas alegrias ali também bem registadas, marcaram o seu percurso no MNE. 

Hoje, no lançamento do “Memórias d’Aqui e d’Além”, estivemos alguns dos seus colegas e companheiros de vida, testemunhas do percurso do Zé Monteiro Baptista “ao Serviço dos Portugueses”, como ele bem subtitula o seu livro. Um amigo com uma grande dignidade, com uma dedicação insuperável ao interesse público e um homem de bem que todos respeitamos. E que eu continuo a não acreditar que tem 84 anos...

Cercle Voltaire



Há cinco anos, quando regressei definitivamente a Portugal, tive com algumas pessoas a ideia de ressuscitar o desativado Cercle Voltaire, uma associação de “amigos” da língua francesa em Portugal, de que havia sido grande impulsionador o advogado António Maria Pereira, que morreu em 2009. 

Fizeram-se contactos, definiu-se mesmo um programa provisório de trabalho, mas a ideia esmoreceu, com a intensidade da vida de alguns dos promotores (incluindo eu próprio) a impor-se à boa vontade inicial.

Hoje, meia década passada, com as ruas de Lisboa a “parlar” francês pelas esquinas, com bairros comprados por habitantes do hexágono fugidos aos impostos anti-ricos do camarada Hollande, eu próprio com o Cantona a viver ali no cimo da rua, para que iria servir o Cercle Voltaire? E daí! Talvez agora para evitar que, um destes dias, não ouçamos gente pela rua a trautear o “Lisboa, não sejas francesa...”

Amanhã tenho que ir a Paris. Talvez esteja na hora de ser criado por lá o Círculo Camões, onde os lusófilos locais se pudessem reunir a celebrar “este país que tão generosamente os acolhe no seu seio”, para citar o Kotter dos “Bilhetes de Colares”. O qual, por acaso, seria ou gostaria de ter sido inglês.

domingo, junho 17, 2018

Pontualidade ou a falta dela


Almocei com ele hoje. E lembrámos a história. Que já tem muitos anos. Tinha conhecido aquela miúda através de um primo. O namoro estava nos “preliminares”. Mas prometia. Um dia, combinou ir buscá-la a casa. Chegou cedo, ela ainda não estava “produzida” para a noite. Ficou pela sala. Ela tinha várias irmãs. Uma delas surgiu por ali. Comunicativa, divertida. A conversa fez-se fácil. Por fim, lá chegou a outra. Saíram os dois. A noite foi agradável mas... não deu! Passaram alguns dias. E surgiu o contacto com a tal irmã que aparecera na sala. Saíram, namoraram, depois casaram. Tiveram filhos, hoje têm netos. Verdade seja que, entretanto, se separaram. Mas são amigos e, para sempre, ficou esta história. É no que pode dar a falta de pontualidade!

“Diplomacia económica”

A chamada “diplomacia económica” praticada por Portugal costumava assentar em três objetivos essenciais: captar investimento estrangeiro, captar turistas e promover exportações. Com maior ou menor empenhamento, o país fez isso pelo mundo durante décadas.

Fica agora a ideia que que essa vertente da nossa diplomacia acabou por ser ”demasiado” bem sucedida.

É que passamos os dias a assistir a queixas pelo facto dos estrangeiros comprarem empresas nacionais, importantes setores do parque imobiliário lisboeta ou terrenos junto ao Alqueva. Ora as regras na base das quais esses investimentos são feitos são essencialmente europeias e, tal como as nacionais, foram aprovadas por sucessivos e diferentes governos portugueses, que recordo terem sido eleitos pelas mesmas pessoas que agora protestam (não vejo os mais jovens muito queixosos).

Do mesmo modo, e a toda a hora, ouvimos lamentos pelo excesso de presença de turistas, como se pudesse haver limites à circulação de pessoas nas sociedades livre contemporâneas. Os protestos iludem o impulso dado pelo turismo às indústrias da hotelaria e da restauração, com significativa quebra das taxas de desemprego. Há impactos no sossego de alguns? É verdade, como acontece em Paris, em Roma ou em Atenas. Mas então andámos a ”vender” o nosso sol e praia, as pousadas e o turismo de habitação, o Douro e a beleza dos Açores para quê? Queremos sol na eira e chuva no nabal?

