Era um dia de intenso calor. Tinha acabado de desembarcar na estação da Régua, vindo de Vila Real, pela velha linha do Corgo. Aguardava o comboio que, a chegar de Barca d'Alva, me levaria ao Porto. Aí apanharia a ligação para Lisboa, onde deveria chegar depois de uma viagem de cerca de 10 horas.
Era assim o Portugal de 1970. "A rádio está a anunciar que morreu o Salazar", disse-me um amigo, que tinha ido tentar apanhar, na tabacaria, o "Diário de Lisboa" do dia anterior, que não tinha chegado a Vila Real. Embora sob censura, a leitura do “Lisboa” era então, para muitos de nós, "obrigatória".
Recordo-me bem de não ter tido qualquer sentimento particular perante a notícia. Salazar tinha morrido politicamente quase dois anos antes, em Setembro de 1968, quando adoecera e fora substituído por Marcelo Caetano. Desde então, a decadência física do antigo ditador havia sido exposta algumas vezes à mórbida curiosidade pública, com estranhas aparições cuja mediatização quase que parecia destinada a sublinhar o deperecimento político do próprio salazarismo. Alguns, mais bem informados, conheciam o episódio caricato da entrevista ao "L'Aurore", que revelava a existência de um cenário de ilusão em S. Bento, que dava a Salazar a ideia de que ainda era chefe do governo, com a participação teatral de alguns ministros. Agora, a tragicomédia chegara ao fim.
No que aos portugueses verdadeiramente interessava, o “caetanismo” mostrara, nesse período, ter atingido o seu limite da credibilidade, em termos de abertura política. Uma crise académica séria atravessara o país. As eleições de 1969 haviam constituído uma enorme farsa, a política colonial mostrava-se, definitivamente, como o eixo cristalizador de um regime em que a repressão e a censura se acentuavam de novo. Sá Carneiro e a "ala liberal" iam perdendo as esperanças nas virtudes da propalada "primavera política".
Menos de quatro anos depois daquele dia da morte física de Salazar, os militares de 1974, diferentes dos que, depois de 1926, o haviam erigido em ditador, iriam pôr termo ao que restava do salazarismo.
Desde então, Salazar transformou-se numa simples curiosidade histórica. Revindicado hoje por patéticos saudosistas, talvez venha a propósito lembrar que a única vez que se sujeitou a sufrágio - e foi eleito - havia sido durante a vilipendiada Primeira República.
Hoje, o “Expresso” anuncia que vão fazer um museu a Salazar, em Santa Comba Dão, perto do Vimieiro, onde nasceu. Que isso faça bom proveito aos tristes admiradores de um regime que censurou, perseguiu, prendeu, torturou e matou, durante décadas, para quantos não sabem ou não querem saber. As “fake news” bem podem tentar transformá-lo num santo, mas a verdade ninguém a pode apagar da História.
Alguém poder hoje fazer um mostruário público sobre essa sinistra personagem é um gesto de tolerância que a democracia se pode dar ao luxo de permitir.
15 comentários:
« essa sinistra personagem é um gesto de tolerância que a democracia se pode dar ao luxo de permitir.”
Não existe nenhum museu Franco, nem Mussolini, nem Hitler ….
"...dos que, em 1926, o haviam erigido em ditador ...". Errado, em 1926 ninguém (nenhum dos participantes naquela revolução) o erigiu como ditador. Nem sequer pensaram nele.
Ditador ?
E que nome dá a Hitler , Mussolini , Pinochet ... etc? que por acaso não têm nenhum Museu ...
Tanta raiva ! E porquê ridicularizar as pessoas que têm respeito por Salazar ? Afinal a democracia não existe também para que haja tolerância ?
O fascismo é uma ideologia de construção de poder que, numa sociedade em crise, mobiliza todas as energias para operar um renascimento que envolve uma regeneração tanto da cultura política, como da cultura social e ética que a sustenta.
Um ideal de purga, limpeza, recomeço e redenção legitimaria o uso da violência para extrair do organismo nacional e/ou racial, que se almeja construir, as partes não sadias.
Pouco a pouco, aparecem sereias que pretendem banalizar o fascismo, como uma ferida cicatrizada na memória.
O fascismo pretende demonstrar que é modernista, que se inscreve na Modernidade, propondo um caminho alternativo para ela, compondo imagens de restauração com a proposta de um novo futuro a partir de um recomeço.
Ele é, pois, nos seus próprios termos, revolucionário, mobiliza energias para uma nova utopia, faz convergir, com foco em classes dominantes e médias que se sentem ameaçados, interesses muito diferentes.
O “nacionalismo” fascista pode se expressar de diferentes formas, inclusive em uma expressão pan-européia contra os imigrantes.
Como o racismo, que pode se adaptar em diferentes contextos neo -coloniais ou coloniais.
