Tirada no mês de agosto de 1966, tenho uma fotografia comigo sentado numa esplanada em Caminha, com os meus pais e uns tios. Até hoje me pergunto por que estou ali de fato e gravata (muito fininha), com ar demasiado sério (ou seria aborrecido?). O meu pai também estava de fato completo e de chapéu. Era o período das nossas férias de verão, sempre três semanas em Viana do Castelo, terra do meu pai, como acontecia todos os anos. Filho único, esse iria ser o último ano em que passaria o Verão dessa forma. No mês seguinte, iria para o Porto, para a universidade. No futuro, ganharia liberdade e os meus programas de férias passariam a ser bem diferentes.
Há anos que tenho na memória que, a certa altura, connosco na cena fotografada, se aproximou da esplanada em que estávamos um amigo caminhense da família, o senhor Valencinha (seria esse o verdadeiro nome do homem ou chamar-lhe-iam assim porque era muito pequeno?), que revelou: "Morreu há pouco o António Pedro".
A internet diz-me agora que António Pedro morreu em 17 de agosto de 1966, em Caminha, com apenas 57 anos. Até diz que era uma quarta-feira. Portanto, dá-se a coincidência de eu estar em Caminha no dia em que António Pedro ali morreu. E de até ter uma fotografia desse preciso dia. Verdade seja que a coincidência apenas a mim me interessa, modestamente reconheço.
Quem foi António Pedro? Era uma figura relevante da cultura portuguesa. Pintor e escritor, foi uma das personalidades do movimento surrealista português. Antes, tinha flirtado com a extrema-direita do nacional-sindicalismo, foi colaborador da BBC em Londres e viveu nos meios artísticos de Paris. Ao tempo da sua morte, António Pedro era uma das grande figuras do teatro português, como divulgador e encenador.
Ao contrário dos dias de hoje, o teatro, por esse tempo, entráva-nos em casa, todas as segundas-feiras, pela televisão, pela RTP, o único canal existente. António Pedro era, à época, uma das caras pública que a todos nos era comum. Com uma voz cava e uma barba imponente, projetava autoridade e conhecimento. Por essa altura, em 1966, António Pedro era a figura tutelar do Teatro Universitário do Porto, depois de um período em que tinha liderado o Teatro Experimental do Porto.
Também pelo Porto, poucos meses antes, tinha passado um extraordinário grupo teatral universitário brasileiro, que fizera uma histórica digressão pela Europa, apresentando "Morte e vida de Severina", de João Cabral de Melo Netto, que ali acompanhou a apresentação da obra, musicada por Chico Buarque, que igualmente integrava a delegação. (Melo Netto deve ter gostado da cidade: entre 1984 e 1987, regressou com cônsul-geral do Brasil).
Manuel Alberto Valente, num dos textos da sua obra "O Outro Lado dos Livros", hoje apresentada na livraria da Travessa, com casa a transbordar, fala da imagem que essa extraordinária apresentação deixou no país, e no Porto em particular. O Manuel tinha então 21 anos e viu esse espetáculo. Eu tinha 18, só cheguei ao Porto em setembro desse ano de 1966, e não vi essa peça. Mas, recordo muito bem, toda a gente falava ainda dela, com grande entusiasmo.
Terá sido por influência desse ambiente que, logo após ter chegado à universidade, decidi ingressar no Teatro Universitário do Porto, por onde passei dois anos bem agradáveis? Por aquela instituição, também recordo, vivia-se, à época, a visível orfandade da influência de António Pedro. A mesma pessoa que, mês anterior, morrera em Caminha, na tal tarde de que tenho uma fotografia. Afinal, só quase me cruzei com ele no dia da sua morte.
Saí hoje do lançamento do livro do Manuel Alberto Valente perto das oito, atravessei o Príncipe Real e fui jantar ao Snob. Ao passar junto da Travessa do Abarracamento de Peniche, mesmo ao lado, lembrei-me de que o Manuel tinha acabado de falar, minutos antes, num poeta que naquela mesma rua pusera fim à vida, em 2004. Era o Eduardo Guerra Carneiro. O Eduardo era da minha terra, de Vila Real, embora de uma geração mais velha. Poucos anos antes de ele decidir encerrar tragicamente a sua biografia, tínhamos passado, ali mesmo, no Snob, entre copos, umas boas horas à conversa, cruzando recordações comuns sobre "lá em cima", como os transmontanos, aqui por Lisboa, às vezes falam (ainda falarão?) da sua terra. Connosco na mesa estava um outro vila-realense do jornalismo lisboeta, Fernando Carneiro.
No dia 1 de janeiro de 2004, depois de um almoço de Ano Novo em Vila Real, com o meu pai, que estava já nos seus 94 anos, decidimos ir passar a tarde a Chaves. Esse era e é um percurso tradicional para os vila-realenses. Tomado um café no Aurora, indo nós pelo passeio da rua de Santo António, a descer para o Tabolado, vi o meu pai trocar abraços com um cavalheiro apenas um pouco menos idoso do que ele, que fez questão de me apresentar. Era o Dr. Mário Carneiro, que eu só conhecia de nome, figura flaviense muito prestigiada, antigo e histórico fundador e diretor das Caldas da cidade. O meu pai assinalou que um irmão do Dr. Carneiro, pessoa que já desaparecera e de quem fora amigo, tinha vivido, em tempos, em Vila Real. Eu sabia disso e referi que conhecia um filho desse senhor, o Eduardo Guerra Carneiro, sobrinho do Dr. Carneiro, que às vezes via por Lisboa. E a conversa ficou por ali. Regressámos a Vila Real, ao fim desse primeiro dia de 2004. Eduardo Guerra Carneiro suicidar-se-ia no dia seguinte.
O livro maior de Eduardo Guerra Carneiro chama-se "Isto Anda Tudo Ligado". E anda mesmo.
4 comentários:
Lembro-me bem do António Pedro a ensaiar o TUP nos fundos da então Faculdade de Letras, hoje Instituto Abel Salazar.
Por baixo junto à Cantina eram as instalações do Orfeão Universitário por onde então eu "desafinava".
Recordando uma "boutade" do Antonio Pedro. Porque é que a nossa TV é tão má? Resposta: Com tanta gente de merda...
O sr Valencinha era o nick name do comerciante de fazendas António Valença, claro por ser de baixa estatura. Tinha uma loja de panos, rendas e outras utilidades na praça da República em Viana do castelo. Fazia crítica social e política, em quadras que expunha na montra da seu estabelecimento.
Este "Valencinha" nada tem a ver com o de Viana do Castelo. Conheci bem este último. Vale a pena lembrar, a seu respeito, que, ao lado das quadras, colocava na montra coisas "do Entroncamento", produtos vegetais de formato anormal, esquisitos. Era a montra mais divertida de Viana. A casa comercial ainda existe.
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