segunda-feira, novembro 18, 2019

Cliente da “segunda série”


Não me passa hoje pela cabeça (já me passou um dia, mas arrependi-me vivamente) almoçar ou jantar no Alfa Pendular, entre Lisboa e Porto ou vice-versa (agora, vou no vice-versa). A qualidade do produto trazido ao lugar não me agrada minimamente, e isto é apenas um piedoso “understatement”.

Nos tempos do velho Foguete, o comboio prateado que fazia este trajeto creio que quase no dobro do tempo, havia uma carruagem restaurante, com mesas próprias com pequenos candeeiros, onde se tomavam as refeições. 

Marcavam-se estas no início da viagem, havendo dois turnos de serviço. Quando as refeições estavam prontas para serem servidas, surgia pelas coxias um empregado que tocava uma pequena sineta, ao mesmo tempo que ia anunciando em voz bem alta: “Primeira série!”. Uma hora e tal mais tarde, lá surgia a “segunda série!”. E, a essas chamadas, os comensais que haviam reservado iam para a carruagem restaurante.

Fui sempre um cliente da “segunda série”, porque esta permitia mantermo-nos à mesa por mais tempo, beber mais do que um café, nesses anos em que ainda tínhamos fígado para fechar a refeição com uma dose de aguardente velha (em balão aquecido, o que era feito, a nosso pedido, à falta de lamparina, com um pano embebido em água quente). Lembro-me também que, escolhendo a tal “segunda série”, só saíamos da mesa já por Vila Franca ou por Espinho, dependendo do sentido do comboio. E que belas conversas tive por aquelas mesas, de que agora não consegui arranjar uma imagem decente para ilustrar este post!

Como a comida vinha em travessas (na antiga tradição portuguesa de serviço à mesa), os empregados da Wagons-Lits serviam individualmente cada cliente. Ora a estabilidade do comboio era então muito periclitante, pelo que eles faziam uma cuidada coreografia para não provocarem “desastres” irrecuperáveis na roupa dos utentes. 

A “segunda série” tinha, aliás, um pormenor “técnico”, nas idas para o Porto. Havia um ponto do percurso para Norte, creio que ali pela Pampilhosa, onde um qualquer intrincado de linhas fazia o comboio abanar mais furiosamente. Víamos então os funcionários pararem o serviço e aguentarem-se no corredor, por uns instantes, com as travessas na mão, num equilíbrio hesitante, até que tudo acalmasse. Era um momento aguardado com sorrisos pelos “connaisseurs”. Sempre admirei aqueles hábeis “jongleurs” da restauração ferroviária, de que agora me lembrei, nestas horas com pouco aqui para fazer, neste Alfa sem alma nem wifi decente.

Tinham mais graça aquelas viagens antigas? Provavelmente não. Nós é que olhávamos com outros olhos aquele “cosmopolitismo” de trazer por casa, a versão lusa do “Expresso do Oriente” a que então tínhamos direito. Ah! E éramos mais novos...

3 comentários:

Anónimo disse...

Até tinham mais graça. Ainda me recordo de meus pais nos enviarem de comboio, em 3ª classe, já que eramos 4 irmãos ainda muito jovens, entre os 7 e 10 anos, entregues à vaga responsabilidade dos "picas bilhetes", em cadeiras de pau (o tipo de cadeira ia mudando de conforto em função da classe, 3ª, 2ª, 1ª), e lá "aterrarmos" na estação do Tua (ou S. Mamede do Tua). Era uma viagem longa, num comboio puxado a uma máquina a carvão. E ali nos divertíamos imenso! Nossos pais, que até podiam pagar por nos colocar numa carruagem melhor, jamais o fizeram porque na opinião deles "isso era para adultos e não para rapaziada nova, com rabos capazes de aguentar mais de 4 ahoras em cima de um banco de pau"! E a verdade era que aguentávamos e era uma diversão. Ali convivíamos com gente que transportava galinhas, um cabrito, gaiolas com pássaros, outras com coelhos, gente que transportava vegetais aos montes, bacalhau, enfim, o que lhes convinha, para além das malas de cada um. Uma festa! Pelo menos para nós, garotada nova!
E através de uma linha de comboio que ao que percebo hoje já não existirá, pelo menos na sua configuração antiga, daqueles tempos. Enfim, tempos idos, mas que ainda recordo com saudade, quer pelo trajecto, belíssimo, quer pela atmosfera e ambiente que se vivia no interior daquelas carruagens. E atravessar a Ponte d. Maria, devagar, muito devagar, sempre a tremer, à saída, ou entrada, do Porto, era um verdadeiro "must"! Bons e divertidos tempos! Pena que...eram em plena Ditadura Salazarista. Mas, para nós, catraios, na altura pouco ou nada nos incomodava. E a chegada à estação de S. Mamede do Tua, lá estava o nosso extraordinário avô, com imensa classe, sempre de chapéu na cabeça, um sorriso meigo nos lábios e um alegria imensa de nos ver de novo. E lá nos ia contando histórias sobre a região até chegarmos a casa. Era um tipo engraçado e que tinha uma garagem lá em casa, ao fundo do jardim, com duas portas: uma para entrar com o carro, outra para sair, pois nunca conseguiu fazer uma "marcha-atrás". Genial! E patusquíssimo!Enfim, tempos que já lá vão!
Por mim, ainda hoje sinto uma certa nostalgia desses tempos, talvez porque tivemos, eu e meus irmãos, a felicidade de ter uns avós fant+asticos! Não só nossos amigos, mas carinhosos e com enorme sentido de humor!
A) ...

Luís Lavoura disse...

Eu só uma vez jantei num comboio da CP, no Paris-Lisboa ali por alturas do País Vasco. E lembro-me que foi uma categoria de um jantar, bem cozinhado! Mas já foi há muitos anos...

Maria Isabel disse...

Éramos mais novos"
É por isso que hoje temos uma cara fechada, somos pouco pacientes, chatos, pois é, temos mais passado do que futuro, e não gostamos.
Ainda bem, que sinto isso tudo, mas tenho muito sentido de humor. E aproveito tudo para me rir.
Maria Isabel

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...