quarta-feira, janeiro 20, 2021

Dez “tweets” para uma posse


* Acho que a única pessoa que respeitou bem o distanciamento social na posse do presidente dos EUA foi Trump.


* Este é o dia em que devemos ter um pensamento para o pessoal de limpeza que, desde a saída de Trump, operou na Casa Branca. Que desinfeção não terá havido por lá em poucas horas!


* O dia ofereceu, finalmente, algum sol em Washington. Que tempo fará na Flórida? “Who cares?”, responde-me alguém ao meu lado.


* Lá vi na posse de Biden uma figura da pequena História americana a quem só Trump faria subir na hierarquia da competência política: Dan Quayle.


* Mike Pence foi o que foi e é o que é. Mas há que reconhecer que teve alguma dignidade, e não menor jogo de cintura, na pilotagem da transição. E não deve ter sido fácil.


* Na perspetiva do “establishment” republicano dos EUA, o preenchimento dos lugares do Supremo Tribunal feito por Trump passou a constituir uma imensa ajuda para a proteção futura da sua agenda ideológica.


*Quando ouço as marchas nas cerimónias americanas, não consigo desligar-me da “Tarde Desportiva da Emissora Nacional”: “Alô Nuno! Passo às Antas!”. Mas isso sou eu que tenho tempo para ter memória!


* Raramente vi tanta incompetência na gestão do protocolo de uma cerimónia desta envergadura. As pessoas andavam perdidas, as esperas foram imensas, até o tipo que desinfetava o podium dos oradores parecia tirado de uma comédia.


* A inabilidade política de Trump ficou demonstrada no seu patético discurso de despedida. Fazê-lo de improviso foi um imenso erro histórico. Foi uma mensagem errática, com referência ridículas e a adjetivação habitual. Não conseguiu roubar minimamente o “show” a Biden.


* O discurso de Biden foi bom, mas sem nenhum rasgo. Biden não “diz” bem, nem empolga, mas transpira decência e desejo de fazer bem. E não é Trump!


Bom senso e bom gosto


A experiência demonstra que o sistema político, instituído em 1976, privilegia a reeleição do presidente em exercício. A cada inquilino que colocou em Belém, o eleitorado concedeu sempre uma década no cargo.

A eleição intercalar nem sequer obrigou nenhum incumbente a uma segunda volta. Acaba por funcionar apenas como um retrato do estado da arte no mundo político. Estando o resultado determinado, o exercício permite, contudo, testar a fidelidade dos eleitorados partidários.

Em 1981, Eanes foi quem teve a tarefa mais complexa, ao ser confrontado por um desafio conservador que, no entanto, já havia morrido, de véspera, em Camarate. Soares viria a ter pela frente, em 1991, um Basílio Horta surpreendentemente radical. Isso nem sequer se repetiria em 2001, quando Ferreira do Amaral se prestou a marcar apenas o ponto contra Sampaio. Alguma exasperação face a esta inevitabilidade da recondução automática foi notória no confronto a Cavaco por Manuel Alegre, em 2011. Mas acabou por ter o grau habitual de sucesso, isto é, nenhum. E o mesmo vai suceder no domingo.

Por que será que as coisas se passam sempre assim? Não há a quem perguntar, mas, muito provavelmente, isso deve-se ao facto do presidente que “já” está em Belém ser visto pelos eleitores como um fator de estabilidade do sistema. Mais do que isso: pela circunstância da maioria dos votantes parecer não descortinar razões para introduzir, com a afirmação de uma nova cara, uma rutura com essa normalidade instalada.

Um observador exterior será levado a questionar-se sobre se, afinal, neste meio século, o eleitorado apenas fez escolhas quando isso se tornou constitucionalmente inevitável. No fundo - e já estamos a ver o olho guloso de alguns monárquicos a reluzir - o país dá sinais de pretender preservar o máximo de estabilidade possível na chefia do Estado.

Olhadas as escolhas feitas, o eleitorado deu sempre mostras de querer ter, nessa função superior, senadores políticos.

Eanes terá sido um caso especial, porque trazia já os galões de ser um dos fundadores militares da democracia.

Marcelo Rebelo de Sousa era, de há muito, um estadista em construção e, sem que isso seja passível da menor contestação, confirmou sê-lo, nos cinco anos que agora se concluem. A preservação da estabilidade em democracia, o primado do diálogo e um forte sentido de responsabilidade de Estado foram sempre a sua imagem de marca. Por essa razão, a sua reeleição consagra-se como um ato não apenas de bom senso mas igualmente de bom gosto democráticos.

No dia em que...



 ... até a imagem histórica de Richard Nixon sai reforçada na História.

Nem gato!


Dei a minha volta noturna. Perto de casa, claro. Lisboa está com imensa humidade, mas o frio, mesmo com algum vento, faz-me sentir bem. Estar encafuado o dia inteiro, como as circunstâncias obrigam, entre zooms e telefonemas, faz com que o fresco do ar da rua, agora bem menos poluído, me revigore. Tal como nas noites anteriores, nestas peregrinações solitárias a que já me habituei, cruzo-me com muito pouca gente, mesmo muito pouca. Quase todas essas pessoas trazem cães pela trela. Ora eu nem gato tenho, mas, se tivesse, numa interpretação extensiva da lei (como parece que está na moda incívica fazer, durante a pandemia), poderia passeá-lo? Creio que não. Pensando bem, não me lembro de ter visto alguém passear um gato, alguma vez, pelas noites de Lisboa. E, no entanto, interrogo-me: os gatos não passeiam? Tenho de perguntar à minha sobrinha, que os não dispensa por companhia, mas que nunca vi andar com eles no Jardim da Parada. Com o que a gente finge que se preocupa, quando queremos “assobiar para o ar”, a afugentar as reais questões da vida em que agora andamos! Boa noite.

terça-feira, janeiro 19, 2021

“Trump ganhou!”

Quando disse a alguém que ia publicar o texto que vem a seguir, ela tentou dissuadir-me: “Não publiques! Há pessoas que podem não perceber.” Decidi correr o risco.

Na noite de 4 para 5 de novembro de 2020, quando estava a ver os resultados das eleições nos Estados Unidos, houve um momento em que me convenci de que Trump ia ser reeleito.

Para encher o tempo, entre a irritação e alguns nervos, coloquei rapidamente no papel (falso, no iPad) um texto de comentário à “vitória” de Trump. Não o publiquei, por prudência. E fui-me deitar. Acordei, surpreendido, umas horas depois, com a possibilidade de uma vitória de Joe Biden. Mal eu sabia a “novela” que essa eleição ainda iria ser.

Trump perdeu, Biden ganhou. Há dias, ao fazer uma limpeza dos rascunhos que tinha “em caixa”, dei com isto. Achei que era curioso publicar este texto contrafactual, precisamente na véspera da posse de Joe Biden. É que é tão raro ficarmos felizes por nos termos enganado. 

Trump, again!

Contra o mundo, contra a pandemia, uma vez mais contra as sondagens, Trump renova o seu mandato. É obra!

Biden, mesmo com a novidade de ter Kamala Harris a seu lado, revelou-se um candidato pouco mobilizador. E vai desaparecer rapidamente, na reciclagem da História.

É a vida!, como costumava dizer um cidadão português, hoje em Manhattan, que tem razões para ver a vida da organização que dirige a andar para trás.

Com esta nova vitória de Trump, com grande probabilidade, vamos ver ruir, com fragor, um sistema multilateral no qual grande parte do mundo colocou, por décadas, as suas esperanças de paz e de progresso. Dossiês vitais para a sustentabilidade global, como o das alterações climáticas, vão ter um destino previsivelmente adverso e trágico para toda a humanidade.

Mas o que tem de ser tem muita força, e o mundo tem de se adaptar à realidade de ter de viver com Trump por mais quatro anos: com a sua megalomania, com as suas mentiras, com o seu autoritarismo, com as suas bizarras opções políticas. O anti-americanismo, que por cá tem raízes profundas, que partiram do salazarismo bafiento para chegarem ao esquerdismo auto-iluminado, vai encontrar novas razões para prosperar. 

A América pode vir a ter ainda um outro desafio: a reconstrução de uma alternativa, no período pós-Trump. É que o Partido Democrático, que tinha encontrado em Biden, conjunturalmente, um denominador comum centrista, de natureza tática, pode vir a ser tentado a uma deriva radical, o que reduzirá ainda mais as suas hipóteses de um regresso futuro ao poder.

