O meu mais antigo amigo chamava-se Olívio, Olívio de Carvalho. Acabo de saber que morreu, por um SMS emocionado do Elísio Neves, que o chama, e bem, "o melhor de todos nós".
Nascemos no mesmo ano, na mesma rua, lá em Vila Real e, claro, não me lembro de mim sem o conhecer. O pai do Olívio tinha uma casa de conserto de bicicletas, pelo que era conhecido como o "Olívio das bicicletas". Era na chamada "Travessa", a rua Avelino Patena, e, dessa forja, tivemos como companheiros o Quim "Rato", o Augusto, o Quim Claro, o Sampaio, o Domingos Lito, os Costa Lobo, o Vitor e o Carlos Almeida, vários Barretos. Com o Elísio Neves, o Zé Barreto terá permanecido, até hoje, como uma das pessoas mais próximas do Olívio.
Entrámos juntos para a escola primária, embora o Olívio tivesse sabiamente optado, desde muito cedo, por um ritmo de conclusão dos anos letivos que se revelou um tanto mais lento do que o meu. Deve ter ficado pelo antigo 5°ano, penso.
No final dos anos 60, ambos tínhamos ido para Lisboa, embora com vidas diferentes, em grupos muito diversos. Encontrávamo-nos às vezes no Montecarlo, cada um em sua tribo. Aí eu trocava livros e conversa, enquanto ele perdia as noites e ganhava a vida como grande especialista em dominó, atividade que já o tinha tornado famoso em Vila Real. Ah! O Olívio era um bilharista exímio e, pelo menos em Vila Real, poucos vi passarem-lhe a perna na arte.
Como era regra do tempo, a tropa apanhou-nos a ambos. Lembro-me dele me falar que foi parar a um departamento que tratava de "análise e depuração de águas", uma ironia para quem mais tarde iria ser dono de um bar. Depois, o Olívio foi para delegado de propaganda médica, estava eu no meio do curso e também já empregado num banco. Viamo-nos a espaços. Nem sempre sintonizávamos nas ideias e no modo de olhar a vida, mas ambos cuidávamos em que a velha solidariedade de infância prevalecesse sempre sobre essas dissonâncias. Anos mais tarde, chegou-me a notícia de que o Olívio, que vivia na Luz Soriano, havia sido preso. Um lamentável equívoco, que demorou a ser deslindado, provocado por uma amiga solidariedade, ia-lhe destruindo a vida. 100% inocente, foi solto, mas terá aprendido alguma coisa sobre os outros.
Montou depois um bar, o "Cocote", atrás da Caixa Geral de Depósitos, ao Calhariz. Todo o "emigrado" de Vila Real em Lisboa por lá passava. Fechou um dia a loja e entrou nas velharias e antiguidades, bem como no comércio de pintura. Ainda há dois dias me vi a procurar uma parede para colocar um quadro do Romualdo, um pintor a cujo atelier, na Bica, fui levado pela mão do Olívio. Na Lisboa noturna que era a sua, conhecia como poucos o Bairro Alto e a Bica, sendo também a Ribadouro, noutra geografia, uma sua escala habitual, onde algumas vezes nos cruzámos. Mas o lugar de eleição do Olívio, por muitos anos, foi o "Pavilhão Chinês", o "escritório" para a sua venda de coisas antigas, onde também treinava a sua arte de bilharista.
O Olívio era aquilo a que, numa linguagem antiga mas bem apropriada a um cultor de velharias, se chamava "uma jóia de pessoa". Amigo do seu amigo, disponível e sempre disposto a ser útil aos outros, tinha um jeito sarcástico no falar, um sorriso marcado por uma permanente ironia e uma imensa graça. Falava às mulheres com uma delicadeza e atenção que não deixou de ter as devidas recompensas, embora fosse de uma discrição elegante na matéria.
A saúde pregou-lhe, entretanto, sérias partidas. O Olívio regressou a Vila Real. Guardarei para sempre a imagem dele, acabado de sair de um AVC, quando, sob um sol tórrido de agosto, insistiu em se deslocar, curvado e quase arrastado, para me ir dar um abraço solidário, num momento triste da minha vida. Vimo-nos, por uma última vez, numa casa de repouso onde passou os seus derradeiros dias, com a memória a falhar-se e o sorriso a esvanecer-se.
Grande Olívio! "O melhor de todos nós", é verdade!