Não sei se também lhes acontece, mas, a mim, em certas zonas de Lisboa, se acaso vejo um lugar vago em que parece ser possível estacionar o carro, acho isso uma coisa tão extraordinária que penso logo que, por qualquer razão, não devo estar a ver bem, que deve ser proibido, que aquilo é para moradores ou outras causas impeditivas, que não descortino à primeira. E lá vou eu olhar, com cuidado, as placas de trânsito e o seu “small print”, incrédulo quanto àquela impossível sorte.
Foi o que me sucedeu, ao final da tarde de ontem, no Príncipe Real, lugar onde, que me recorde, quase só consigo lugar para parar o carro uma vez em cada ano bissexto - e não em todos. E este lugar era mesmo em frente à esplanada norte!
Dava assim para ir à “Travessa”, a magnífica livraria brasileira, hoje, com a FNAC do Chiado, a melhor de Lisboa. Por lá me cruzei com um recém-adelgaçado e recém-publicado autor (falámos sobre um amigo nortenho comum, António de Sousa Homem), com uma romancista por quem (disse-lhe) não passam os anos (ser de Boliqueime confere longevidade, como a pátria aprendeu) e com um grande poeta, este ajoujado de compras livrescas. A ele inquiri o que achava da autora de um pequeno livrinho, que eu tinha acabado de me oferecer, também de uma poeta (agora não é “bem” dizer-se “poetisa”) de quem, há tempos, tinha lido uma coisa que me agradara bastante. Foi críptico, mas não estranhei: os poetas raramente rimam uns com os outros.
Ao pagar, perguntei à jovem que me atendeu se por ali vendiam a “Piauí”. “Ainda não”, respondeu-me, acrescentando um simpático: “Mas não perca a esperança!”. Sobranceiro, lancei: “Era só para saber! Eu tenho uma assinatura!”. Fiquei com a sensação de ter subido uns furos na consideração dela, que intimamente se deve ter interrogado sobre quem era aquele idoso, gordo e de cabelos brancos, que perguntava sobre a revista mais detestada pelos “bolsominions”.
Voltei a encontrar o Brasil logo numa porta a seguir, na pessoa da empregada da Benamor, onde me deu para comprar meia dúzia de sabonetes de cheiros diferentes, que andei a snifar pela loja. Era do Recife, mas (falha imperdoável!) nunca tinha ido jantar ao “Leite”. Mas, em compensação, constatei, conhecia por lá as esculturas do Brennand e o artesanato do mestre Vitalino. Estava perdoada!
À saída, embora com o frio lisboeta (mas eu tomei a vacina da gripe!), bem encasacado, para usufruir um pouco mais do estacionamento, arrisquei beber uma cerveja na esplanada do Príncipe Real. (O Brasil de novo: quantos dos brasileiros que por aí andam saberão que aquela praça se chamou um dia “Rio de Janeiro”?).
Numa mesa quase ao lado, estava um casal, na casa dos trinta. Ele tinha uns óculos redondos “à Trotski”, ela tinha, como qualidade mais visível a olho nu, ser gira à brava.
A certa altura, ele explicava, didático: “... e o homem esteve preso muitos anos, era comunista”. Sou avesso a ouvir conversas alheias, mas, dado o tema, fiquei curioso. Quem seria o comunista? Alguém conhecido ou um anónimo? Ele terá então dito o nome, mas uma buzinadela de um carro “tapou-o”. Bolas! Mas, tive sorte, porque ela retorquiu: “Mas esse não era do Cavaco?”. Um comunista do Cavaco? Olá! Aquilo começava a ter graça!
Nesta fase do diálogo, entremeado pelo barulho dos carros, senti-me da brigada do José Gonçalves (para quem não saiba, era o melhor “pide de rua” que a banditagem da António Maria Cardoso tinha por lá). O “Trotski” deu então uma gargalhada e eu, divertido como um cuco, lá o ouvi explicar à namorada boazona: “Esse era Dias Loureiro! Eu estou a falar do Dias Lourenço!”. Só parei de rir na rua de S. Bento.