Parece que já só falta ver gente a protestar pela delapidação do património gastro-cultural que pode representar a venda ao exterior do nosso queijo da serra ou dos nossos salpicões.

1936 - O ano da morte de Ricardo Reis


Acabo de sair de um excelente espetáculo na “Barraca”. Posso dar um conselho? (E convirão que é muito raro fazê-lo.) Não percam o “1936 - O ano da morte de Ricardo Reis”.

sábado, junho 16, 2018

Arte

Dois quadros ou dois filmes ou dois livros precisam de ser comparados? Por que diabo não olhamos a fabulosa arte de Cristiano Ronaldo em si mesma, na sua genialidade, no trabalho e dedicação profissional que tem por detrás, no brio e superação constante colocado no apuramento da forma física, na beleza do pontapé de bicicleta de há semanas, na geometria quase divinal daquele livre de ontem, na serenidade segura na hora da marcação do penalti? Por que é que temos de estar sempre a compará-lo com Lionel Messi, outro artista de grande nível, cujo rendilhado de jogo dá imenso prazer observar? A arte compara-se? Para quê?

O títular

Vivia fora de Lisboa, em quinta de casa apalaçada. Andava de anel de brasão, sempre a alardear uma suposta linhagem, a importância de um título qualquer que dizia que herdara. Quando se dignava vir à capital, chegava sempre atrasado a tudo para que era convidado. 

Um dia, alguns seus conhecidos interrogaram-se sobre aquele vício de falta de educação, muito desrespeitoso para com os outros. Foi então que alguém revelou: é que ele nunca usa auto-estradas, anda sempre por vias secundárias e, por isso, gasta mais tempo. Mas porquê? Para não pagar portagens? Nada disso, explicou a pessoa. Porque, um dia, viu numa portagem ”Retire o título” e, claro, recusou!

Dia de S. Ronaldo

Ontem, vi o Portugal-Espanha em diferido. Frequentemente, opto por não assistir, em direto, a jogos de futebol que sei que me vão provocar stress. Há muito pouco tempo, fiz uma exceção a esta regra e acabei a ter de tomar um Lexotan. Cada um é como é.

Ontem, ia eu a conduzir por uma estrada na periferia de Lisboa, a caminho de um jantar, quando fui ultrapassado por um carro, buzinando furiosamente. À passagem, vi o punho erguido do condutor, numa gesticulação que li como ameaçadora. Estranhei muito: eu nada tinha feito de errado. Os meus companheiros de viagem, estrangeiros, ilibaram-me de quaisquer culpas de condução. E lá continuámos. Verifiquei mais tarde que a ultrapassagem coincidira com o primeiro golo de Portugal.

Foi um belo dia de S. Ronaldo, a quem os espanhóis teimam em chamar Cristiano.

Dito


“... e foi assim que ele conseguiu dar a mão à palmatória sem dar o braço a torcer”. E, sem dizer como, virou a esquina

sexta-feira, junho 15, 2018

“Smile me!”


Passei por lá há minutos. Foi uma residência universitária, na lisboeta rua das Praças, entre a Lapa e a Madragoa. Hoje, a olhar pelos operários no descanso, de lancheira à ilharga, na soleira da porta, o edifício deve estar prestes a ser transformado em apartamentos de luxo, com uma bela vista para o Tejo.

Nesses anos 60 do século passado, ali se recolhiam dezenas de estudantes vindos da província, cujos pais tinham posses para os manter na capital. Com maior ou menor sucesso académico, claro.

O Alexandre era um deles. Transmontano, “bon vivant” e um coração de ouro, era (e é) um amigo “de primeira”. À época, estava sempre disponível para todo o tipo de aventuras noturnas. Recordo farras homéricas no Bairro Alto, um incontável São João em Évora, jantaradas bem regadas no “Calhau”, um restaurante que existiu na esquina traseira do Politeama, no “Rancho Grande”, esse por detrás do Paladium, ou no “Café Colonial”, na Almirante Reis, onde havia um bacalhau à Braz que o Zé Cardoso Pires, numa noite da “dois” no Procópio, crismou de “imbatível em Portugal & Colónias”. Como aluno, não deixou saudades aos professores, nem marcas de grande mérito pelas pautas. Entre o 10 e o 13, oscilavam as suas classificações. Estudava o mínimo, gozava o máximo e divertia-se quanto podia. E teve sucesso na vida, diga-se.