Para o que mais diretamente nos importa, a Europa terá de fazer pela vida e aprender a conviver com a continuação de um aliado hostil na Casa Branca. Restará saber se o laço transatlântico conseguirá resistir a mais estes anos de Trump. Imagino mesmo os sorrisos no Kremlin, esta madrugada. E algo me faz pensar que os chineses preferem Trump a uma alternativa democrática, que teria uma muito maior capacidade para gizar uma frente de democracias contra os interesses da China.

Finalmente, sejamos justos: há que dar os parabéns aos populistas, aos demagogos, aos Bolsonaros e toda a casta de autoritários que, neste dia, saem reforçados nas suas agendas.

Valha-nos, porém, uma certeza: com ou sem Trump, a vida continua! Não vai ser fácil, mas na História não há becos: há sempre saídas! Pode é ser mais difícil e demorar mais tempo a encontrá-las.”

Uma pátria de sábios

O tanto que por aqui se aprende sobre o que “se deve fazer” para combater a pandemia! Terá havido cursos, nestes meses, para toda esta gente?

A minha dúvida é já a minha pena: quando a pandemia acabar, o que irão fazer estes grandes especialistas? Incêndios? Novo aeroporto? TGV?

Mesas perdidas




Foi no início deste século. Tinha tido o cuidado de telefonar para aquele restaurante, nas cercanias de Vila Real, por terras por onde Camilo tinha andado, pedindo para terem preparado um determinado prato, para ser servido logo que chegássemos.

A pressa era justificada pelo facto do levarmos connosco uma pessoa muito idosa, cujo tempo de permanência à mesa queríamos encurtar, por razões de saúde. Explicámos isso mesmo. Foi-nos prometido que tudo seria feito como desejávamos.

Chegámos, naturalmente, à hora acordada. Era um domingo soalheiro, com uma luminosidade que entrava pelo envidraçado da sala, já com alguns clientes. A nossa mesa lá estava, indicada pelo empregado que nos recebia, que constatei ser a pessoa com quem eu havia combinado as coisas. Era, aliás, o único empregado visível no restaurante.

Notei-o, desde o início, um tanto tenso. O tempo foi passando e começámos a perceber que o pedido que eu tivera o cuidado antecipado de fazer afinal não estava pronto. Chamei o empregado e fiz notar o meu desagrado. Já não sei como, percebi que comungava do meu mal-estar, com uma atitude que revelava a sua impotência.

Não tinha passado um minuto quando, entre a sala e a cozinha, entre o empregado e um cavalheiro de dava ares de dono, se criou uma altercação ruidosa. Os nossos pedidos estariam, ao que parece, no centro da polémica: o empregado havia-os transmitido, a tempo e horas, mas não fora dada sequência útil à sua indicação. Agora, era a sua cara, perante o cliente, que estava em causa. Daí a indignação, pelo descaso que afetava a imagem profissional do seu serviço.

Os olhares das mesas convergiam para a troca de argumentos, a qual, na lógica habitual destas coisas, sabíamos que acabaria por ser resolvida a favor do patrão.

Naquele dia, porém, as coisas passaram-se de forma diferente. O incidente com o nosso pedido fora, aparentemente, a gota de água que faz transbordar o copo. Mas, com toda a certeza, haveria por ali muitas coisas acumuladas do passado. A voz do empregado foi subindo de tom, sem que o que dizia o seu interlocutor acabasse por prevalecer: “Sabe que mais? O senhor não sabe dirigir um restaurante! Estou farto! Vou-me embora!” - e a sala, incrédula, viu aquele que era o único empregado atirar o avental para um balcão e sair porta fora.

O patrão, desautorizado, de cara fechada, teve de tomar conta das mesas, Da cozinha, em emergência, avançou, para o ajudar, uma figura feminina, como último recurso. Já nem recordo como se comeu, embora tenha, na memória acumulada de todas as vezes em que por ali passei, a ideia de um declínio inexorável da oferta. Há restaurantes que passam, perdidos no tempo.

Devo ser um recordista mundial de cenas similares. Por duas vezes, ambas nos anos 70, assisti a episódios com idênticos contornos, uma vez num restaurante de Loures, outra, não muito longe, na Flamenga, junto a Santo António dos Cavaleiros, onde então vivia. Da segunda vez, houve mesmo pugilato à mistura, somando uma coreografia de espetáculo à refeição. Sem preço acrescido, diga-se.

Passaram alguns anos. Estava num grande jantar de aniversário, na sala do único hotel de Vila Real. Já tínhamos ouvido o Abreu ao piano e a refeição corria normalmente. A certo passo, o empregado que me servia perguntou-me, em tom baixo, com um sorriso: “Já não se lembra de mim, pois não?”. Olhei para ele e, de facto, a cara nada me dizia. Ele adiantou: “Não está recordado de uma cena num restaurante, aqui perto da cidade, com o empregado a ir-se embora a meio de uma refeição?” Fez-se-me luz! Era ele! Ali estava, felizmente com emprego! Fiquei com uma grande simpatia por aquele homem. Afinal, eu estivera na origem imediata de um capítulo marcante da sua vida.

segunda-feira, janeiro 18, 2021

Pandemia

Gostei bastante da prestação de hoje de António Costa. Quase tanto quanto me tinha desagradado o modo de apresentação demasiado improvisado na passada quinta-feira.

Sei que isto vai irritar muita gente, mas, numa crise desta gravidade, sinto grande segurança em tê-lo como primeiro-ministro.

Hipocrisia

Não é popular dizer isto, mas exonerar os cidadãos das suas responsabilidades cívicas, pelo seu comportamento na pandemia, fazendo do governo o bode expiatório de todas as culpas - por não forçar os portugueses a fazer aquilo que eles não querem fazer - é uma imensa hipocrisia.

Voto eletrónico

Num mundo em que a necessidade da deslocação física tenderá a ser progressivamente atenuada pelo recurso aos meios digitais, não seria sensato começar a discutir - com serenidade, sem preconceitos e sem teorias conspiratórias à mistura - a questão do voto eletrónico?

domingo, janeiro 17, 2021

Então e a reflexão?


Há anos que ando a dizer que o “dia de reflexão”, as 24 horas sem campanha antes do dia do voto, é uma coisa ridícula, um atestado de menorização da capacidade dos eleitores decidirem por si próprios.

A possibilidade do voto antecipado revela ainda melhor o contrasenso da medida.

sábado, janeiro 16, 2021

“Observare”


Nesta altura em que passam 30 anos desde a primeira Guerra do Golfo, na qual uma coligação de 35 países, liderada pelos Estados Unidos, munida de um mandato do Conselho de Segurança da ONU, reagiu militarmente à invasão do Kuwait pelo Iraque, o “Observare” convidou a professora Patrícia Galvão Teles para connosco analisar o estado do multilateralismo. E também abordaremos a diplomacia das vacinas. Por ali falarei também da tomada de posição coletiva dos chefes militares americanos e da recandidatura de António Guterres a secretário-geral da ONU.

Pode ver este programa na TVI 24, de sábado para domingo, depois do noticiário da meia-noite.

Confinamento ?

Ontem, o anunciado confinamento claramente falhou.

Hoje, ao que consta, há imensa gente por aí a gozar o sol, “nas tintas” para a lei de exceção.

Quando um governo dramatiza uma situação - e bem, em função de uma tragédia coletiva cada vez mais evidente - e aquilo que esse governo determina não é cumprido, ao que parece por uma utilização abusiva das exceções que se pensava irem ser utilizadas com honestidade e bom senso, somos obrigados a concluir que estamos perante uma diluição perigosa da autoridade do Estado. 

Ao contrário do que se possa pensar, a democracia não concede aos cidadãos o direito individual de decidir sobre aquilo que devem cumprir, dentro daquilo que lhe é indicado como devendo ser cumprido. A lei não é “facultativa”.

Como cidadão, tenho o direito de ver respeitado pelos outros aquilo que a autoridade democrática - isto é, o poder legítimo, que o nosso voto coletivo escolheu - determinou que deva ser feito.

Ao contrário do que uma leitura primária - mas também saloia e egoísta - pode concluir, cada um poder fazer “o que lhe der na real gana” não significa liberdade, representa apenas o primado de um arbítrio que acaba por limitar os nossos direitos cívicos.

sexta-feira, janeiro 15, 2021

A Europa e o unanimismo


Deve uma Presidência portuguesa da União Europeia obrigar todas as forças políticas a um compromisso de lealdade, ocultando divergências, para não pôr em causa a imagem externa do país, no semestre de exercício?

