Desde que me conheço que me vejo rodeado de dicionários. O meu pai, em Vila Real, tinha dicionários de tudo e mais alguma coisa, de diversos franceses do século XIX (do Gregoire e os Vapereau ao excelente "de la Politique", de Block) aos clássicos Cândido de Figueiredo e Torrinha, passando pelos Lellos (ilustrados ou não). No meio dessa inumerável coleção, havia lá por casa dicionários espanhóis, ingleses, muitos de tradução entre línguas (algumas que nunca falei) e outros cuja utilidade prática verdadeiramente nunca descortinei.
Com toda a certeza por via dessa saudável influência, desde cedo que comecei a ter os meus próprios dicionários. Lembro-me que ganhei o meu primeiro "Porto Editora" num concurso de cruzadismo e que foi a (depois) minha mulher quem me ofereceu, há bem mais de 40 anos, um fac-simile do "Littré". Aprendi a andar com eles sempre à mão (até nos carros), espalhados por todas as mesas onde trabalhei (e continuo a fazê-lo, porque ainda não acredito nos "on-line" e, muito menos, em alguns imbecis corretores ortográficos). Tenho dicionários um pouco de tudo: de verbos, de sinónimos, etimológicos, onomásticos, de provérbios e incontáveis volumes temáticos (muitos em inglês, francês e espanhol), para além dos óbvios Larousse e Michaelis. Trouxe, do Brasil, o Aurélio (o "Aurelião"), o Houaiss e, claro, o Caldas Aulete. Também tenho as dezenas de volumes da Encyclopaedia Britanica e a Luso-Brasileira (mas não a da Verbo, com que, desde sempre, embirro), com as respetivas atualizações (até que o bom-senso e a falta de espaço me levaram a parar). E tantos, tantos outros dicionários, enciclopédias e quejandos.
Mas toda esta conversa vem a propósito do "malho". Na minha família o "malho" designa os 12 volumes do Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de António de Moraes Silva, na sua 10ª edição, que o meu pai assinara em fascículos durante mais de uma década. Desde miúdo que me habituei a consultá-lo, para ajudar o meu pai e o meu avô nos exercícios de palavras cruzadas, nas noites antigas, em que a televisão nos não monopolizava. Quando a dúvida se instalava sobre um determinado significado, o meu pai dizia, em jeito de desempate definitivo: "vamos ao malho". E eu, impante, encarregava-me com ardor dessa tarefa - de um modo que me levou mesmo a saber de cor as palavras iniciais e finais de cada um dos volumes, inscritas nas lombadas. O "malho*", na sua bela encadernação de couro com ferros dourados, continua a ser o dicionário-rei da minha casa, por mais novos dicionários de língua portuguesa que por aí apareçam - mas que eu não deixo nunca de comprar, sempre...
Mas o (agora) meu "malho" remete para uma historieta curiosa. O meu pai havia mandado encadernar os primeiros seis volumes do "malho" ao sr. Morais (homónimo do autor do dicionário), um dos escassos (mas o melhor dos) encadernadores de Vila Real. Saíu "obra asseada", porque o artesão era excelente, embora um tanto lento.
Uns anos mais tarde, acabada que foi a publicação da totalidade dos fascículos, o meu pai informou o sr. Morais de que estavam prontos para ser encadernados os restantes seis volumes. E aí surgiu uma surpresa desagradável: o homem disse que já não se dedicava a trabalhos tão elaborados, que há muito que havia deixado de utilizar os "ferros" da anterior encadernação e, pedindo embora muita desculpa, informou que não podia levar a cabo a tarefa. O meu pai ficou desolado. Que poderia fazer? A obra ficaria incompleta e não conhecia ninguém capaz de substituir o Morais. Estávamos nos anos 60 e recordo bem do desgosto com que o meu pai falava do assunto em casa.
Uns anos mais tarde, acabada que foi a publicação da totalidade dos fascículos, o meu pai informou o sr. Morais de que estavam prontos para ser encadernados os restantes seis volumes. E aí surgiu uma surpresa desagradável: o homem disse que já não se dedicava a trabalhos tão elaborados, que há muito que havia deixado de utilizar os "ferros" da anterior encadernação e, pedindo embora muita desculpa, informou que não podia levar a cabo a tarefa. O meu pai ficou desolado. Que poderia fazer? A obra ficaria incompleta e não conhecia ninguém capaz de substituir o Morais. Estávamos nos anos 60 e recordo bem do desgosto com que o meu pai falava do assunto em casa.
Na tertúlia diária da Pastelaria Gomes, curiosamente a escassos metros da (então) loja do sr. Morais, o meu pai contou um dia o seu problema a um grupo de amigos. Desse cenáculo fazia parte o comandante da PSP de Vila Real, que logo se prontificou a ajudar: "Não se preocupe. O meu amigo vem comigo ao Morais e o assunto resolve-se já". E lá partiram, o meu pai e o comandante da PSP, rumo ao encadernador.
A cena que se segue é edificante e bem reveladora dos tempos de então:
- Ó Morais, então o meu amigo não quer acabar a obra que começou?
- Sabe, senhor comandante, já me deixei desses trabalhos mais pesados. Agora estou mais nas revistas e nas encadernações simples.
- Essa agora! Ao iniciar uma obra, um profissional compromete-se a acabá-la. Isso é uma falta grave, ó Morais. Olhe que pode vir a ter problemas...
E, perante o espanto (e o deliciado constrangimento) do meu pai, e graças a este método de (pouco subliminar) convicção, o Morais lá acedeu a acabar o trabalho. Dizia-me o meu pai que ele acabou por se vingar... no preço. Mas o "malho" ficou completo.