Um dia, levou-me a uma festa da Casa de Trás-os-Montes, na Feira Popular. A certo passo, depois de muitos copos, saídos de pipos vindos do Norte, vi-o de braço dado com um senhor que à época me pareceu idoso, rotundo, em troca galhofeira de graças. Reconhecendo o seu parceiro de conversa, adverti-o, em voz baixa “Tu sabes quem é esse tipo? É o almirante Quintanilha de Mendonça Dias, ministro da Marinha!”. O Alexandre não se assustou: “Ai é? Olha que é um bom copo!”. E lá continuou na conversa animada com o marinheiro, ambos já um pouco toldados. Tinham concluído que eram conterrâneos, imaginem!

O Alexandre ficou famoso quando, um dia, foi expulso no meio de um exame. O professor era o José Maria Gaspar, à época alto dirigente do Benfica. A cadeira era “Política Social”. Discutiam-se os incentivos ao trabalho no “Ultramar”, em especial os métodos para evitar a instabilidade na fixação dos trabalhadores, que andavam de emprego em emprego, à busca das melhores condições. Na sua “sebenta”, José Maria Gaspar elencava uma dezena de medidas possíveis. Com a matéria “colada com cuspo”, como então se dizia, o Alexandre recordava-se apenas de duas ou três. O Gaspar insistia, mas da memória do Alexandre, embotada pela borga da véspera, não saía nada. Salvo, a certo ponto, esta “pérola”: “Bom, se o patrão lhes arranjar umas pretinhas para animar as noites, eles são capazes de não se irem embora!”. Recordo, visto da plateia, o momento de “suspense”, o braço estendido do Gaspar, a acompanhar o sonoro e irado “Ponha-se já lá fora, seu ignorante!”, connosco a sair da sala num roldão, atrás do Alexandre, em gargalhadas contidas até ao corredor, onde os mármores da ala nova da Junqueira fizeram ecoar em uníssono a nossa solidariedade com aquela magnífica (hoje politicamente incorreta, eu sei!) “trouvaille”.

Mas voltemos à casa da rua das Praças, por cuja porta, como disse, há pouco passei. Num desses dias da despedida da década de 60, num fim de tarde, o pessoal mais apto do lar de estudantes tinha conseguido “engatar”, na rua, um bando de inglesas que andavam de passeio por Lisboa. Escudadas umas nas outras, elas havia tido a ousadia de aceitar o convite para “visitar” o lar e “ver a vista do Tejo”, entrando naquele antro exclusivamente masculino. Eram muitas e a notícia correu célere. Foi chamado “em reforço” pessoal do Quelhas, da rua da Paz e de Alcântara, e logo montado um baile “à maneira”. As “bifas” alinhavam, de bom grado, já com uns copos à mistura. A noite prometia.

O Alexandre ferrou logo uma, uma ruiva saltitante. As coisas “foram andando” no adequado ambiente de “slows”, até que, num determinado momento de uma dança, ouviu-se-lhe, alto: “Esta gaja parece parva!”. A inglesa era simpática, muito sorridente e parecia bastante satisfeita, nos braços do Alexandre. Por isso, toda a gente estranhou o seu comentário, ele que era normalmente educado para com as damas. Mas ambos continuaram a dançar, embora o Alexandre estivesse com “cara de caso”. Minutos depois, voltou a queixar-se: “Não percebe nada, esta tipa!”.

Alguém procurou então esclarecer o mal-estar do Alexandre. E ele explicou: tinha pedido um beijo à inglesa e ela só se ria. E contava, desgostoso: “Eu digo-lhe ‘smile me’ e ela ri-se!” 

Não sei se, depois de alguém ter explicado ao Alexandre que devia ter dito “kiss me”, a tarde romântica luso-britânica se compôs. Só sei que a historieta ficou para sempre na (nossa) antologia de histórias de amigos. Como terá entretanto evoluído o Inglês do Alexandre?


(Dedico esta prosa ao meu amigo Manuel Amorim Carvalho, que conhece estes episódios melhor do que ninguém)

Liberdades



Quem quiser pode não gostar da fotografia que acabo de tirar do meu jardim. Não se livram, contudo, de que eu diga que têm mau gosto.

