terça-feira, fevereiro 09, 2021

Os estaleiros


Desde que, em criança, passei a ir de férias, todos os anos, para a terra do meu pai, Viana do Castelo, os “estaleiros” faziam parte do meu cenário da cidade. Rara era a pessoa conhecida que não tinha familiares que ali trabalhavam. Quando se atravessava o campo da Senhora da Agonia, para as tardes na Praia Norte, vinham dos estaleiros barulhos metálicos imponentes, com sirenes que soavam estranhas ao miúdo que eu então era. Os estaleiros eram parte integrante da personalidade da cidade, como a ponte Eiffel ou Santa Luzia. Para mim, que vinha de uma Vila Real quase sem indústria, aquilo e a vizinha doca comercial eram um luxo que dava a Viana um ar de grande urbe.

Veio o 25 de abril e surgiram muitas notícias dos estaleiros, falava-se de navios vendidos à Rússia. Depois, com o correr do tempo, os jornais trouxeram relatos sobre os altos e baixos daquela fábrica de barcos. Há uma década, viu-se Viana na rua, mobilizada pela polémica que envolveu a privatização dos estaleiros, um assunto que se transformou num caso nacional. Agora, de quando em vez, os estaleiros ainda voltam à baila.

Há pouco tempo, vi que a Câmara Municipal de Viana publicou um livro intitulado “O Estaleiro da saudade - gerações, cultura e desfecho”. Como expectável, é uma memória nostálgica assente no outro tempo dos estaleiros. É uma peça editorial bonita e bem documentada, que acolhe memórias e imagens, para mim inéditas, de outros tempos da empresa, com notas humanas das alegrias e tristezas de quem nela trabalhou. Curiosamente, o livro não se fecha apenas no passado, soube abrir a porta àquilo que aquela empresa hoje é, embora não escondendo nunca para que lado o seu coração pende.

Li, com gosto, “O Estaleiro da saudade”. Aprendi bastante sobre uma realidade que, embora sempre ali estivesse, por décadas, à frente dos nossos olhos, arrastava, por detrás das suas paredes, muitas vidas e muitas emoções.

segunda-feira, fevereiro 08, 2021

Cassandra

Há por aí pessoas tão catastrofistas e com alma de Cassandra que passam a imagem de que estariam dispostas a sacrificar alguns anos da sua vida só para terem o “prazer” de poderem testemunhar, dando assim razão a si mesmas, na lógica do “eu bem dizia!”, o “fim do mundo” que, dia após dia, insistem em prever.

Conselho para reuniões

À volta de uma mesa de reuniões, é sempre bom lembrar a máxima de Pierre Desproges: "Il vaut mieux se taire et risquer de passer pour un con, plutôt que l'ouvrir et ne laisser aucun doute à ce sujet."

“Super Bowl”


Nunca me passou pela cabeça ver um “Super Bowl”. Mas há muitos milhões de doidos por aquilo! Há anos, em Nova Iorque, numa conversa, caí na asneira de dizer que, nessa noite, pensava ir ao cinema. Dois americanos olharam para mim com um ar que nunca mais esqueci...

Confiança

O cúmulo da confiança é um amigo, tão sportinguista como eu, que ontem, depois do empate do Porto, comentava, em tom já sério: “Alguém tem de começar a mexer-se para se garantir autorização para podermos comemorar no Marquês. Se os comunistas fizeram a Festa do Avante...”

Verde

Se este ano não ganhamos o campeonato, então não sei quando é que o voltamos a ganhar!

domingo, fevereiro 07, 2021

António Barreto

António Barreto, um homem inteligente e culto, desenhou, ao longo dos últimos anos, uma laboriosa e sofisticada narrativa sobre o país. A necessidade de ter de a republicar todas as semanas, renovando-a semanticamente, tem-se revelado uma tarefa pesada e nem sempre com sucesso.

“Observare”


No programa desta semana, sob a coordenação de Filipe Caetano, Carlos Gaspar, Luis Tomé e eu analisamos a ratificação (e não a retificação, como, por lapso, surge no título do vídeo) pelos EUA da extensão, por cinco anos, de acordo nuclear com a Rússia, bem com a situação política após a ação dos militares no Myanmar.

No meu caso, referi a censura à internet na Índia e um apelo, num artigo de Merkel, Macron, Guterres e outros subscritores publicado na imprensa internacional, para um esforço multilateral assente na luta comum contra a pandemia.

Pode ver aqui.