Sendo desejável que todos possam remar para o mesmo lado, creio que, nos dias de hoje, num ambiente político tão tenso como o que se vive, será pedir demais que essa tendencial regra possa ser aceite como incontroversa.

Daí que não tenha ficado surpreendido ao ver a denúncia política, feita lá fora pela oposição interna, a propósito do nome de um magistrado indicado pelo governo para um cargo europeu.

Embora num registo bem diferente, decidi lembrar hoje um episódio antigo.

Há mais de duas décadas, quando, no governo, me coube coordenar a fixação do programa da Presidência europeia que iria ser exercida por Portugal, fui a Estrasburgo, para reuniões preparatórias no Parlamento Europeu.

Para além do “caminho das pedras” dos diversos órgãos da instituição, pedi para ver, em privado, os líderes parlamentares dos deputados portugueses.

Expliquei a cada um, com pormenor, a racionalidade das escolhas que o governo tinha feito, na elaboração da agenda para o semestre. (Escusado será dizer que a nossa margem de manobra era então muito maior, encontrando-se hoje as presidências mais limitadas na sua liberdade de ação).

Nas conversas, revelei que não tínhamos colocado no texto do nosso programa a realização de uma Cimeira UE-África, que era nossa intenção organizar e que, aliás, acabaria por vir a constituir um grande sucesso da nossa Presidência.

Porquê essa omissão? Porque, naquele momento, não tínhamos ainda a certeza de poder organizar esse evento. A então Organização da Unidade Africana (OUA) , interlocutor africano da UE, não admitia que Marrocos - país que estava fora da organização - estivesse presente na reunião. Para Portugal, por razões óbvias, era impensável organizá-lo sem um parceiro como Marrocos. Em confidência, dei então a conhecer as diligências que estávamos a empreender, mas não me comprometi com um eventual sucesso dessa nossa atividade.

Tinha seguido esse procedimento - uma partilha no pressuposto do sentido de Estado dos meus interlocutores, que julguei unidos pelo desejo de ajudarem ao sucesso da Presidência do seu país - porque me pareceu ser, da minha parte, a assunção de um mínimo de lealdade: os deputados ficariam surpreendidos se um dia tal cimeira viesse a surgir e eu os não tivesse alertado para tal, naquela conversa.

Fui ingénuo. No dia seguinte, um dos responsáveis políticos da oposição em Estrasburgo não resistiu e comentou com os correspondentes da nossa imprensa que sabia que o governo português estava a ter dificuldades em organizar uma cimeira euro-africana.

Os jornalistas, claro, caíram logo sobre mim, inquirindo sobre esse ponto, do qual, na conversa que com eles tivera, eu lhes não havia falado. Felizmente que foi possível concretizar a reunião, caso contrário a grande notícia iria ser esse “falhanço” da nossa Presidência...

quarta-feira, janeiro 13, 2021

Pandemia (3)

No dia em que, em Portugal, morre uma pessoa a cada 10 minutos, vou deixar algumas frases que ouvi no último mês:

- “Mas que importância pode ter mais uma ou duas pessoas à mesa?”.

- “Então eu ia lá ter uma ceia de Natal sem os meus netos!

- “São nossos amigos, caramba! Gente que sabemos que se protege! Claro que podemos ir ao restaurante os quatro”.

- “Há limites para tudo! Alguns riscos temos de correr, senão damos em doidos!”.

- “É pá! Desculpa lá, mas é um exagero estarmos aqui na sala com máscara!

- “Não queres ir no carro connosco? Nem com máscara? Estás paranóico!

Pandemia (2)

É muito curioso que se diga que o governo errou ao tornar mais flexível o regime de deslocações e reuniões no período de Natal e, ao mesmo tempo, as autoridades sejam acusadas de não permitirem comportamentos com implicações positivas no funcionamento da economia. Em que ficamos? Confia-se ou não na auto-regulação?

Pandemia

Sente-se alguma desorientação oficial na questão da pandemia, aliás um pouco como acontece por todo o mundo. Para o comum dos cidadãos, resulta uma imagem de hesitação, que não favorece a aceitação das medidas. E o governo é "preso por ter cão, preso por não ter".

Militares americanos


Ver os comandos militares americanos a afirmarem o que afirmam neste comunicado é uma óbvia garantia para a democracia americana.

Porém, o facto de assumirem uma posição coletiva precisamente neste momento, quando a posse já não parecia oferecer quaisquer dúvidas, dada a consonância de todas as instituições, pode parecer desajustado a um corpo que está sujeito à tutela civil - e não o contrário.

O debate que faltou


Não foi uma surpresa constatar que a política externa está quase ausente do debate eleitoral. E não se diga que o papel do Presidente da República, no modelo constitucional semi-presidencialista que temos, não comporta uma dimensão externa importante, quer na área dos Negócios Estrangeiros, quer como comandante supremo das Forças Armadas.

Penso que é interessante poder garantir um largo consenso em torno das questões que se prendem com a dimensão internacional do país, retirando-as do terreno da polémica fácil. Nelas incluo a temática europeia, mas, igualmente, o papel das Forças Armadas e a nossa política de alianças.

Devo, contudo, dizer que acho bastante empobrecedor para o nosso debate político que as grandes questões que envolvem o lugar de Portugal no mundo, e as políticas públicas que lhe servem de suporte, escapem, por sistema, a uma análise substantiva de fundo. Porque isso só facilita que, por falta de uma consciencialização amadurecida sobre essas opções, esses temas sejam regularmente capturados por discursos marcados por uma ligeireza demagógica.

Os consensos, por muito desejáveis que sejam, não devem ser formados em torno de silêncios, mas devem surgir como a decantação de um debate plural, sobre se se deve seguir um caminho e não outro.

Nestas eleições presidenciais há um recandidato com larga experiência das questões externas, que maneja com grande facilidade. Há uma diplomata com uma vasta prática profissional e política. Estão igualmente presentes dois candidatos com assento no Parlamento Europeu.

Teria assim sido muito interessante ouvi-los discutir, desde logo, sobre se o modo como tem vindo a ser exercido, pelos sucessivos chefes do Estado, a competência de que dispõem na ordem externa é o correto ou se, afinal, essa intervenção deveria assumir outro formato.

Teríamos ganhado bastante se tivéssemos ouvido os candidatos falar do modo como Portugal deve atuar na Europa, do modelo institucional desta, da forma como olham a compatibilidade das soberanias nacionais com o projeto europeu, ligando isto às questões da livre circulação, à atitude perante os refugiados e os migrantes económicos.

E, como já se percebeu, não é indiferente quem esteja em Belém quando se trata de pensar nas nossas alianças preferenciais, num tempo de Brexit, nas prioridades a dar ao laço transatlântico, no maior ou menor empenhamento no espaço lusófono, mas também nesse eterno tema polémico que é o modo de enquadrar institucionalmente a vontade política da nossa diáspora.

terça-feira, janeiro 12, 2021

O Porto, claro!


Por razões lúdicas e profissionais, sou, de há muito, um utente da hospedagem portuense.

Às vezes, já tenho perguntado a mim mesmo onde é que, por lá (por aqui, porque estou hoje no Porto), já dormi. Hoje, decidi responder.

É claro que, noutros tempos, havia a casa do tio Óscar e da tia Maria, na Ramada Alta, quando vínhamos “aos especialistas” ao Porto.

Noutras vezes, houve a moradia do Eduardo Sá Carneiro, na Antunes Guimarães, com coleções do Tintin pelas estantes, que me faziam adormecer ao acordar do dia.

E também a casa do sogro dele, o professor Pedro Carvalho, e a dona Guiomar, em Oliveira Monteiro, com pequenos almoços cerimoniosos.

Desconto, naturalmente, o meu lar universitário por um ano na rua da Torrinha, umas noites avulsas, e convulsas, no lar Gomes Teixeira, na rua do Rosário, ou o ano passado na “casa da velha”, na Miguel Bombarda, no quarto alugado a meias com o Albano Tamegão.

E já nem conto, claro, a casa da Mariita e do Manel, na Senhora da Hora, de que cheguei a ter chave!

Ou a do meu primo Rui, na Foz, quando nos apetece, porque a família é “estar em casa”.

Apenas aqui quero falar das casas “tarifadas”, com contas redondas ao fim-da-manhã, sem afetividades nem confianças. Coisas de papel passado, com NIF e tudo!