2500


O editor de Opinião deste jornal informou-me, na manhã de ontem, que a nova estrutura gráfica obrigava a que estas crónicas, imperativamente, não ultrapassassem os 2500 carateres (com espaços, como se diz na linguagem dos textos). Ele sabia bem por que me avisava: é que este escriba excedia regularmente esse limite teórico e avançava, à desfilada, por um número de consoantes e vogais que levavam a Gonçalo Cristóvão, ao final da tarde das quintas-feiras, a ter de lutar contra a lei física da impenetrabilidade.

Todo o cronista começa por ser leitor. E creio que todo o leitor sonha em ter à sua frente textos curtos, onde o essencial seja dito em poucas palavras. Na minha juventude, lia no “Le Monde”, numa pequena caixa na “la une” do jornal, as mini-crónicas de Robert Escarpit. Era um professor de Bordéus que conseguia, em 700 carateres, dizer o que era importante, sobre tudo e mais alguma coisa. Eu que, nessa altura, não sonhava em escrever no “Notícias” (como o JN era então conhecido no norte), fiquei sempre a sentir uma admiração profunda por quem era capaz de produzir essas crónicas sintéticas e, nem por isso, menos substantivas.

Quando vivi no Brasil, passei a ser apreciador diário dos magníficos textos curtos da sua grande imprensa. Na escola quase imbatível de um Nelson Rodrigues, escritores como Ruy Castro ou Carlos Heitor Cony enchiam-me as medidas, sem excederem as do jornal, com crónicas deliciosas, num Português “de lei”, temperado pela riqueza vocabular desses então alegres trópicos. Um dia, cruzei-me com Cony na Academia de Letras e perguntei-lhe qual era o segredo que usava para iniciar os seus textos: “‘Baixadô! Pense na frase com que pretende se despedir do leitor e logo verá que vai ter pressa em começar a escrever”. Levei a lição para casa, tento regularmente aplicá-la e quase sempre falho. A genialidade ainda não tem manual.

Aqui chegado, vejo que já tenho pouco mais de 600 carateres para usar neste texto. Equivalem a dois “tweets” e eu, embora com muito menos leitores do que Trump, tenho a pretensão de escrever para quem aprecia algo mais do que a sua incontinência teclada. Que posso dizer? Como já é tarde para falar do encontro em Singapura e, tristemente, cedo ainda para me congratular com a saída de Bruno de Carvalho do meu Sporting, fico-me por aqui, antes que o editor de Opinião do JN se veja obrigado a usar o “delete”. Terei, mesmo assim, sido longo demais? Talvez. Mas posso confessar um segredo? Não tive tempo para ser mais breve.

quinta-feira, junho 14, 2018

O gordo da turma



Hoje em dia, isso tem o nome de “bullying”. Na altura só era “chato”. Olhando para trás, podemos perceber como devia ser penoso ser-se o alvo da chacota coletiva. 

Nesses tempos antigos, o gordo da turma era quase sempre o gozado. E, sem exceção, tinha óculos. Havia quase sempre um mais velho que lhe dava regulares ”cachaços” ou empurrões ou lhe tirava a pasta ou lhe chamava ... gordo! Às vezes, havia quem o protegesse. Outras vezes, se lhe dávamos “uma mão”, com pena pelo seu isolamento, sentíamos que ele nos ficava imensamente grato. E até nos passava o “ponto”. Porque o gordo da turma, como não tinha mais nada para fazer (a não ser comer, claro!), estudava e tirava boas notas.

Sem a menor conotação ou paralelo com os acontecimentos políticos dos últimos dias (juro!), devo dizer que, quando olho para o líder norte-coreano, me vem sempre à memória o gordo da turma. Ele, o gordo de então, fosse ele quem fosse, porque houve vários ao longo dos anos, embora me não esteja a ler, que me desculpe a comparação. É que, como se dizia na minha terra, “não é por mal”...

“Deves ter uma quinta...”


Foi há pouco, no meio da Madragoa. 

O miúdo estava sentado no passeio, com uma maçã e uma faca nas mãos. A mãe, de dentro de casa, debruçada à janela, como que a posar nas fotografias que os turistas gostam de tirar à Lisboa dos bairros antigos: “Corta-me bem essa maçã! Não desperdices!”. O rapaz estaria a ser pouco cuidadoso, sem tirar fina a casca, poupando o que iria comer.