Sergey Lavrov


Nas Nações Unidas, em Nova Iorque, existe uma sala imensa, conhecida por Indonesian Lounge. É um espaço aberto, com cadeirões e cadeiras, a toda a volta. Serve para encontros breves, entre políticos ou diplomatas: consultas, apresentação de uma candidatura, transmissão de uma mensagem. Passei por lá horas, em “rapidinhas” diplomáticas de toda a natureza. O mesmo aconteceu, com toda a certeza, com quem me antecedeu e sucedeu.

Quando cheguei a Nova Iorque, em março de 2001, vai agora fazer 20 anos, e como é costumeiro, fui cumprimentar colegas embaixadores (além da imensa “máquina” onusina). Em regra, para um país como Portugal, visitam-se os representantes da União Europeia, os de língua portuguesa, os dos países membros permanentes do Conselho de Segurança, um número importante de latino-americanos, asiáticos e africanos com relações fortes connosco e uma dúzia de “key players”. Mas eu decidi mudar um pouco o registo: fui visitar os representantes de todos os países. Todos? Todos. Os então 190! Posso estar enganado, mas acho que nunca ninguém fez isso! Nem imaginam a trabalheira que aquilo me deu! Mas, um dia, explicarei por que assim procedi.

Um dos primeiros embaixadores que quis visitar, logo que cheguei a Nova Iorque, foi o russo, Sergey Lavrov, desde há 17 anos ministro dos Negócios Estrangeiros do seu país.

Com os EUA, a Rússia é a “chave” das Nações Unidas. Claro que há a China e, naturalmente, o Reino Unido e a França - os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, os chamados P5, no fundo, o diretório que manda na “casa” e sem o acordo dos quais nada se faz.

Em particular à época, Moscovo e Washington determinavam fortemente o dia a dia da organização. Os EUA viviam então as primeiras semanas da administração George W. Bush e, após a saída do embaixador de Bill Clinton, Richard Hallbrook, tinham apenas um encarregado de negócios (substituto do embaixador). Ora Portugal, com a Rússia e os EUA, compunha então a “troika” de acompanhamento do “processo de paz” em Angola. 

Lavrov foi muito simpático. Respondendo pessoalmente ao pedido de audiência que tinha sido feito por secretárias, telefonou-me a convidar para jantar em sua casa, na semana seguinte, com amigos. Mas também percebeu que não era bem isso que eu pretendia. “Estás livre, amanhã à tarde, ás 15 horas, para falarmos, no Indonesian Lounge, Francisco”. Claro que sim. Estranhei um pouco o “Francisco” e não terei retorquido “Claro, Sergey!”

E lá falamos, no dia a seguir, no tal espaço, os 20 minutos da praxe, comigo a deixar-lhe todas as mensagens políticas que queria. Sergey Lavrov foi extremamente simpático, como o seria durante todo o tempo em que coincidimos em Nova Iorque. Ele já tinha já tido um relacionamento exemplar com o meu antecessor, António Monteiro. Era um “vieux routier” e um excelente diplomata. Ficámos amigos.

A certa altura, com um sorriso aberto, foi pedagógico para o “newcomer” que eu era. E disse: “Posso dar-te um conselho, de quem já anda aqui há muito tempo?” (Lavrov chegou sete anos antes de mim e acabaria o seu posto dois anos depois de eu sair).

Apontou então para uma esquina que existe, na entrada do Indonesian Lounge, que é um espaço aberto, que não tem propriamente uma porta de entrada: “Cuidado com aquela esquina!”

Fiquei perplexo! Que diabo de especial tinha aquela esquina? Ele explicou: “Nos próximos tempos, vais regressar a esta sala centenas de vezes. Tens de contornar aquela esquina o dobro dessas vezes, na vinda e na ida. De repente, à entrada ou à saída, depararás com um colega nosso - somos quase 200! -, de um qualquer país, africano ou asiático. Vais ter apenas dois ou três segundos para te recordares se ele é o representante do Niger ou da Nigéria. Se lhe disseres “bonjour” e for o da Nigéria, ele nunca mais te perdoará. Se for o do Niger e lhe disseres “good morning”, esquece para sempre o apoio do país dele em qualquer eleição futura! Basta lembrares-te de como te sentirias se te confundissem com o embaixador de Espanha!” Como ele tinha razão! Além disso, Lavrov cuidava em saber os nomes de cada um de nós. Sempre sem falhas.

Ontem, ao vê-lo dar um “baile” de diplomacia agressiva, e até arrogante, ao Alto-Representante da União Europeia, Josep Borrell, “reencontrei” o excelente (e feroz) diplomata russo que é Sergey Lavrov.

sábado, fevereiro 06, 2021

“Observare”


Daqui a pouco, na TVI 24, de sábado para domingo, depois do noticiário da meia-noite, estarei no “Observare”, com Carlos Gaspar e Luís Tomé, sob a coordenação de Filipe Caetano, a falar dos acordos de armamento entre os EUA e a Rússia e da turbulência política em Myanmar.

