1980. Fui conduzido através de um longo corredor, de paredes quase imaculadas. Acompanhava-me um guarda, altíssimo, que não disse uma palavra.
À época, na interinidade entre dois embaixadores, tinha a meu cargo a embaixada. Mas, essencialmente, a minha presença por ali era na qualidade de chefe da secção consular da embaixada de Portugal em Oslo. Tratava-se de uma prisão, nos arredores da cidade, onde ia visitar um detido português, que aguardava julgamento.
Nas semanas anteriores, o caso ganhara destaque em todos os jornais, com evidência particular no popular tablóide “Dagbladet”, que dera ao assunto um imensa visibilidade, na primeira página. O nome de Portugal vinha em todos os títulos. Incomodamente.
Se as razões para alguém estar numa prisão comum são, quase por definição, sempre desagradáveis, as que justificavam o encarceramento daquele homem eram particularmente graves: uma tentativa de violação de uma menina de oito anos. Tratava-se de um tripulante de um barco de passageiros que, creio, fazia a ligação entre Oslo e Copenhaga.
O presumível violador fora apanhado em flagrante pelos pais da criança e, por muito pouco, havia-se livrado de uma valente sova dos colegas indignados. Mais tarde, viria a saber-se que já tivera atitudes inconvenientes para com outras crianças, sem que, por razões pouco claras, tivesse sofrido consequências criminais ou sequer disciplinares.
Entrei na sala, onde o homem estava sentado a uma mesa. Não se levantou, estendeu-me a mão e parecia invadido pela maior serenidade do mundo. Parecia estar a fazer-me o favor de me “receber”. Devia rondar os 40 anos. Recordo-me de que vestia uma camisa branca, tinha um olhar neutro e frio, um cabelo preto puxado para trás. Não havia pedido assistência consular e fora eu quem, alertado pelas notícias, pedira para ir vê-lo.
Era, aliás, a primeira vez que eu visitava, como responsável consular, um cidadão português detido. Uma certa arrogância que transparecia da sua cara, somada ao caráter repugnante daquilo de que era acusado, transformavam aquela minha diligência num momento bastante penoso.
Perguntei-lhe se estava bem, se já tinha assistência de um advogado e, ns sequência dessa confirmação, mais para alimentar conversa do que por outra razão, se já tinha alguma ideia sobre a pena que poderia vir a ter. Não respondeu e mudou a conversa, com uma calma que começava a irritar-me. Nem por um instante tentou sugerir que as imputações que sobre ele impendiam eram falsas, ou mesmo exageradas. “O advogado disse-me que há a possibilidade de, dentro de semanas, poder vir a aguardar julgamento em liberdade, porque se metem as férias judiciais e não podem manter-me muito tempo em prisão preventiva”, disse-me, com um ligeiro esgar sorridente.
Eu não tinha quaisquer informações sobre o processo. A Noruega dispunha um sistema judicial a toda a prova, ele já tinha uma defesa em curso, pelo que não se colocava o problema do Estado português providenciar alguma assistência judicial supletiva. Inquiri, assim, se necessitava de alguma coisa da embaixada. Respondeu-me: “O problema é que não tenho o meu passaporte”. Fiquei surpreendido: “Mas para que é que agora quer o passaporte?”. Num tom impávido: “Se me deixam em liberdade provisória, “piro-me” logo. Atravessar a fronteira para a Suécia é “canja” e o passaporte dava-me jeito depois, para depois chegar a Portugal“.
Pela minha cara, deve ter percebido de que não podia contar com qualquer “cumplicidade”. E, de repente, temeu: “Não vai contar isto aos noruegueses, pois não?”. E ainda tentou: “A embaixada passa-me um novo passaporte?”. Nesse tempo, os passaportes eram feitos à mão, com alguma discricionariedade e facilidade, mas com regras. Para emitir uma segunda via, era necessário que tivesse havido um extravio, comunicado à polícia.
A cena estava a ser demasiado pesada para mim. Ali estava alguém que claramente sabia a gravidade do que tinha feito, que tentava colar-me à sua esperteza. Levantei-me e disse: “Claro que não vou dizer nada desta conversa aos noruegueses. Mas, se quer a minha opinião, acho que eles não o vão soltar. E mesmo que isso acontecesse, eu não lhe ia emitir um segundo passaporte”.
Foi então que, pela primeira vez, mostrou uma expressão facial diferente. Levantou-se também. Era mais baixo do que parecia, quando sentado. Fixou-me com um olhar duro: “Eu tenho os meus direitos!”.
Por um instante, “passei-me”, reconheço: “A miúda também tinha! O tribunal tratará dos seus direitos. Passe bem!”. Voltei-lhe as costas, bati na porta, o guarda grandalhão abriu e fui-me embora. Não me senti nada bem com a cena. A emoção toldara-me aquela que tinha sido uma das minhas primeiras ações de natureza consular.
Semanas depois, telefonaram-me do tribunal. Tinham recebido uma segunda queixa sobre o homem, um caso similar. Pela conversa, fiquei com a sensação de que houvera ali um certo artificialismo para que um novo tempo de prisão preventiva se iniciasse, evitando a saída do homem da cadeia.
Poucos meses mais tarde, o tribunal decidiu, num julgamento em que esteve presente um representante da embaixada: uma condenação pesada. Devo confessar que não tive a menor pena “patriótica”.
6 comentários:
Sem penas, mas com pena pesada... Deixe lá, as prisões norueguesas são provavelmente decentes, o que quer dizer que este sujeito teve apenas que pagar por lá com anos de vida, e nada mais do que isso... Que é o que se espera de um sistema prisional justo, aliás...
Que petisco! Espero que esse psicopata continue preso algures..
Parabéns pela excelente narrativa...podia ser perfeitamente o início de um bom trilei. Mas também permite estabelecer analogia com o que se vive atualmente em Portugal e a arrogância de um certo grupo de portugueses que sem o menor civismo entende “quarentena” com férias....inacreditável! Isto associado à forma absolutamente desastrosa e suicidaria com que o governo gere o assunto, temo que cheguemos muito em breve a um número de vítimas que tardiamente e já sem remédio vamos todos lamentar.
O comentador Luís Lavoura denota, na generalidade dos seus comentários, uma linguagem, um tom e uma atitude que, lamento dizer, se quadram cada vez menos com o ambiente que quero manter neste MEU espaço. Por essa razão, o filtro aplicável ao que envia vai ter de ser cada vez mais apertado. Com sinceridade, espero que possa vir a adotar um registo sereno, não agressivo nem cáustico.
A questão é esta: se semelhantes crimes são tão repugnantes, porque razão se bloqueia qualquer discussão sobre o agravamento de penas para estes casos? E porque razão não se entende que estes doentes nunca poderão ser curados, logo, a liberdade deles significa, sempre, uma pena para outros?
O Luis Lavoura está em todo o lado. Como se usava dizer "o homem não se enxerga".
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