Estava eu a estranhar intimamente que ele não comesse a maçã com a casca, como eu faria na rua, na idade dele, quando, de repente, senti que a cena tinha qualquer coisa de “déjà vu”. 

Fui andado até que, como dizem os brasileiros, “caiu a ficha”. Lembrava-me. Era o meu pai, há muitos anos, que, quando me via, à sobremesa, descascar uma maçã sem cuidado, dizia sempre: “Deves ter uma quinta...”

Política da tecla


Na minha infância, em férias, ouvia dizer que uma irmã do meu pai, a tia Regina, que “tinha trabalhado na Intendência”, dactilografava de forma exímia, e havia mesmo tido direito a um prémio nacional, por rapidez de execução. Por anos, já reformada, vi-a colaborar com os irmãos nos respetivos trabalhos, usando uma máquina muito antiga e ruidosa, uma belíssima Remington, que tão bem ficava naquele escritório de Viana do Castelo. Recordo-me de tardes de “concerto” de teclado, no rés-do-chão da casa do Largo Vasco da Gama, preparando peças para o tribunal ou artigos para o “Comércio do Porto”.

O teclado da Remington, que ainda tinha sido do meu avô, o qual morrera já nos anos 20, era AZERTY, letras iniciais que contrastavam com o HCESAR da máquina que via o meu pai usar no seu escritório da Caixa Geral de Depósitos, lá por Vila Real, onde vivíamos. Já não me recordo da explicação que então me deram para a existência dessa diferença de teclados, que por muitos anos me intrigou.

Por uma qualquer razão, mas talvez por que o modelo fugia ao convencional, passei a adorar os teclados AZERTY. (Os latinos europeus usam AZERTY, os britânicos QWERTY e os alemães QWERTZ).

Contudo, a minha primeira máquina de escrever, comprada em Lisboa em 1971, numa casa de penhores da rua do Loreto, em segunda mão (“está como nova”, garantiu-me o homem do “prego”, e era verdade), foi uma Olivetti portátil, coberta a plástico azul, com teclado HCESAR. Tive-a por muitos anos e, sem exagero, escrevi com ela milhares de páginas - nas vidas académica, associativa e política, em cartas, artigos e traduções, e, em especial, nos trabalhos para a Ciesa-NCK com que ganhei bem a vida trabalhando imenso, à noite e em fins de semana, nesses anos 70, de paralelo com as minhas tarefas no MNE (era proibido, eu sei!, mas já prescreveu...). A Olivetti tinha um defeito: avariava-se-lhe muito o “i”, letra que, quando se partia, eu ia substituir a um quatro andar na Almirante Reis. Depois, um dia, em Madrid, numa montra, apaixonei-me por uma máquina elétrica e comprei-a. Era “estrangeira”, era linda, era diferente, era de teclado AZERTY... Já a mandei “às urtigas” e continuo a guardar a Olivetti com o nostálgico carinho com que me acompanhou para a Noruega e para Angola. Depois, em 1987, comecei a trabalhar com computadores e nunca mais parei. E a Olivetti lá está, jubilada, numa prateleira em Vila Real.

(Num lugar onde trabalhei, mas, como Cervantes abria o Quixote, “de cujo nome não me quero lembrar”, espalhei um dia, entre as secretárias, a “galga” de que a padroeira das dactilógrafas era Santa Tecla, nome de um monte espanhol frente a Caminha. Meses depois, ouvi a mentirola repetida e credibilizada por outra pessoa e nunca tive coragem de confessar ter sido eu o autor da patranha.)

Há pouco, ao ler as memórias de Pedro Rolo Duarte (“Não respire”, um excelente livro, infelizmente póstumo), vi a menção de que o HCESAR fora uma determinação da ditadura. Fui à procura e deixo aqui o preâmbulo do decreto do Estado Novo que decidiu essa “política da tecla”: “Não há que estranhar a intervenção do Estado nesta matéria, porque cabe na sua orientação de imprimir uma feição nacionalista a todos os ramos de actividade, disciplinando-os em benefício do país”. 