O fascismo explora todas as vias e pode aparecer como promotor de uma “religião política”, laica mas não necessariamente em oposição a fundamentalismos religiosos. O crescimento do fascismo nos EUA, por exemplo, alimenta-se e cruza ideais da supremacia branca com fundamentalismos neopetencostistas ou evangelistas.
Podem defender muito bem a necessidade da higienização do Estado, da sociedade, da família . Quem não estaria de acordo que é preciso uma limpeza geral nas instituições?
Neoliberalismo e fascismo, têm as suas zonas de convergência numa dinâmica, ao mesmo tempo, anti-democrática, anti-republicana e anti-socialista. Se o neoliberalismo se propõe neutralizar a esquerda, num sentido amplo, a través da corrosão da democracia, o fascismo proporia eliminá-la por meio da violência. A ditadura Pinochet foi, de facto, a primeira experiência neoliberal. Os boys de Chicago de certeza que não esperavam tanto sucesso, tão rapidamente.
O neoliberalismo, cria a ambiência para o fascismo: legitimando o discurso do ódio como parte da “liberdade de expressão”, aprofundando dinâmicas de divisão.
O horizonte fascista ganhou agora ares de sombria actualidade. O Museu de Salazar, no Vimieiro, seria um passo experimental para normalizar o fenómeno.
Bem pensado mas sinceramente não sei se concordo com o último parágrafo. Até que ponto devemos ser tolerantes? É preciso não esquecer que se essa é uma das forças da democracia, também é uma das suas fraquezas, foi tolerando os fascismos e elegendo-os democraticamente que aconteceu a Segunda Guerra Mundial.
O Anónimo das 19:43 tem razão. Corrigido. Mas lá que pensaram nele, pensaram. Nos dias subsequentes ao 28 de maio de 1926, foi chamado a Lisboa para falar com Gomes da Costa. Há fotografias
Caro Joaquim Freitas
Em primeiro lugar Salazar não foi fascista, por muito que comunistas e afins o repitam até à exaustão.
Quanto a museus o segundo principal genocida do século XX, Stalin, tem um museu na sua terra natal.
Fascismo ou comunismo vem tudo dar ao mesmo : são extremistas que só fazem mal a quem não segue os ideais por eles impostos .
Agora o que não podem é pôr no mesmo nível um Doutor Salazar e todos os outros personagens , que , como refere o anónimo das 23,09 , levaram a Europa à Segunda Guerra Mundial . Portugal por ser imparcial poupou muitas vidas , incluindo os nossos Pais e Avós ...
E será que ninguém se lembra de relatos escritos ou contados de gente que foi presa e torturada na caça às bruxas pós 25/4 !!!
“ No meio está a virtude “ esta é que é a grande verdade ...
Não se esqueçam de fazer também um idêntico museu a um "façinora" do mesmo jaez........ Vasco Gonçalves!
Que na Geórgia, isto é na URSS, os comunistas, que regiam o país, tenham criado um museu para celebrar aquele que os dirigiu até à vitória final contra o nazismo em Berlim, não vejo onde está o escândalo. Era um dos deles.
Mas Salazar dirigiu os Portugueses para a miséria e o obscurantismo, que, como muito bem escreveu o autor do blogue, foi “um regime que censurou, perseguiu, prendeu, torturou e matou, durante décadas”. Se não era um ditador …
E se Salazar não foi fascista, o Senhor Embaixador publicou um foto, há momentos, que ilustra o seu herói.
O braço estendido diz-lhe alguma coisa?
Oh Vieira,
Comparar Vasco Gonçalves a Salazar é de mentecapto. O Gonçalves, que me lembre, nunca criou uma Pide, impôs uma Ditadura, limitou Direitos e Liberdades, nunca perseguiu ou enviou para a prisão opositores (e eram muitos, entre os quais eu próprio), etc, etc.
Isto há cada uma para branquear o bandido de Santa Comba!
Rosarinho G.
Caro Freitas
Calculo que não tenha lido o que Salazar escreveu, pois deve causar-lhe alergia, mas seria útil que o fizesse para ver se na sua obra encontra algo da doutrina fascista.
Claro que não vai encontrar, mas convém aos amigos dos “amanhãs que cantam”, que continue a sua mistificação de Salazar como fascista. Enfim.
O que é importante é que Portugal é uma democracia onde todas as vozes se podem ouvir, ao contrário e outros países onde as divergências são asfixiadas.
Caro Anónimo das 29 de Julho de 2019 às 04:35
Salazar deu-lhe insónias…aparentemente!
O Senhor escreve: “O que é importante é que Portugal é uma democracia onde todas as vozes se podem ouvir, ao contrário e outros países onde as divergências são asfixiadas.”