A primeira casa desse género, de que me lembro, terá sido, porventura o “Solar da Conga”, no Bonjardim, uma sugestão (sinistra, diga-se) do Eurico Gama.

Tenho também uma leve memória de uma pensão nos Aliados, à direita de quem sobe, mas pode ter sido apenas um pesadelo.

Houve também, ao que vagamente recordo, uma albergaria (lembram-se do tempo das “albergarias”?), numa rua aos Poveiros, perto daquele estacionamento feiíssimo que por ali há.

Passados muitos anos, nos idos de 80, regressado de Angola, lembro-me de me ter alojado no “Méridien” (em que os portuenses teimam em acentuar a segunda sílaba), agora crismado de “”Crown Plaza”. Foi, ao que julgo, o primeiro sítio “sério” onde me alojei, pagando, no Porto.

Depois, a partir daí, foi uma imensidão!

Estive algumas vezes no “Hotel da Boavista”, tendo alternado entre uma ala antiga (“délabrée”) e uma ala nova (sem a menor graça).

A sorte levou-me depois, em diversas ocasiões, ao “Sheraton”, quer na sua encarnação na avenida da Boavista (hoje “Porto Palácio”), quer à sua (excelente) forma atual, ali ao pé, com o envidraçado algo erótico das casas de banho sobre o quarto.

Ainda na zona da Boavista, descontando o simpático mas incaraterístico “Bessa Hotel” e um (então abaixo do razoável, só com a vantagem de ter uma loja de chocolates Arcádia no rés-do-chão) “Portus Cale Boavista”, preferi várias vezes o quase vizinho “Hotel da Música”, integrado no mercado do Bom Sucesso, francamente bem melhor do que o “Hotel Tuela”, um clássico (muito triste, convenhamos) espaço ali “à beira”.

Não muito longe, no Campo Alegre, fiz os dois Ipanemas: o “Park”, uma das minhas hospedarias costumeiras (ainda na passada semana lá dormi), e o Ipanema Campo Alegre, simpático “ma non troppo”, apenas com a vantagem de ter o “Capa Negra” à mão de semear.

Mais junto ao Douro, o “Pestana”, frente ao cubo, já foi, durante anos, o “meu” hotel na cidade, não obstante o estacionamento quase impossível. Até lá tive um quarto preferido! Depois, o hotel “endoidou” nos preços e eu disse-lhe adeus.

A esse nível de dispêndio, passou a valer a pena o clássico “Infante de Sagres”, a que não voltei desde que foi remodelado, com medo de que mantenham o bar tão mal-tratado como da última vez em que por lá dormi: um susto!

Se quiserem uma experiência diferente (e mais não digo!), ali pela Restauração, quem desce do Hospital de Santo António para o Rio, experimentem a diversidade do “Torel”! Um chá na sala envidraçada, ao fim da tarde, pode ser um belo momento.

Outras experiências? O “Dom Henrique”, junto ao Silo Auto, sem o menor interesse, para além da vista magnífica do bar.

Cómodo, mas sem qualquer graça, é o “Vila Galé” da Fernão de Magalhães. Várias vezes lá fiquei, numa delas no andar de topo, com uma vista soberba sobre a cidade. Mas foi tudo o que dali me ficou.

Numa das ocasiões em que dormi no “Intercontinental”, no passeio das Cardosas, no fundo da Praça Dom Pedro IV, no fundo dos Aliados, recordo que me saiu em rifa um quarto de esquina (sobre a estação de São Bento, a 31 de janeiro/Santo António e a praça), com uma vista deslumbrante. Mas aqueles corredores sem gente lembravam-me, sinistramente, o “Shinning”!

E mais? Dormi também num “Porto Trindade”, bem simples, numa noite em que cheguei inopinadamente de Paris.

Também pernoitei num “Vila Galé Ribeira”, de que me não queixo, entre a Alfândega e Massarelos.

E de duas noites no Eurostars Centro, junto à Brasileira (avisaram, mas eu não acreditei, que, a partir das oito horas, a classe operária entrava em ação numa obra vizinha!).

Mais recentemente, tive uma experiência, bastante agradável, no renovado Grande Hotel do Porto, em Santa Catarina.

Mas é isso “apenas” que conheces do Porto, estarão a perguntar-se os meus amigos, alguns “da onça”? 

Mas há coisas que ainda não conheço, desculpem lá! Confesso que ainda não dormi no luxuosíssimo Monumental dos Aliados, no Pestana da Brasileira, no Porto Bay das Flores (nem no Porto Bay Teatro, não obstante o clamor do meu amigo e proprietário Bernardo Trindade), nem no Vila Foz, na Foz, de que muito me falam agora.

Imperdoável, já sei!, é não ter nunca ficado do Yeatman, em Gaia, onde já refeiçoei algumas vezes, mas que acho muito caro.

Mas, já que falamos em “arredores”, anoto que pernoitei várias vezes no “Palácio do Freixo”, no dito Freixo, e, para nunca mais, no “Sea Porto”, em Matosinhos, um falso “quatro estrelas”.

Mas o que é que estás a fazer agora no Porto?, perguntava-me um amigo curioso, há pouco. Onde estás a dormir?

Muito simplesmente, no “Eurostars Heroísmo”, na rua com o mesmo nome, naquele que é o meu pouso preferido no Porto, sem arrebiques nem pretensões, um quatro estrelas que, de há muito, considero a melhor relação qualidade-preço da cidade e arredores. E não me fazem o menor desconto por estar aqui a fazer publicidade deles! A sério!

O “Eurostars Heroísmo” (na imagem) tem uma garagem soberba, fica bem perto da da estação ferroviária de Campanhã e a dez metros (juro!) de um dos melhores lugares para se comer no Porto - a “Cozinha do Manel”, do meu amigo José António. O hotel fica também a cinco minutos de carro do meu local de trabalho no Porto.

E, se quiserem, há outras opções restaurativas por ali, como a “Casa Nanda”, na rua da Alegria. E ainda sobram saudades da “Casa Aleixo”, no fundo da rua.

Se acaso ainda não estiverem satisfeitos, peçam-me mais: poderei dar ainda alguma dicas mais sobre onde dormir bem no Porto! Conheço “mal” esta bela cidade, como repararam, mas farei um esforço!

segunda-feira, janeiro 11, 2021

François Mitterrand


François Mitterrand morreu há 25 anos, depois de 14 anos consecutivos como presidente da França. Homem da IV República, onde teve cargos de governo, foi um dos mais ferozes opositores de De Gaulle, a quem forçou a uma segunda volta numas eleições presidenciais.

Desprezava a V República, mas esta assentou como uma luva ao seu estilo “royaliste”. Manipulador, sedutor, excelente escritor, cínico, culto, inteligente e matreiro, entre tantas outras muitas qualidades e grandes defeitos, veria o termo do seu tempo político marcado por acusações de ligação premiada ao colaboracionismo, ele que, paradoxalmente, também tinha “medalhas” de resistente, bem como pela revelação da existência de uma filha tardia, fora do casamento, o que acabou por humanizá-lo.

Há dias, pela Amazon, encomendei um livro sobre Mitterrand, editado em 1988, que ainda não conhecia. Não me canso de ler sobre ele e sobre o tempo que protagonizou. Visitei a terra onde foi eterno presidente da Câmara e estive no seu túmulo, mas, estranhamente, estou muito longe de ser um admirador fascinado dessa que foi uma das figuras mais complexas da vida política francesa.

Um dia, na única viagem que fiz com o casal Mário Soares, durante cerca de uma semana, em finais de 1995, com Mitterrand fora do Eliseu e já muito doente, o seu nome veio à conversa. Mário Soares, que o tinha como amigo, disse dele coisas muito simpáticas, contando algumas histórias, que infelizmente esqueci. Notei então a cara fechada de Maria Barroso. Claramente, não comungava a leitura que o marido fazia da personalidade de Mitterrand.

Passaram uns anos, oito ou nove. Uma noite, em Viena, tive Maria Barroso a jantar, em minha casa. Entre vários assuntos, falou-se de Mitterrand. Constatei, de novo, que a sua atitude não era muito positiva sobre a personagem. No final da refeição, puxou-me à parte e, com a firmeza de quem tinha ideias muito próprias e não gostava de deixar dúvidas sobre elas, disse-me o que pensava sobre François Mitterrand. Só posso dizer que não coincidia com a perspetiva do seu marido. E explicou-me porquê. Mas isso não vem aqui para o caso.

