domingo, janeiro 31, 2016

Uma noite na Sedes

Creio que terá sido nos primeiros meses de 1973. Nos arquivos da Sedes - esse clube de reflexão político-económica, de matriz liberal (no bom sentido), que o marcelismo (o outro) deixara criar e que ainda subsiste - deve ser possível descobrir o dia exato (como fui "para a tropa" em fins de março, deve ter sido até essa data). É lá que este episódio se passa.

Naquela noite, as instalações antigas da Sedes, na rua Viriato, estavam "à cunha". Estávamos lá para ouvir Francisco de Sá Carneiro, que, pouco antes, se havia demitido da sua condição de deputado à Assembleia Nacional, por insanáveis divergências com Marcelo Caetano. Eu nunca tinha ido à Sedes, aliás nunca fui dela associado e só por lá passei escassas vezes. Mas a perspetiva de uma palestra heterodoxa do líder da excluída "ala liberal" foi suficiente para se sobrepor à (pateta) sobranceria esquerdista com que então eu olhava as "contradições não antagónicas" que existiam no seio do regime. 

Por coincidência, cruzara-me à entrada com Sá Carneiro, que me lembro de trazer uma gabardine preta e que, pela autoridade e pela "gravitas" que projetava, dava ares de ser mais alto do que a sua pequena figura realmente era. Salvo uma tarde de 1970, em que o vislumbrei da tribuna dos visitantes, no plenário da Assembleia, creio ter sido esta a única vez que vi o fundador do PPD.

Já não recordo o tema da sessão, mas imagino que fosse do tipo "A situação política" ou outra daquelas fórmulas muito genéricas que eram sempre um pretexto para se falar de tudo. E se eu, que nem sócio era, pudera entrar (terei ido com alguém?), imagino que os ouvidos da polícia política estariam por ali também.

Não me lembro rigorosamente nada do que Sá Carneiro terá dito. Mas recordo que houve dois jovens que lhe colocaram perguntas, um pouco longas para o gosto da impaciente assistência, que se percebia que não estava ali para ouvi-los, mas apenas ansiosa pelas respostas do orador.

O primeiro foi-me identificado. Nunca o tinha visto, mas ouvira falar dele, pela primeira vez, já não sei a propósito de quê, anos antes, numa reunião da "Livrelco", a cooperativa livreira universitária, ali para os lados de Entrecampos, de cujos corpos gerentes fiz parte. Referiram-mo como "um tipo fino como um alho", um bocado "facho" (simplificação esquerdalha para tudo quanto não fosse, no mínimo, socialista. E mesmo assim...), uma das cabeças com futuro na direita.

O outro interveniente era-me completamente desconhecido. Foi quem falou mais. Exprimia-se muito bem, de forma articulada, num tom político que, sendo visivelmente distante dos terrenos em que eu me movia, indiciava fortes distâncias face ao regime. Recordo-me de ter inquirido o nome. Um conhecido que tinha por perto, esclareceu-me, em voz baixa: "É um católico do Técnico. Dizem que é muito esperto. Chama-se António Guterres". (Tenho sempre a dúvida sobre se, antes do "dizem" não houve um "mas"). Ah! O outro perguntador chamava-se, e chama-se, Marcelo Rebelo de Sousa.

Não deixa de ter graça que um seja hoje candidato a secretário-geral da ONU e o outro o futuro chefe do Estado.

10 comentários:

Anónimo disse...

Só faltou António Costa, mas tinha 11 anos na altura. Poderia contudo ter ido com o pai ( pouco provável ) ou com a mãe. A propósito, eu fui com o meu pai a sessões de uma cooperativa próxima do PS que havia num andar da Duque d'Ávila, cujo nome esqueci. Alguém me poderá ajudar?

JPGarcia

Unknown disse...

Exmo. senhor,
Em tempos que começam a ser, para nosso mal, menos liberais, é uma desilusão ver o medo do "mau sentido" do liberalismos ainda a marcar o discurso de pessoas com a sua formação e experiência, claramente liberais, institucionalistas e cosmopolitas. Não devemos, nem no discurso, por onde tudo começa, ceder á vaga, que já não é apenas uma moda, do radicalismo iliberal, seja ele qual for, de direita ou esquerda, Trump ou Marisa, Podemos ou Le Pen, na Grécia ou na Polónia, na Hungria ou na Dinamarca e "por aí afora" como diz o povo.

Joaquim de Freitas disse...

Curiosidades da vida, Senhor Embaixador. O Senhor viu Sá Carneiro uma vez ; eu, que não vivia em Portugal, vi-o pelo menos três vezes. Ia a Portugal algumas vezes por ano, em missão comercial. Começava sempre pelo Porto, onde tinha um agente, e seguia alguns dias mais tarde para Lisboa. Ia sempre no ultimo voo da TAP, por volta das 21:OO se recordo bem. E sempre o deputado se sentava também na cauda do aparelho, um Boeing 727, a parte do aparelho que eu preferia.

Se havia espaço , consultava os documentos, planos e esquemas, à minha frente, que me tinham servido no Porto. Não sei porque razão, num desses voos, estando sentado ao lado, falamos do meu trabalho, que prosseguia no avião, e preparava o do dia seguinte.
Aconteceu isso duas ou três vezes. Acabamos por nos conhecer superficialmente. E sempre que chegava a Lisboa, uma senhora esperava-o com um carro no aeroporto. E saudámo-nos de longe depois no bar do Sheraton, onde eu ficava também.
Não o conhecia suficientemente. Mas sob a sua pequena estatura , um rosto bastante fino e uma certa elegância , descobri alguém que falava o Português que eu gostaria de falar.

