Sempre achei bastante frágil a ideia de que os Estados Unidos da América vivem um período de inexorável declínio, no sentido de que a ascensão da China e a multi-polaridade têm nas mãos os destinos do mundo.
É uma evidência que o poder mundial tem vindo a ficar progressivamente mais disperso, mas gostava que me respondessem, com sinceridade, a esta pergunta: salvo se alguém anunciasse que ia mandar executar um celerado ataque nuclear, quem, senão um presidente americano, tem a antecipada garantia de conseguir deixar o resto do mundo atarantado, por virtude de decisões que assume em nome do seu país?
Se os líderes chinês, russo ou indiano, para não falar de qualquer europeu, decidirem falar grosso em termos de comércio internacional, alguém se assusta e entra em quase pânico, como aconteceu depois de Trump ter dito o que disse?
O poder não é outra coisa senão isso: a capacidade de conseguir constranger os outros. E essa pressão só é eficaz porque se sabe que, por detrás das palavras, há formas poderosas de a levar à prática.
Por uma conjugação até agora única de circunstâncias, os EUA reunem em si, desde há já muitos anos, o controlo de vários e importantes eixos de poder. Acresce que, com formas diferentes, a América instalou modelos de dependência um pouco por todo o mundo, que lhe servem de fator potenciador dos seus interesses. Até aos dias de hoje, nenhum outro país conjuga dimensões militares, económicas e diplomáticas tão poderosas no seu conjunto. Isto pode vir a alterar-se? Talvez, mas confesso que, por ora, não consigo prever o cenário de concretização desse futuro.
Um poder benévolo?
É sabido que os EUA tiveram um papel determinante no desenho da ordem mundial instituída desde a Segunda Guerra mundial. Essa ordem pressupunha a observância de um conjunto de regras que os EUA, curiosamente, muitas vezes se eximiam a cumprir. Porquê? Porque a América se arrogava uma excecionalidade que fazia com que o normativo internacional só fosse "enforced" quando ela deixava. Vejam-se, como elucidativo exemplo, as resoluções do Conselho de Segurança da ONU sobre Israel.
Dir-se-á que, durante a Guerra Fria, do "outro lado do espelho", ou do "muro", as coisas se passavam de forma similar. É e não é verdade: o poder condicionadoramericano, dentro da ordem multilateral, nunca teve um rival de nível equivalente, tanto mais que, com mais ou menos relutância, o mundo ocidental, sob influência ou tutela americana, foi aceitando essa liderança, às vezes vergando-se simplesmente à sua inevitabilidade. Quando, depois da implosão da União Soviética, a América passou a "hiperpotência", esse desequilíbrio acentuou-se ainda mais.
Não obstante esta preeminência, o mundo ocidental foiconstatando que, em certos ciclos políticos, mais democráticos do que republicanos, a América se coibia, algumas vezes, na demonstração arrogante da sua força, dando sinais de que tinha em alguma atenção a vontade dos outros, os interesses dos aliados e amigos, de ocasião ou não. Porém, invariavelmente, isso só acontecia, em conjunturas em que interesses essenciais dos EUA não estavam em jogo. Em muitas outras ocasiões, a palavra americana esteve sempre longe de ser suave. É que osEUA dão-se sempre ao luxo de não esconderem, ou de darem por entendido pelos outros, o seu poderio, sempre que desejam afirmar a sua vontade.
Os primeiro tempos de Trump
Tudo o que ficou escrito dizia respeito a outra América. Achegada ao poder de Trump conduz-nos para um tempo novo na atitude dos Estados Unidos na ordem internacional. A atitude de alguma condescendência com os interesses alheios deixou de ser praticada.
No seu primeiro mandato tinha sido evidente, na ordem externa, a introdução de uma agenda já fortemente "revisionista", embora um pouco caótica na sua coerência global. Veio a perceber-se, o novo presidente havia sido forçado a acomodar na sua administração personalidades que ainda estavam marcadas por uma agenda republicana mais tradicional. Isso fez com que as tensões no seio do seu primeiro governo fossem evidentes, com uma resultante final que acabou por revelar-se algo confusa.