A terminar, deixo uma frase de Mitterrand, uma curiosa leitura do “mosaico” francês, num improviso de 1987, onde “nós” também estamos: “Nous sommes français, nos ancêtres les gaulois, un peu romains, un peu germains, un peu juifs, un peu italiens, un petit peu espagnols, de plus en plus portugais, peut-être, qui sait, polonais, et je me demande si déjà nous ne sommes pas un peu arabes."

domingo, janeiro 10, 2021

Bom senso?

Parece que faz parte do discurso político afirmar que se “confia” no bom-senso dos portugueses, para gerirem, com a necessária prudência, o seu comportamento social neste tempo de pandemia.

É uma perfeita hipocrisia estar a dizer isto! Todos sabemos que isto é falso!

No que me toca, e pelo que tenho visto por aí, não tenho a mais pequena confiança no bom-senso ou na prudência dos portugueses. Mais: os números mostram-me que tenho todas as razões para não confiar. E quem me está a ler sabe que isso é assim.

Mas todos já percebemos que não há coragem, por parte do poder político - do presidente ao governo e aos partidos - para dizer, alto e bom som, esta simples verdade: há imensos cidadãos portugueses que são uns completos irresponsáveis, que, por egoísmo ou inconsciência, adotam comportamentos que põem em risco a sua saúde e a dos outros, assim contribuindo para a crescente pressão sobre os serviços públicos de saúde, atrasando a recuperação da normalidadade da vida social e económica do país.

“Observare”


Quem se interessar pode ver aqui a edição desta semana do programa de relações internacionais “Observare”.

Em menos de 40 minutos, analisamos a situação nos Estados Unidos e o acordo entre a União Europeia e a China. Em termos mais breves, falamos de outros seis temas de relevância internacional e até deixamos uma sugestão de um filme.

Quem quiser contactar-nos, com críticas, ideias ou até elogios, esteja à vontade para o fazer para observare@tvi.pt

O avental do “Petróleo”


Não recordo onde é que o José Guilherme Stichini Vilela, “ministro-conselheiro” na embaixada em Luanda, terá desencantado a figura do “Petróleo”. A verdade é que foi ele o cozinheiro que passou a trabalhar no apartamento que, a partir de 1982, o Zé Guilherme ocupou na avenida 4 de fevereiro, em frente à baía de Luanda. O Zé Guilherme, um querido amigo, já se foi há alguns anos.

O “Petróleo”, nome cuja origem também desconheço, era um homem sempre sorridente, o que não era de estranhar: o Zé Guilherme pagava-lhe muito bem, acima da “tabela”, oferecia-lhe imensas coisas e, por isso, ele andava imensamente contente. Falava muito mal português. Como alguns dos nossos jogadores de futebol, identificava-se na terceira pessoa: “O ‘Petróleo’ foi ontem ao mercado...” Ensinado pelo Zé Guilherme, o “Petróleo” fez-se, com o tempo, um excelente cozinheiro.

Uma noite, o Zé Guilherme organizou, na sua sala com varanda sobre a avenida, um largo jantar para alguns dos muitos amigos que tinha em Luanda. Para além dos “habitués” da embaixada, com o embaixador Pinto da França à cabeça, dessa vez era gente um pouco mais velha do que o habitual, com alguma cerimónia, casais da antiga sociedade portuguesa que permanecia nessa Luanda recém-independente - Pedro da Cunha, Chico Neto, etc. E, claro, o Fernando Valpaços, a Lacas, a Ana Poppe, com certeza também o Vasco Correia Mendes.

O “Petróleo” servia pela sala, envergando nessa noite um belo avental, com o clássico moto “Kiss the cook” (beije o cozinheiro), então muito em voga nos países anglo-saxónicos, uma oferta que o Zé Guilherme tinha recebido conjuntamente com uma assinatura anual da “Time”.

Não sei em que ponto do jantar é que começaram os sorrisos. À passagem do “Petróleo” entre as mesas e os sofás, notaram-se, a certa altura, alguns sussurros. De início era murmúrios, com risadas, ao ouvido dos vizinhos. Partiu de uma das mesas, depois a onda sorridente espalhou-se pela sala, acelerando a cada passagem do empregado. Algumas das senhoras presentes, da Lilita à Sofia ou à Maria do Céu, notavam os rumores, mas, aparentemente, não entendiam o que se passava. Outros, os alertados, optavam por nada lhes dizer. A certa altura, avisado por alguém, o Zé Guilherme zarpou para a cozinha, na peugada do “Petróleo”. E lá resolveu o “assunto”!

Mas, afinal, o que é que se tinha passado? Nada de mais, na minha opinião! Um dos convidados, de que a História não acolheu o nome, numa sortida à cozinha, terá convencido o bom do “Petróleo” a deixar fazer, no seu avental, uma pequena e rápida operação, com um daqueles sprays brancos para tirar nódoas, promovendo uma ligeiríssima alteração na segunda letra “o” da palavra “cook”, transformando-a num “c”. Apenas isso!

Não me consta que, nessa noite, se tenha descoberto quem foi o autor da marosca. A mim, o “Petróleo” tinha-me prometido não revelar o nome do “artista”...

sábado, janeiro 09, 2021

Graça


Há dias em que podemos achar alguma graça aos “fachos”.

Saudades de Trump


Vou ter saudades do Trump: teve o considerável mérito de me pôr de acordo, nos últimos quatro anos, com gente de quem discordo em praticamente tudo o resto.

“Observare”


Com o confinamento, não há desculpas para não verem, na TVI 24, deste sábado para domingo, como habitualmente depois do noticiário da meia-noite, a edição desta semana do “Observare”, programa de análise das questões internacionais. Lá estarei, com Carlos Gaspar e Luis Tomé, sob a moderação de Filipe Caetano.

Como é evidente, começaremos pela situação americana, mas daremos igualmente destaque ao acordo económico entre a União Europeia e a China. Pela minha parte, falarei da crescente repressão às liberdades em Hong Kong e da distensão em torno do Qatar, depois de três anos de bloqueio por parte do seus vizinhos, liderados pela Arábia Saudita.

A partir de agora, o programa passa a ter uma “caixa” para comentários, sugestões e críticas. Quem nos quiser contactar pode fazê-lo através do endereço de email observare@tvi.pt .

Samuel Pisar


Há dias em que, por precipitação, falamos demais. Em 2012, num jantar em Paris (alguns comentadores acham que a vida dos diplomatas é feita de jantares: é verdade, os diplomatas têm o hábito, quiçá excessivo, de jantar uma vez por dia), fiquei sentado próximo de um cavalheiro, já de certa idade, que, em determinado momento, e tendo sabido que eu era português, se referiu a uma homenagem que iria ser prestada, na UNESCO, a Aristides de Sousa Mendes.

Revelou-me estar envolvido na organização e eu congratulei-me com isso, tanto mais que, como o informei, tinha acabado de acumular o lugar de embaixador português em França com o de representante junto da UNESCO e, naturalmente, também ia colaborar no evento. Porque, à mesa, havia uma senhora de permeio e porque ele falava em voz bastante baixa, não tinha ouvido bem o seu nome.

A certo passo da conversa, ainda sob o tema Portugal, passando a voz à frente dessa senhora, perguntou-me por Mário Soares e pela sua "simpática esposa", que ele conhecia bem. Disse-lhe as últimas notícias que sabia de ambos (eram vivos, à época), tendo ele acrescentado: "Um livro meu tem um prefácio de Mário Soares".

Com um orgulho algo adolescente (cada vez mais me convenço que "adolescemos" com a idade), saiu-me de imediato: "Tem graça! Eu também tenho um livro prefaciado por Mário Soares". Sorrimos e o jantar lá prosseguiu.

Minutos depois, perguntei discretamente à senhora que se interpunha entre mim e o tal cavalheiro, já octogenário: "Tem ideia de como se chama o seu vizinho do lado? Não consegui ouvir o nome dele...". A senhora, creio que olhando para o pequeno papel que, na mesa, identificava o conviva, disse, baixo: "Samuel Pisar".

Tive um baque! Samuel Pisar? "O" Samuel Pisar, nascido na Polónia, que estivera detido em Auschwitz e em vários outros campos de concentração, que escapou miraculosamente das garras de Mengele e de outros cenários de horror, cujo pai fora morto pela Gestapo?

"O" Samuel Pisar que, no fim da guerra, se formara em Oxford e na Sorbonne, e que, naturalizado americano, dera aulas em Harvard e fora assessor económico de John Kennedy?