É nestes raros momentos que me sinto (apenas só um pouco, depois recomponho-me e logo melhoro) um bocadinho liberal.

terça-feira, junho 12, 2018

Singapura


O encontro entre Trump e Kim Jong Un é a propósito do desmantelamento do programa nuclear militar norte-coreano, do fim das hostilidades entre a Coreia do Norte e os EUA (convém não esquecer que, para Pyongyang, a guerra da Coreia oficialmente não terminou) e da segurança futura das duas Coreias, o que também passa pelo ”phasing out” da presença militar americana na península e pelas garantias que o Japão pretende obter nesse contexto.

Mas este encontro é muito mais do que isso. É também sobre o montante do multimilionário cheque que os norte-coreanos querem receber de Washington. Foi sempre isso que esteve em cima da mesa nas anteriores rondas de contactos, convém lembrar.

Deixo aliás uma imagem da visita apoteótica que Madeleine Albright fez a Pyongyang, em 2000, ao tempo do pai do atual presidente, de que estranhamente pouco se fala por estes dias, como se o diálogo em Singapura tivesse sido o início do degelo entre os dois países, desde a Guerra da Coreia.

segunda-feira, junho 11, 2018

Retrato de grupo com alguém sentado




A fotografia de Trump, sentado, tendo à volta os restantes líderes do G7, é magnífica, porque revela muito daquilo que foi o ambiente naquela reunião. 

Num registo diferente, lembrou-me uma cena passada na madrugada final da longa negociação do Tratado de Nice, em dezembro de 2000. 

Tinhamos passado dezenas de horas a debater os votos e os deputados europeus atribuídos a cada país. Uma discussão dura e complicada, em que António Guterres lutou até obter tudo, repito, tudo quanto considerou indispensável para a defesa dos interesses portugueses. Nem todos saíram daquela negociação tão satisfeitos como nós.

De súbito, lá para as cinco da manhã, quando tudo parecia apontar para um acordo “a quinze”, o primeiro-ministro belga, Guy Verhofstadt, pediu a palavra, para grande desespero de Jacques Chirac, que presidia à sessão, ladeado por um impassível Lionel Jospin e pelo MNE francês, Hubert Védrine, quase vencido pelo sono. O chefe do governo belga propunha que os conselhos europeus passassem a ter lugar, mais regularmente, em Bruxelas. E sugeria uma reabertura de alguns pontos, para além do ali acordado, aquilo que um ano depois viria ser a “declaração de Læken”. Chirac resistiu mas o líder belga, visivelmente pressionado pelo seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Louis Michel, pediu uma suspensão da sessão. E foi para um “confessionário” (como no “argot” multilateral se designam os encontros restritos) com Chirac, com este acompanhado pelo indispensável secretário-geral adjunto do Conselho da UE, Pierre de Boissieu, o seu braço direito nesses dias negociais.

Minutos depois, vimos Chirac, fumegando de visível raiva, atravessar a sala, seguido de Verhofstadt. Com a sessão interrompida, os primeiros-ministros e os ministros tinham-se juntado em grupos. Um desses grupos formou-se à volta da delegação belga, discutindo os termos da proposta que obrigara àquela pausa. Eu estava por ali, discreto, para tentar perceber melhor o que os belgas realmente queriam. No centro desse grupo, sentado de costas para a mesa, estava o MNE Louis Michel. 

Chirac aproximou-se então e, confesso, quando vi a sua mão agitada no ar, pensei que ia bater em Michel, o único que estava sentado. (Daí a similitude com a fotografia do G7). “C’est vous! Vous êtes le coupable!”, gritou Chirac para Michel. Este tentou levantar-se, retorquindo qualquer coisa, mas o gigante Chirac, que parecia ainda maior perante a figura espalmada na cadeira à sua frente, não lhe dava espaço para recuperar a posição vertical. E a mão do presidente francês, com um dedo acusatório espetado, vogava já a centímetros da barba de um acossado Louis Michel. Chirac, na conversa com Verhofstadt, deve ter sabido que a exigência belga de última hora, que ameaçava a preciosa unanimidade que ele laboriosamente conseguira, era culpa do ministro dos Negócios Estrangeiros. 

Já não sei como as coisas acabaram, mas Chirac lá retomou a presidência da reunião, Michel não foi esbofeteado e nós pudémos, finalmente, fechar aquela interminável negociação.