Mesmo correndo o risco da caricatura, ficava a sensação de que Trump tinha então como prioridade desmontar a herança dos oito anos de Obama e confrontar virtualmente a agenda que Hillary Clinton tinha anunciado que se iria seguir. Era uma outra América que aí vinha.
O essencial dessa mensagem externa, parte dela anunciada para consumo interno, foi-se clarificando: tensão deliberada com a China, uma estranha propensão para um diálogo privilegiado com a Rússia, abandono dos compromissos económicos e ambientais multilaterais, assumido protecionismo radical, egoísmo transacional no terreno securitário externo, descaso flagrante com os aliados, em especial europeus, e com o sistema multilateral em geral, obsessão com as fronteiras, desengajamento de presença militar em cenários de tensão ou conflito. A isto se somou um endurecimento com Cuba e Venezuela, um estender de mão em jeito de ultimato à Coreia do Norte. E algo mais.
A agenda pró-israelita, que nos EUA tem uma conhecida relevância interna transpartidária, ficou evidente no "upgrading" das relações bilaterais (mudança da embaixada para Jerusalem e reconhecimento da ocupação dos Golan), no endurecer da atitude face ao Irão e na saída do acordo nuclear, na promoção dos "acordos de Abraão"para atenuar bilateralmente as dificuldades israelitas no mundo árabe, no assumido viés anti-islâmico, com introdução de restrições no acesso de cidadãos dessa origem aos EUA, bem como no abandono do Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Trump fazia o que tinha prometido: colocar, desbragadamente, a "America first", assim respondendo aos preconceitos, medos e obsessões do eleitorado que o elegera.
O Trump II
Há dias, alguém qualificou, de forma simples mas certeira, a postura externa de Trump neste segundo mandato: imperialista e expansionista. Sem surpresas, muitas das linhas que tinham estado presentes na gestão externa anterior surgem plasmadas neste novo tempo. Contudo, háalgumas "novidades" que permitem pensar que a nova equipa de Trump, já desembaraçada do empecilho de algum pensamento mais tradicional, trouxe para a Casa Branca, sem peias nem limites de qualquer moralidade, uma agenda nacionalista hiper-egoísta, com umaafirmação extrema de poder, só limitado pela sua própria vontade.
O segundo mandato de Trump veio encontrar a Rússia já em disputa armada por territórios ucranianos, o que é um cenário verdadeiramente novo face ao antecedente. Trump não se acanhou perante o desafio: em dois dias, segundo disse, resolveria o assunto, acabaria com a guerra, guerraessa que, se ele tivesse estado no lugar de Joe Biden, nunca teria sido iniciada. Nisto, há que reconhecer, pode ter alguma razão, por muito que isso possa ser desagradável aos ouvidos de alguns. A Rússia poderia ter obtido de Trump, sem um tiro, algo que ainda está longe de ter conseguido, depois de três anos de luta.
Mas a guerra estava lá. E o facilitismo quase primário com que Trump tende a abordar, em geral, os temas internacionais começa a confrontar-se, neste caso particular, com um choque de realidade na complexidade do pantanoso tema da Ucrânia. À hora em que este texto está a ser escrito, ainda não é muito claro como Trump conseguirá ou não salvar a face da América neste dossiê. Uma coisa é certa: perca ou ganhe, sairá sempre "vitorioso", porque o desaire não faz parte da suanarrativa.
As surpresas
Trump II trouxe, na área externa, quatro iniciativas verdadeiramente inesperadas.
Desde logo, a afirmação do desejo de afirmar a soberania americana sobre a Gronelândia, território sobre tutela dinamarquesa onde os EUA já operavam militarmente, em aparente ambiente pacífico. O discurso agressivo e ofensivo de Trump sobre Copenhaga é demonstrativo do grau de consideração que os países europeus lhe oferecem.
Num segundo tema, os EUA assumem uma espécie de nova Doutrina Monroe, ao afirmarem o desejo de reverter o poder do Panamá sobre o canal que o atravessa, cujo estatuto parecia ter sido eternamente resolvido. A palavra de Washington, pelos vistos, já não vale o que valia.