Olhei de viés e, com uma curiosidade acrescida, procurei estar atento a algo que ele dizia para o outro lado da mesa. Nada de decisivo: apenas elogiava a textura dos espargos que estavam a ser servidos, porque então era a época deles.

A casa era magnífica, de um galerista, cujo nome perdi, um conhecimento que herdara do meu antecessor, António Monteiro. Era um andar perto no Quai d’Orsay, curiosamente com um grande quadro de Paula Rego, uma pintora que Paris teima em desconhecer. No final do jantar, num canto da sala de estar, aproximei-me de Pisar. Falámos, recordo, da Europa e do lugar de Portugal nela. Nada de que tenha guardado a menor nota.

Samuel Pisar era, à época, um senador de uma vida que, como poucos, soube recriar a partir da barbárie e que um dia, escreveu: "Hoje, sobrevivente dos sobreviventes, sinto uma obrigação de transmitir algumas verdades que aprendi na minha passagem pelo mais baixo da condição humana e, depois, por alguns dos seus momentos altos". Li isto num livro dele, que comprei, dias depois.

Nunca me perdoarei do facto de, inadvertidamente, ter "rivalizado" com Samuel Pisar, ao reivindicar ter, como ele, um prefácio de Mário Soares. Ou melhor, e pensando bem, talvez tenha a obrigação de ficar contente por poder ter, com ele, esse honroso ponto em comum.

Por que razão falo agora de Samuel Pisar, que morreu já em 2015? Porque, há dias, dei-me conta de que era padrasto de Anthony Blinken, que vai ser o futuro Secretário de Estado americano, isto é, o ministro dos Negócios Estrangeiros de Joe Biden. Até saber isto, perguntava-me por que luas Blinken falava tão bem francês. Agora percebi: a sua mãe, Judith, vivia em Paris e foi a segunda mulher de Pisar. A senhora devia estar do outro lado daquela mesa, nesse jantar. 

sexta-feira, janeiro 08, 2021

America! America!

 


Conversa com António Freitas de Sousa para o “Jornal Económico”. Aqui

Um caracol


“Eu, pelos olhos, topo logo”. Imerso no iPhone, não percebi. “O senhor está cansado, não está?” Olhei, pelo retrovisor dele, o motorista do Uber, no Porto, com curiosidade. O trajeto era pequeno, mas via-se que estava ali um filósofo, daqueles que não se calam.

Há dias em que estou com paciência para conversar com motoristas, em que sou mesmo eu quem puxa a conversa, outros há em que, depois da saudação de entrada, fico na minha concha e cumpro os mínimos na interlocução. No Porto, já aprendi que ganho sempre em falar com eles.

O da manhã de ontem, simpático e tagarela, tinha uma teoria: “As máscaras não deixam ver as caras, as bocas e os lábios. Mas eu ando-me a ‘especializar’ em olhos. Já notei que, quando as pessoas estão chateadas ou preocupadas, os olhos fecham-se mais, não acha?”

Disse-lhe que não tinha nenhuma doutrina sobre isso, mas, à laia de comentário intimista, disse que, a mim, este tempo de máscaras criava-me, cada vez mais, a curiosidade em tentar perceber, pelos olhos, se uma mulher era bonita ou não.

O que eu fui dizer! O motorista filósofo deu um salto de contentamento, lá no banco da frente, ao ter tema comum comigo. E contou-me: “Há dias, apanhei uma senhora no Bolhão para o Palácio. Já nem era nova. Mas que olhos! O senhor nem imagina! Passei a viagem a olhar para ela, pelo espelho. Até fiquei preocupado que ela notasse. Quando a deixei, fiz de propósito e fiquei parado. Vi-a tirar a máscara. Afinal não valia um caracol!”

quinta-feira, janeiro 07, 2021

O frio de Vila Real


Dizem-me que esteve ontem um forte chiasco, em Vila Real. Lembrei-me então desta história.

Um dia de março de 1971, ao passar pela Place da la Nation, em Paris, onde tinha aportado por uns dias, num turismo baratucho que conseguia fazer nesse tempo, dei de caras com um antigo colega de Vila Real, que sabia ter saído “a salto” de Portugal e a quem tinha perdido, por completo, o rasto.

Era um tipo alto, com raízes em Bragança e com quem, curiosamente, me cruzara também em algumas férias em Viana do Castelo. Não éramos íntimos, mas éramos amigos.

Fizemos aquela festa tradicional, típica de dois transmontanos que se prezam. Generoso, convidou-me a ir beber uma cerveja à sua casa, ali perto.

Foi-me contando que tinha um emprego em que lavava janelas a partir das seis da manhã (“não é nada mal pago, sabes?, mas é muito chato ter de sair de casa às quatro!”). Em fins de tarde, aproveitava para assistir a uns cursos livres na Universidade de Vincennes. “A vida há-de mudar!”.

Sem dizer expressamente, deu-me a entender que era militante de um partido político português (na clandestinidade, claro, porque todos o estavam), o que conteve a minha curiosidade inquisitiva sobre mais aspetos da sua vida em Paris. Anos mais tarde, encontrei-o numa bancada de vendas, numa Festa do Avante.

Subimos ao apartamento onde vivia, uma sala e um quarto, num 4.º andar sem elevador, com uma cozinha a meias com um argelino, de onde chegava um cheiro menos convidativo a comida, que se espalhava por toda a parte.

O problema é o frio. A casa não tem aquecimento. Temos de pôr aquecedores, mas a eletricidade é cara. Às vezes, vou para a cama mais cedo, só para me aquecer.

E, num tom mais triste, com aquela saudade que a minha presença lhe trazia, acrescentou: “Queres saber uma coisa? Lá em Vila Real, parece que o nosso frio era diferente.

Pois era. O frio da terra portuguesa, para quem sofria a distância e a tragédia da emigração e do exílio, tinha outro calor.

quarta-feira, janeiro 06, 2021

Juan Carlos


Fez ontem 83 anos. A Espanha deve-lhe a inesperada sabedoria com que geriu a transição, que pode ter evitado uma sangrenta tragédia. Alguns dirão: mas o que ele fez, mais tarde, foi de imensa gravidade, maculando essa imagem. É verdade, mas cada tempo é um tempo, uma coisa não apaga a outra. Eu, que não sou espanhol, pelo que me não cabe conferir os saldos dessas contabilidades históricas, quero apenas recordar o grande amigo de Portugal que Juan Carlos sempre foi. E deixo esta imagem, bem elucidativa, que, há dias, passou nas televisões, de um dia em que entregou a Taça do Rei a Futre. No que o rei ali disse, está tudo dito. Que é apenas o que me interessa, a razão por que aqui o trago.

Só falam da América!


Há dias, depois de mais uma edição de um programa de comentário internacional em que regularmente intervenho na TVI 24, um conhecido interpelou-me: “Por que é que vocês só falam da América?”.

Não é só da América que falamos mas, na realidade, o tema está muito presente em todas aquelas nossas conversas.

Trump, Biden, as relações de Washington com a Europa e com a China, o seu papel na NATO, o comportamento face à ONU e ao mundo multilateral em geral, o relacionamento com Moscovo, o posicionamento no xadrez do Médio Oriente - caramba!, de facto, estamos sempre a falar da América!

E, no entanto, tem mesmo de ser assim. Os Estados Unidos da América, para além do folhetim, entre o trágico e o divertido, em que a sua vida política interna recente se converteu, graças a um presidente bizarro, são, de há muito, um poder omnipresente pelo mundo. Às vezes, são um poder constrangente, que força a vontade alheia, outras vezes, a maioria delas, são um poder condicionador, que influencia o modo como os outros gerem a sua própria realidade.

Os EUA tanto são notícia por aquilo em que imiscuem, como o são pelo modo próprio como decidem abandonar esses cenários. Elefante em loja de porcelana, a América, pelo seu poder, não deixa ninguém indiferente. Se bem repararmos, é na reação assumida perante os EUA que o mundo se define, que se fica a saber de que “lado” está cada um.

Sei que esta é uma perspetiva que não agrada a muitos que, por boas ou más razões, são críticos dos Estados Unidos e consideram que não é saudável, para uma ordem internacional que idealmente se quereria mais equilibrada, ter esta dependência, quase obsessiva, do poder americano.

Muitos acham que, podendo ter tido alguma justificação que as coisas assim fossem durante a Guerra Fria, com um poder anti-democrático hostil do outro lado do muro, não subsistem já razões para nos mantermos sob a “paternal”, mas menorizante, tutela americana.