Na foto, Trump não está a ser ameaçado de levar um par de estalos. Mas, estou certo, no grupo da foto haveria quem muito gostaria de lhos dar. Um grupo em que a única pessoa comum com a reunião de Nice é o presidente da Comissão, Jean-Claude Juncker.

Descobrimentos

Anda por aí um debate sobre o nome a dar ao museu que se pretende fazer em Lisboa sobre as viagens de Quinhentos. Perante a sugestão de que se chamasse “das descobertas” ou “dos descobrimentos”, logo surgiu uma opção “de recuo”, a propor o nome de “a viagem”. Acho mal.

As viagens tituladas pela coroa portuguesa, desde o ataque a Ceuta, foram quase sempre operações de conquista (com exceção das desertas ilhas atlânticas), com toda a violência que isso à época implicava. Afonso de Albuquerque foi um guerreiro sanguinário e os outros capitães das frotas e das naus não devem ter sido muito mais meigos. Pode imaginar-se o modo como foram tratados os árabes, os negros ou os indianos e outros orientais que lhes apareceram pela frente, nessas expedições para encher alforges e porões, tendo como alibi ideológico a expansão da cruz. A captura e uso de escravos, com a desenfreada exploração laboral e sexual, fez parte integrante da empresa ultramarina e Portugal foi dos Estados europeus que prolongou essa selvática prática até mais tarde. O nosso atraso histórico é, aliás, recorrente: um século depois, quando já quase toda a Europa tinha descolonizado, por cá ainda se falava do “Ultramar” e do “Portugal do Minho a Timor”.

O Estado Novo, prosseguindo, aliás, uma velha narrativa colonialista republicana, pretendeu dar a essa aventura além-Europa uma aura de santidade civilizacional. Usou “Os Lusíadas” como bíblia apologética e capturou oportunisticamente em favor de um patriotismo de regime essa parte da nossa História, consagrando-a de forma caricatural, em textos e momentos hagiográficos, de que a Exposição do Mundo Português (que já ecoava modelos alheios) foi o mais curioso exemplo. A minha geração deve ter sido a última que foi atulhada por uma historiografia gongórica, de que muita da estatuária que por aí anda é aliás tributária.

A notável aventura marítima foi o que foi. Foi fantástica no que representou de inventividade e ousadia, marítima e não só, e o mundo credita-nos isso sem o menor problema, penso mesmo que muito menos do que deveria, à luz do esforço feito por um pequeno povo, numa ambição quase planetária. 

Acho, contudo, sem o menor sentido - e até de uma despropositada arrogância histórica por parte da geração atual, que parece achar ter o direito de poder julgar as anteriores - estar a fazer juízos de valor sobre atos cometidos à luz de conceitos e princípios que estavam muito distantes dos nossos de hoje. Uma coisa é podermos reagir com horror a crimes cometidos na idade contemporânea, quando já vigoravam padrões de valores civilizacionais muito próximos dos atuais - como os assassinatos em massa promovidos pelos nazis, ou os crimes do colonialismo mais recente, já dentro do século XX. Outra coisa é andar a escolher seletivamente episódios ou práticas de um passado distante, assumindo culpas (repito, à luz dos princípios de hoje) por atos como a inquisição, o colonialismo ou a escravatura. É que, por essa ordem de ideias, estaremos, um destes dias, a pedir contas a alguém pela brutalidade das invasões bárbaras, antes da nossa nacionalidade. E esses ciclos nunca terão fim.

Voltemos às descobertas. São descobertas ou achamento, como se debateu no Brasil? Para Portugal, entidade invasora, detentora do olhar que enformou a sua perspetiva de titular desses atos, foram descobertas, de terras e de gentes que o poder português dominou - à força, claro, porque, que eu saiba, as operações de conquista foram sempre feitas pela violência, às vezes extrema e impiedosa. E, claro, com massacres, agressões de toda a ordem, desrespeito total pelos povos encontrados, por muito que, aqui ou ali, pudesse ter havido práticas menos constrangentes. Mas reconheçamos isso, com toda a frontalidade, agora sem ter de recorrer à ganga apologética que o discurso historiográfico da ditadura nos impôs, mas igualmente sem prescindir, nem por um segundo, de relevar o caráter fantástico e pioneiro da empresa das navegações, no que ela teve de avanço para o conhecimento e abertura do mundo.