Surpresa imensa está a ser, também, o modo como o Canadá tem vindo a ser tratado por Trump. Não é apenas a imposição de fortes direitos aduaneiros, de que já falaremos. Trata-se do alimentar de um discurso desrespeitoso e agressivo para com um dos países que, ao longo da História, tem mostrado cultivar uma relação departicular proximidade com a América, um aliado fidelíssimo e sem falhas. Ao insinuar que o Canadá deveria passar a ser o 51º estado americano, que se trata de uma entidade internacional que não tem razão de existir com soberania própria, Trump assume uma deriva quase imperial.
A quarta surpresa, que aqui distingo porque é paradigmática de um mundo trumpiano que tem a virtualidade de se situar em limiares quase oníricos, é a ideia de transformar Gaza num grande projeto imobiliário, naturalmente considerando como questão menor o destino dos quase três milhões de pessoas que lá vivem ou viviam - porque Israel, com a complacência cúmplice da América e perante a cobardia do mundo, tem vindo a atenuar o peso demográfico no território. Quando os nazis fizeram o que fizeram aos judeus, isso fazia parte da "solução final" do problema judaico. Agora, com a vítima anterior a ser osujeito da nova oração genocida, ainda não há nome para qualificar, para a História, esta ignomínia.
O comércio
Trump é um homem de negócios. Olha o mundo como um espaço de transações. Vive obcecado com o lucro, com as vantagens. Já no seu primeiro mandato tinha ficado claro que considerava que os EUA, em lugar de terem sido os grandes ganhadores de um mundo globalizado, feito à imagem e semelhança da ideologia que a América tinha espalhado e promovido como a filosofia capitalista salvífica, era, afinal, um perdedor da História. É estranho que a potência que fez grande parte da sua riqueza global nesse registo doutrinário se revolte contra si mesma. Porquê? Por ter sido eleito, em grande parte, por uma América que pagou o preço da "destruição criativa" que está na própria essência do capitalismo, como Shumpetersempre alertou ser o mal indispensável à bondade e sobrevivência do sistema. Afinal, Joseph Siglitz deve estar a rir-se, a ver Trump associar-se, um quarto de século depois do seu livro clássico, ao "descontentes" da globalização.
Ainda não passou tempo suficiente para percebermos se Trump brincou demasiado com o fogo ao ter incendiado os mercados com os seus brutais anúncios tarifários. Claro que há um limite de impactos que, mais cedo ou mais tarde, ele terá de digerir e acomodar. Mas também é evidente que o peso dos EUA acabará por favorecer o seu "bullying" e garantir-lhe ganhos no reequilíbrio dealgumas balanças comerciais bilaterais.
Mas como terminará a tensão com a China, cuja rigidez política lhe permite levar muito mais longe um "bluff" a que as verdadeiras economias de mercado não de podem dar ao luxo?
E agora?
Vale a pena pensar - por muito que pensar nisso possaangustiar muita gente - que Trump só agora está a começar este seu segundo mandato. Passaram apenas 100 dias!
Claro que a sua ação vai acabar por ser moderada pelo inevitável impacto de algumas realidades exteriores, a que não poderá escapar, mesmo que muito contra a sua vontade. É óbvio que tudo indica que as eleições intercalares de novembro de 2026 acabarão por "atar-lhe" as mãos, de alguma forma, no plano legislativo - e isso pode justificar, de certo modo, este afã decisório neste ano de aturdimento e surpresa.
Contudo, todas essas "boas notícias" poderão pouco significar se Donald Trump, neste entretanto, vier a mudar a realidade institucional dos EUA, se conseguir levar à prática o desmantelamento ou a fragilização do aparelho constitucional, derrubando os "checks-and-balances" em torno dos quais foi consolidada a democracia americana.
Confesso que não desisto de ser otimista e de pensar, como cantava o meu saudoso amigo Fausto, que "atrás dos tempos vêm tempos e outros tempos hão-de vir". Ou, para ser mais simples, que há mais vida para além de Trump. Mas haverá?
(Artigo publicado na revista "Visão", em 1 de maio de 2025. Agora, duas semanas passadas sobre a sua publicação, sem risco de prejudicar as vendas da "Visão", já posso republicar o texto aqui.)