Outros, porém, receosos da força crescente da China, embora menos pela ameaça militar e mais pelo seu peso económico, terão ali encontrado uma justificação para voltar a recriar uma “América & os seus amigos”, para se oporem ao “perigo amarelo”, uma expressão desenterrada dos tempos em que o politicamente correto não limitava a nossa diversidade semântica.

A questão, como sempre, é o poder. Mas é também a vontade, porque metade do poder dos outros advém da maior ou menor facilidade com que deixamos manipular a nossa própria vontade.

terça-feira, janeiro 05, 2021

Aqui chegámos!

 


Debates

Não vi, até agora, nenhum dos debates entre candidatos presidenciais. Nem um segundo, de qualquer deles. Mas tenho lido relatos de como as coisas se têm passado. 

Nas últimas eleições presidenciais, há cinco anos, dei-me ao luxo de não ver qualquer debate. 

Não será o caso deste ano, em que tenho a intenção de ver três debates. Mas só três.

Portugal, o Brasil e a Europa



“Portugal, o Brasil e a Europa” foi o subtítulo que dei a um livro que publiquei em Brasília, em fins de 2008, com o nome de “Tanto Mar?”, antes de trocar aquela cidade por Paris. É também uma frase que sintetiza a Presidência Portuguesa da União Europeia de 2007, vivida no Brasil.

Teve imensa graça organizar a presidência portuguesa, como embaixador português em Brasília. Foi interessante fazer subir, durante esses seis meses, um “zeppelin” (na imagem) iluminado nos céus da cidade plana, com as cores da nossa presidência, assinalando o local de Brasília onde, num determinado dia, ocorria um evento cultural português: fosse uma sessão de teatro, uma exibição de cinema, um espetáculo de música, um debate, uma leitura de poesia.

Neste caso, aliás, a poesia podia nem sequer ser portuguesa. Na sede do Instituto Camões, na embaixada de Portugal, em algumas das 26 semanas que o semestre tinha, houve sessões dedicadas à poesia dos 28 países da União, com leitura de textos de poetas das várias nacionalidades, traduzidos em português, ditos por atores, que se passeavam entre as mesas dos convidados ao “Café Camões”, com doçaria portuguesa à mistura. 

E, a abrir o semestre, o grande teatro nacional de Brasília esteve a rebentar pelas costuras, com a voz de Marisa e encher-nos a sala, de gente e de orgulho. Adriano Jordão, nosso conselheiro cultural, foi o obreiro dessa grande e quase esgotante operação cultural, em que toda a embaixada muito se empenhou. Foi muito agradável representar Portugal nesses dias, como o foi constatar que foi possível fazer tudo isso quase sem gastos acrescidos para o erário público, sabiam? 

O Brasil de então estava muito interessado na Europa. E a Europa olhava para o Brasil com imensa atenção. Porque às atenções mútuas interessava dar um corpo institucional, bastantes meses antes, ainda durante a presidência alemã, Portugal apresentou em Bruxelas a proposta de que ao Brasil fosse concedido, pela União Europeia, o estatuto de “parceiro estratégico”, o estádio mais elevado de interlocutor externo que a União podia conceder. O Brasil passaria a ombrear com o EUA, a Rússia, a China, o Japão, o Canadá e a Índia (este também por proposta portuguesa, em 2000, como já aqui contei), os únicos Estados a quem esse estatuto era concedido, com o que isso representava de consultas regulares, com cimeiras a nível elevado.

A proposta portuguesa, cujo desenho inicial emergiu da equipa da embaixada portuguesa em Brasília, depois desenvolvido de forma altamente profissional pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros português e pela nossa Representação Permanente em Bruxelas, não teve um caminho fácil, nos corredores europeus. Desde logo, porque havia outros parceiros que, manifestamente, gostariam de ser titulares da ideia. Outros entenderam que, ao dar aquele destaque ao Brasil, a União poderia estar a transmitir um sinal de menor atenção a outros Estados, nomeadamente na mesma área regional - mas não só. Ultrapassar essas dificuldades, por vezes traduzidas num “arrastar de pés” até que tudo se atrasasse irremediavelmente, foi uma tarefa política e diplomática muito complexa, que, em Brasília, íamos acompanhando de forma interessada. 

Mas, também ali, a iniciativa portuguesa não tinha uma leitura unívoca. Setores havia, do lado brasileiro, que teriam apreciado bastante mais que uma iniciativa desse género, não obstante ser sempre desejável no plano dos princípios, tivesse sido titulada e apadrinhada por um grande poder europeu e não por um “parente”, que parecia estar a usar o “primo” transatlântico na moda, para se mostrar importante no seio do seu “clube”. 

Mas o mal-estar não acabava aí. Com impactos da imprensa, o destaque dado ao Brasil pela União Europeia estava a criar “ciúmes” no âmbito do Mercosul, que tinha em curso a, então arrastada, negociação comercial com a União e que interpretava a relação privilegiada com o Brasil como uma “ultrapassagem” indesejável. As próprias autoridades brasileiras estavam a sentir essa reação, o que nos levou a algumas iniciativas. 

Desde logo, com a ajuda da delegação local da Comissão Europeia, chefiada pelo português João Pacheco, organizámos uma reunião com a imprensa, explicando uma coisa muito simples: nenhuma das dimensões substantivas que faziam parte do futuro acordo UE-Mercosul - basicamente assente no comércio, serviços e investimento - fazia parte da “parceria estratégica” que tínhamos desenhado para o Brasil. Não havia a menor contradição entre ambas as iniciativas.

Mas as preocupações do Mercosul não pareciam abrandar. A minha colega Luísa Bastos de Almeida, embaixadora em Montevideu, deu-me conta de alguma inquietação que atravessava a instituição, que aí tinha a sua sede. Tomei a decisão de me deslocar ao Uruguai e, graças à intervenção da minha colega, tive oportunidade de me dirigir às instâncias do Mercosul, explicando em detalhe o que nos propúnhamos fazer e o não fundamento de tais preocupações. Foi uma charla, seguida de debate, no fim do qual, confesso, fiquei com vontade de falar (bem) melhor espanhol...

Lula seria recebido em Lisboa com todos os “grandes” da Europa à sua volta. Declinei o simpático convite, que recebi do governo, para estar em Portugal nessa ocasião. A minha Presidência era em Brasília, e a festa foi rija aí, com uns belos seis meses de trabalho.

Era esta a história - a terceira, das três presidências portuguesas que testemunhei - que queria contar.

segunda-feira, janeiro 04, 2021

Francisca


Eles aí estão, Francisca! Tu sabias que, cedo ou tarde, qualquer coisa mais viria por aí. Já tinha havido ameaças, alguns golpes baixos. Passaram dessas outras vezes, mas anunciava-se o seu regresso. Foi isto agora, como podia ter sido qualquer outra coisa. Primeiro, foi a legalidade da decisão que tomaste, que, sendo uma opção institucional debatível, foi de uma legitimidade cristalina. Como eles bem sabem, embora façam de conta que não. Depois, foi o desforço, apoiado nos vícios de forma que uma incúria te induziu a titular, embora todos se esqueçam de dizer que isso, em nada, influenciou o desfecho do assunto. Mais vem por aí, com insinuações medíocres, porque agora vale tudo! O que é preciso, até ao ranger da última porta, é tentar usar todas as alavancas para conseguir obter, por desgaste, neste tempo eleitoral polémico, aquilo que não foi obtido num outro voto. Pela tua vida, bem sabes, Francisca, talvez bem melhor do que quem quer que seja nesse governo de que acedeste a fazer parte, sacrificando uma carreira quase ímpar, que a política tem regras muito cruéis. Sentiste isso desde muito cedo, noutras geografias, em tempos de tragédia. Agora, neste outro tempo, que já é de farsa, sei que isso te blindou para a intriga, embora, atenta a tua sensibilidade, possa não te ter vacinado contra a mágoa. Aconteça o que acontecer, os que te conhecem, e são muitos, os teus amigos e os que, não o sendo, conhecem a tua integridade, sabem bem que a tua ética e o teu sentido de serviço público pairam muito acima da espuma lamacenta destes dias estouvados. O resto, Francisca, é isso mesmo: é o resto!

domingo, janeiro 03, 2021

O caso austríaco


Como prometido, deixo uma história da nossa presidência europeia de 2000.