Exactamente. Mas não graças a Salazar. O que diria do Senhor, aquele oponente que se chamava Humberto Delgado e as centenas de compatriotas assassinados em Caxias, em Peniche, no Tarrafal e tantas outras “estações de férias” do Estado Novo…
Não acha que é insultante para a memória destes patriotas de escrever o que escreveu?
Salazar fascista? Basta ler o Estatuto do Trabalho Nacional, de Setembro de 1933, inspirado na Carta del Lavoro de Mussolini, de 1927.
Salazar fascista? Em 1945, Salazar anunciou eleições legislativas para Novembro daquele ano, abertas a todos quantos quisessem desafiar a lista da União Nacional. Meses antes, chegara a dizer que “as eleições seriam livres como as da livre Inglaterra”. Republicanos e comunistas uniram-se no Movimento de Unidade Democrática, mas a Pide passou a prender os membros do movimento, que acabou por se retirar.
Salazar fascista? Nas eleições para presidente da República, de Fevereiro de 1949. A oposição, na qual o PCP tinha grande influência, lançou o nome de Norton de Mattos, um general de tendências moderadas. Comícios entusiásticos mostraram que o antissalazarismo ganhava a opinião pública. Mas, ainda uma vez, para a oposição tudo se complicou e Norton de Matos retirou a candidatura. Era jovem e acompanhava o meu Pai nos comicios e recordo o fervor e a esperança suscitada.
Salazar fascista? Estava claro que as eleições, mesmo em condições anormais, tinham-se convertido num problema para o salazarismo. Nas de 1958, outro general, Humberto Delgado, salazarista histórico que passara para a oposição, manteve a sua candidatura até ao fim, e só a fraude eleitoral permitiu a vitória do almirante Américo Tomás.
A vida do general Delgado e da sua secretária brasileira, Arajaryr Campos, terminou de forma trágica, em Fevereiro de 1965, quando ambos foram assassinados em território espanhol, ao tentar cruzar a fronteira para Portugal. As mortes, foram perpetradas por agentes da Pide com a autorização de Salazar.
A forma dissimulada mas significativa, como ele apoiou o general Franco durante a Guerra Civil Espanhola, demonstrou que pertencia à mesma família fascista. Se Mussolini, foi ditador depois de um passeio até Roma, e Hitler foi chamado por Hindenburg, Franco foi pela via sangrenta da guerra civil, da qual saiu vitorioso. E Salazar associou-se a esta imagem. Para sempre.
Mais uma vez - como de costume -, FSC dá guarida ao fanatismo ideológico do Joaquim de Freitas e às suas desculpas de facínoras como Estaline e, basicamente, todos os que perfilhem a monumental miséria que foi o comunismo.
É por estas e por outras que, depois, há quem ache que há um défice democrático em quem passa a vida a gritar aos quatro ventos o seu amor pela... democracia. É uma coisa de tons, já se vê.
Cá está ele de novo, o anónimo corajoso de 30 de Julho de 2019 às 21:26…Não digeriu os meus comentários precedentes! Como o meu nome foi citado espero que o Senhor Embaixador permitirá que responda a este saudosista do fascismo, para quem, todo oponente ao fascismo é estalinista.
Mesmo se considero que Estaline, apesar da sua crueldade e excessos condenàveis, defendeu a sua Pátria e bem, pois que o nazismo foi vencido. Mas evidentemente, um adepto de Salazar não era este desfecho que sonhava. E vive ainda hoje nessa nostalgia da grande nação ariana governando o mundo.
Como Salazar, que dizia “ que quem não é por nós, é contra nós" e no seu entendimento portanto comunista…e por conseguinte candidato ao Tarrafal…o anónimo, no termo que utiliza no seu comentário -“ dar guarida” - significa já uma inculpação: o autor do blogue é culpado de ser democrata e acolher os fascistas e os outros no seu blogue…
O ideal é que fosse só ele a tecer aqui elogios, e só elogios, ao algoz que governou o nosso país durante dezenas de anos. Onde a miséria era visível por toda a parte, num país perfeitamente anti comunista, benzido pelo Cardeal Cerejeira…
Quase um século depois, o anónimo ainda vive, mal, a presença de comunistas no governo, mesmo se este nome hoje não quer dizer mais nada em relação à revolução de Outubro 1917, e que a URSS acabou com a queda do Muro de Berlim.
Pobre anónimo que não vê sequer que a miséria no mundo não acabou com o comunismo, porque são 25 000 pessoas que morrem por dia no mundo, a fome sendo um flagelo que mata mais na história da humanidade que as piores epidemias de peste ou de cólera.
A fome é a mais terrível arma de destruição maciça que submeteu os homens. Estamos a falar de quase um bilião de pessoas que sofrem da fome. Num mundo submetido ao sistema económico vigente, o do Capitalismo triunfante.
Enviar um comentário