Um dia, em França, à hora do pequeno almoço, ouvi France Inter anunciar um acidente de avião em Lisboa, onde tinham perecido dois responsáveis políticos Portugueses. As causas do acidente eram desconhecidas

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro JPGarcia. Ajudo-oru! Tratava-se da Cooperativa de Estudos e Documentação. Ficava num 1° ou 2° andar da avenida Duque de Ávila, do lado sul. Também por lá andei...

Anónimo disse...

Senhor Embaixador (Às vezes penso deixar de o tratar assim tão íntimo que as suas memórias o fazem). Nem pode imaginar como estas suas recordações em que se não põe em bicos de pés pessoais mas assume o papel de testemunha atenta nos ajudam a perceber melhor o mundo em que vivemos. Gosto de ver que não arrasta uma nostalgia mas sempre e apenas a alegria de uma vida cheia. Continue, por favor. MLA

Anónimo disse...

Caro Francisco,

Muito obrigado!

Lembro - me de, em 72 e 73, ali assistir a várias sessões culturais de grande nível, inclusivamente por personalidades que não eram do PS, como Joào de Freitas Branco, sem dúvida o maior musicólogo português do século XX, que na altura era director do São Carlos e que mais tarde foi Secretário de Estado da Cultura.

JPGarcia

Anónimo disse...

Sá Carneiro era baixo, mas tinha uma personalidade que o fazia mais alto... eh eh eh eh.. Algumas vezes me encontrei com ele, não na política, mas numa casa de confeções para homem, no Largo do Rato, (não era na futura sede do PS...)onde nessa época muitos políticos se vestiam.

Anónimo disse...


Sr. Embaixador:

«Mas a perspetiva de uma palestra heterodoxa do líder da excluída "ala liberal" foi suficiente para se sobrepor à (pateta) sobranceria esquerdista com que então eu olhava as "contradições não antagónicas" que existiam no seio do regime.»

Nos últimos tempos, vejo cada vez mais gente que militou em partidos ou grupos políticos de esquerda, no período anterior ao 25 de Abril e no pós revolução, e que agora um conjunto de comentadores denominam de radicais, fazerem afirmações como aquela que retirei do seu texto «Uma noite na Sedes».
Penso que isso pode induzir num problema de má consciência ou de tentar reescrever a história individual.
Tendo feito parte dessa geração e tendo participado ativamente na militância política desses períodos, penso que isso é um erro. Na época era essa a convicção com que cada um de nós se batia pelas suas ideias, no contexto e enquadramento político e social desse período histórico. E a discussão das «"contradições não antagónicas" que existiam no seio do regime» era o pão nosso de cada dia, matizadas consoante as posições dos grupos políticos da época. Não esquecer que, nessa altura da ala liberal, não eram poucos os que iam à INCM comprar o «Diário das Sessões» da Assembleia Nacional para se informarem dos debates que, nesse prenúncio do final de ditadura, aí aconteciam e que alguma – pouca - comunicação social tentava, cripticamente, fazer passar para a opinião pública, «fintando» a censura.
De um País como Portugal, com as feridas que a ditadura lhe fez, não se podia esperar que não tivessem surgido, à luz do dia, opiniões e projetos que se confrontavam de forma mais direta e veemente, para ser suave, como aconteceu.
Fazer leituras retroativas e arrependimentos, hoje, relativamente ao passado, com o pensamento e o posicionamento político e partidário de hoje, não abona nada na história individual da forma como cada um contribuiu, nessa altura, para mudar o País da ditadura para a democracia.
Penso que assumir a história – individual ou coletiva –, apesar de todas as mudanças, é um ato de respeito pela consciência de cada um de nós.
Obrigado.

Francisco Seixas da Costa disse...

O anónimo das 18.59 conhece-me mal, pelos vistos. Não tenho visto, entre os inteventores públicos nas redes sociais, quem se "exponha" mais do que eu no tocante às opções políticas assumidas no seu passado. Não renego nada do que fiz e, mais do que isso, tenho um grande orgulho nesse passado, mesmo dos momentos mais radicais que titulei. Isso não invalida que relativize, aos olhos de hoje, a adequação de algumas dessas posições aos interesses que vim a definir como portugueses. Mas foi também desses erros - que não escondo - que também se fez a minha vida.

Anónimo disse...


O comentário que ontem fiz, do «anónimo das 18.59», não tinha qualquer intenção ou vontade de o atingir quanto às suas convicções, no passado e no presente, e ao facto de se «expor» nas redes sociais e, em particular, no seu blog.
Como acompanho os seus escritos, não tenho dúvidas quanto a esse facto e de reconhecer, também, ao lado de muitos outros, o papel que também teve no Movimento que teve a determinação de derrubar o regime.
Com o que encazinei foi com a referência «à (pateta) - ?? – sobranceria esquerdista com que então eu olhava as "contradições não antagónicas" que existiam no seio do regime».
Porquê pateta sobranceria, quando o regime demonstrava fissuras e as posições da chamada ala liberal e de outros sectores, no contexto político da época, ainda eram vistas com alguma desconfiança, para quem queria apressar essa queda. Como diz a canção do Sérgio Godinho «Liberdade»: «Viemos com o peso do passado e da semente/Esperar tantos anos torna tudo mais urgente/e a sede de uma espera só se estanca na torrente».
Embora não nos conheçamos pessoalmente, tenho acompanhado o seu percurso político, para além de termos tido um amigo comum que já desapareceu.
De qualquer forma, obrigado pelo espaço e pelo tempo.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...