Recordo-me do assunto ter sido abordado à margem do Conselho Europeu de Helsínquia, no termo de 1999. A hipótese dos conservadores austríacos poderem vir a fazer uma coligação com o partido de Jörg Haider, o FPÖ, com notórias marcas de extrema-direita e com inequívocas declarações filo-nazis por parte de alguns dos seus dirigentes, começava a ser falada.

Em janeiro de 2000, enquanto eu andava numa roda-viva, entre capitais europeias, para conseguir apoios para um alargamento da agenda da Conferência Intergovernamental, que iria rever o Tratado de Amesterdão, que nos permitisse obter do Parlamento Europeu o necessário “avis conforme” prévio ao arranque dos trabalhos, começou a gerar-se, entre os dirigentes políticos europeus, um profundo mal-estar em torno daquela opção austríaca. Franceses e belgas eram os mais vocais, muito por virtude dos seus próprios problemas internos, onde o exemplo da Áustria poderia “normalizar” a ascensão dos seus partidos de extrema-direita.

No dia 28 de janeiro, em Estocolmo, fui acordado com o anúncio da concretização da coligação. Apanhado no hall do hotel pelos jornalistas que me acompanhavam nesse périplo, fiz uma declaração cautelosa: “Estamos bastante preocupados, mas é muito importante olhar agora com cuidado o programa da nova coligação, a fim de verificar se infringe os compromissos austríacos subscritos no seu acesso à União”.

Viajei de Falcon, a caminho de Madrid, e quando pousámos na capital espanhola, ainda na pista, tinha uma chamada telefónica de Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros.

Disse-me para, depois da reunião que eu iria ter com o meu homólogo espanhol, falar à imprensa, em nome da presidência portuguesa, tomando uma atitude bastante mais firme do que aquela que eu próprio assumira nessa manhã, que estava a ser lida, em certos meios europeus, como uma relativa contemporização da presidência portuguesa face ao anúncio austríaco.

“António Guterres quer que você assuma uma tomada de posição muito forte, de rejeição aberta da fórmula governamental austríaca”, disse Gama. Tinha de ser eu a fazê-lo, porque fora eu quem tinha sido “soft”, ainda nessa manhã. A verdade é que eu tinha dito o que disse apenas porque desconhecia até onde Lisboa estava disposta a ir. Em cerca de cinco anos e meio de governo, deve ter sido essa a única ocasião em que me foi pedido, por Guterres e Gama, para ter uma posição mais à esquerda...

Mal eu tinha acabado a conversa telefónica com Gama, o embaixador português em Madrid aproximou-se. Trazia um recado do meu colega espanhol, Ramón de Miguel, com quem eu iria reunir dentro em pouco: informava-me que, numa sala do Palácio de Santa Cruz, as Necessidades espanholas, me aguardava a nossa colega austríaca, a até ali secretária de Estado Benita Ferrero-Waldner, que tinha vindo secretamente a Madrid. Benita fora já anunciada como nova ministra dos Negócios Estrangeiros do novo governo de coligação. Assim, e ainda antes de encontrar o meu homólogo espanhol, eu teria de ter essa conversa.

Conhecia muito bem Benita Ferrero-Waldner. Tinha-a tido como hóspede oficial em Lisboa, tinha estado em Viena a seu convite, havíamos criado uma relação muito agradável, ao longo dos últimos anos. Recebeu-me com um imenso sorriso, começando por dizer que a minha declaração, nessa manhã, em Estocolmo, em nome da presidência portuguesa, fora muito bem acolhida pelo novo primeiro-ministro, Wolfgang Schüssel. Mal ela sabia que eu tinha acabado de receber instruções para endurecer esse discurso!

Nos minutos que se seguiram, Benita deve ter percebido que alguma coisa tinha entretanto mudado. Elenquei, com ar já mais pesado, as dificuldades crescentes que estavam a surgir, um pouco por toda a Europa e a necessidade que Lisboa estava a ter de federar uma posição “a catorze”, que seguramente não iria ser muito agradável para Viena. Imagino que, na conversa, possa ter prometido fazer o meu melhor, mas a minha margem de manobra era muito apertada.

A minha colega mostrou-se desolada: tinha colocado toda a esperança na minha declaração e, agora, via-me a afastar-me dela. Lembro os seus olhos cheios de lágrimas, quando me dizia: “Francisco. Tu conheces-me a mim e ao Wolfgang, sabes que não somos fascistas!”

Saí dali para a reunião com Ramón de Miguel, que me parecia ter dito a Benita coisas um pouco mais simpáticas do que as que eu acabara de lhe dizer. Seguiu-se uma conferência de imprensa, na qual, na sequência das instruções recebidas, endureci fortemente o discurso. Os três jornalistas que comigo viajavam, e que desconheciam (e continuariam a desconhecer, até ao final da viagem) o meu encontro secreto com a recém-indigitada ministra austríaca, mostravam-se siderados com o meu novo tom.

Nos dias seguintes, o nosso governo, em Lisboa, viveu sob pressão forte de alguns dos seus pares. Chirac telefonou várias vezes a Guterres, Védrine a Jaime Gama e eu procurava fugir às pressões constantes do meu contraparte, Pierre Moscovici. Outros governos europeus subiram de tom contra Viena.

Guterres e o seu gabinete coordenaram habilmente a posição dos “catorze”, que culminou numa declaração conjunta. Escassos dias depois, coube-me defender, num debate muito intenso no Parlamento Europeu, dessa vez em Bruxelas, essa posição condenatória da Áustria. Jean-Marie Le Pen tomou-me, na ocasião, como alvo da sua violenta intervenção, tendo a minha resposta sido apoiada, entre outros, pelo centrista francês, François Bayrou, que se colocou abertamente a meu lado no debate. Um dia, em Paris, tive ocasião de agradecer pessoalmente a Bayrou esse apoio.

Guardei para sempre, nessa sessão, a pusilânime posição do presidente da Comissão, Romano Prodi, a querer estar “de bem com deus e com o diabo”. E não esqueci a solidariedade do comissário britânico Niel Kinnock, que atravessou o hemiciclo para me dar um abraço, dizendo que queria que eu soubesse que não se revia na atitude do presidente Prodi. Foi um dia difícil, que acabou numa animada entrevista, com Jeremy Paxton, no “Newsnight” da BBC TV.

Nos meses seguintes, a preocupação de Portugal, enquanto presidência europeia, foi tentar evitar que a nossa agenda de trabalhos pudesse ficar refém do problema austríaco. Tínhamos de garantir à Áustria o exercício pleno dos seus direitos como Estado membro, mas igualmente nos competia, em nome dos restantes “catorze”, objetivar uma forte e constante pressão política perante Viena.

Recordo o primeiro Conselho “Assuntos Gerais” em que Benita Ferrero-Waldner participou, em Bruxelas. Entrou na sala e, praticamente, com duas ou três exceções, ninguém a cumprimentou. E todos a conheciam bem do passado. Ostensivamente, levantei-me do meu lugar de representante de Portugal (Jaime Gama estava a presidir à sessão) e saudei-a. Gama fá-lo-ia, quando Benita passou por ele. Anos depois, num jantar privado, quando vivia em Viena, Benita, que veio a ser comissária europeia e muito nos ajudou a lançar a parceria estratégica com o Brasil, lembrou quanto esse nosso gesto a tinha sensibilizado.

Várias reuniões informais da nossa presidência viriam a ser perturbadas pelo ambiente hostil contra a Áustria. Acho que nos comportámos então com grande equilíbrio, como “honest brokers” que nos competia ser. Recordo ter ido a Bruxelas com António Guterres, para um encontro discreto com o primeiro-ministro Schüssel, na procura de soluções para acomodação do impasse. E ainda tenho na memória chamadas telefónicas recebidas de ministros portugueses, que viam colegas seus sairem da mesa, em reuniões informais que organizavam em Portugal, quando entrava o delegado austríaco, a perguntarem-me: “Olha lá! O que é que achas que eu faça?”. Foi muito instrutivo, pelo menos como experiência.

Depois, os franceses sucederam-nos e foi o que se viu: com o relatório de um “grupo de sábios”, meteram o assunto debaixo do tapete. É muito fácil delegar a coragem nos outros.

Hoje, visto à distância, o caso austríaco é uma brincadeira de crianças, ao lado de Estados membros que, com escandalosas cumplicidades, quanto mais não seja pelo silêncio, infringem, aberta e impunemente, as regras europeias que se comprometeram a cumprir.

Giuliani

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