Nós somos, como povo, o somatório dos vários segmentos sucessivos da nossa História. No terreno colonial, outros a sofreram para que, deste lado, o país de então pudesse beneficiar - na exploração dos recursos económicos e humanos, com uso de escravatura e trabalho forçado, ignorando e espezinhando as identidades dos povos, com práticas racistas em que o “outro” foi, muitas vezes, apenas uma “coisa”. Nesse aspeto, podendo a colonização portuguesa ter tido alguns matizes próprios, basicamente ela seguiu um padrão muito comum aos restantes conquistadores europeus. Foi o que foi e assim deve ser estudada, entendida e exposta, com total transparência histórica. 

Dificilmente conseguiremos consensualizar uma discurso comum sobre a História. Aliás, não vejo qualquer vantagem nisso. No trabalho sério em torno do passado, importa apenas não esconder nenhum aspeto da verdade, devendo, contudo, estar sempre preparados para que essa leitura seja diferente, de acordo com as diversas perspetivas, também elas decorrentes da experiência de cada um. Divulguemos e exponhamos os factos, todos os factos.

No que toca ao museu sobre a aventura marítima e colonial portuguesa, acho, sem a menor hesitação, que deveria ser um “museu das descobertas”, da mesma maneira que devemos aceitar, com toda a naturalidade, que, do lado de quem sofreu uma invasão brutal do seu território, possa e deva ser feito um “museu da exploração colonial”. São as duas faces de uma mesma verdade. Pretender a reconciliação dos olhares, como que “hierarquizando-os”, nunca será aceite por todos, é um artificialismo que não conduzirá a nada. Em particular à tal verdade.

Feira II

Regressei ontem à Feira. O fim do dia estava pré-chuvoso, (agradavelmente) fresco, neste fim de outono que este verão nos saiu em rifa. Eu, que detesto o calor (coisa de gordos), achei que aquele era um belo tempo para fazer a pé toda a ala direita (para quem sobe o parque). E sozinho (porque visitar uma feira do livro acompanhado é quase tão mau como passear com alguém através de um museu). Quase só comprei coisas antigas, a preços magníficos, que espero poder ler, se tiver horas, pachorra e saúde. Acham caro, por três euros e meio, as cartas entre o Cerejeira e o Botas? Chegado a casa, ao abrir a porta, ouvi uma voz: compraste muitos livros? Disse que não, claro. E cheguei à sala com um saco. Mostrei as aquisições e, meia-hora depois, pé-ante-pé, abri a porta da escada e lá fiz entrar, com o mínimo de restolho, o segundo conjunto de livros. Eram só mais 14... A livralhada nunca se mede a metro, mas, entre compras de ontem e de hoje, acabo de verificar que são 88 cms de lombadas. Onde é que eu meto isto?

domingo, junho 10, 2018

A boa ação

O casal jovem estudava, com o cuidado de quem ponderava seriamente comprar, uma biografia de Karl Marx, com uma capa “warholiana”, de um autor que eu não conhecia. Estávamos na banca da Antígona, na Feira do Livro, ontem à noite. Enquanto o companheiro lia atentamente o índice, ela foi mirando a bancada. De repente, pegou no “O direito à preguiça” e disse para ele, sorrindo: “Este deve ser divertido!”. Resisti a comentar que aquele não era um livro propriamente “divertido”, mas disse: “O autor desse foi genro do biografado naquele”, apontando para o livro que ele tinha nas mãos. Ambos olharam para mim, surpreendidos. “Do Marx?”, perguntou ela. Eu confirmei e fiquei com a sensação de que os meus cabelos brancos podem ter credibilizado o comentário. Podia ter acrescentado que Paul Lafargue, o autor do interessante “O direito à preguiça”, acompanhado de Laura, filha de Marx, andou cá por Portugal uns dias, em proselitismo revolucionário, nos idos de 70 do século XIX. Mas não disse mais nada. Julgo ter ajudado a vender mais um livro da editora. Fiz a minha boa ação da noite.

Petróleo

Para melhor se entenderem algumas decisões tomadas pelo mundo. A fonte é insuspeita.