Centrices

A ideia de que António Lobo Xavier seria capaz de utilizar o seu estatuto profissional no BPI para influenciar a política de crédito do banco (e este vergar-se ao “golpe”) em desfavor do único partido da sua vida é uma das maiores imbecilidades da temporada.

Livros

Em algumas incursões que (quando posso ou podia) faço por livrarias, penso sempre (mas esqueço logo) esta ideia: mas, afinal, lá por casa, não há ainda uma imensidão de livros para (por) ler? E reajo logo a tão desconfortável ideia.

CDS

A sobrevivência do CDS, com um património democrático que soube resistir ao revanchismo bombista mais reacionário, bem como a várias e contraditórias manobras de apropriação cesarista, com derivas pelo liberalismo paroquial, seria um bom sinal para o sistema político. Acreditem!

Ainda a vacina

Ter ou não ter vacina a tempo pode ser uma questão de vida ou de morte. Mas é precisamente nas questões essenciais, mesmo nas de vida ou de morte, que se mede o estofo ético das pessoas. Quem não espera pelo momento que lhe compete na vacinação é, além de um cobarde, um canalha.

O raio do vírus

No início, ouvíamos de falar de casos de desconhecidos. Depois, de nomes mais sonantes. Seguiram-se conhecidos, alguns amigos. Vieram, em seguida, os mortos próximos. “Está ventilado!”. Ou o alívio: ”Saiu dos cuidados intensivos!”. Se não morrermos da pandemia, morremos de susto.

Sem adjetivos

Pacheco Pereira explica no “Público”, com meridiana clareza, que a democracia não se “adjetiva”. Vulgarizou-se o uso laudatório da “democracia liberal”, zurzindo, em contraponto, o conceito de “democracia iliberal”. Ou há democracia ou não há democracia!

Contrição

Quando o Sporting foi buscar ao Braga, por um preço brutal, o treinador Rúben Amorim, pareceu-me um exagero.

Agora, vendo o trabalho feito (nada está ganho, claro!) e, em particular, a sua atitude serena (nunca lhe ouvi a voz, porque não vejo nem um segundo de “futebol falado”), dou a mão à palmatória.

O “ministro”


É uma vergonha para a União Europeia colocar-se na posição do seu “ministro dos Negócios Estrangeiros” ter de ouvir isto. E calar-se.

Não se vai a Moscovo mandar ”bitaites” (embora cheios de razão) sobre política interna russa sem ter capacidade de reagir com ações concretas.

Fados e pandemias

Ver na televisão programas filmados em casas de fados, com pessoas encostadas umas às outras, faz pensar: vai ser possível repetir aquilo no futuro, ali como nas caves de jazz e em outros locais com muita gente e pouco espaço? Vai haver alguma vacina contra o medo?

Biden

Vale a pena refletir na razão pela qual Joe Biden, no seu muito pensado primeiro discurso sobre política externa, não teve uma única palavra para a União Europeia - embora falasse do Reino Unido, da França e da Alemanha. E, ao dizer isto, não estou a criticar a União Europeia.

Nós e os outros

Não é agradável, para Portugal, surgir aos olhos dos outros em estado de necessidade, nesta pandemia. Mas é muito agradável assistir a mostras concretas de solidariedade, sem politiquices. Devemos tomar muito boa nota disso.

sexta-feira, fevereiro 05, 2021

Expliquem lá!

Este blogue tem uma média diária regular de leitores que segue, quase sempre, acima dos 1500. Até aqui, tudo bem: é um número muito lisonjeiro. Mas agora expliquem-me lá, se souberem, por que diabo, de ontem para hoje, passou largamente os cinco mil leitores! É que eu não escrevi nada que pudesse dar origem a este “alvoroço”! Ele há cada mistério!

Margens

Na ”segunda circular”, vistas bem as coisas, há uma imensa distância entre ambos os lados.

CDS

Com a quantidade de pessoas que, nos últimos dias, se têm demitido da direção do CDS, aquilo devia ser uma montanha de gente! (Que me perdoem a graça os amigos que tenho naquela estimável agremiação).

Os maluquinhos do “não é por acaso que...”

Não há nada de mais descredibilizante para um boato do que ouvir um amigo dizer: “Nem eu, que acredito em todas as teorias da conspiração, caio nessa!”

Pronto, fui à rua!

 


... com máscara, claro! 

quinta-feira, fevereiro 04, 2021

Presidência portuguesa

 


Coitados!

Há, por aí, um “jornal” zangado com a vida. Clica-se qualquer coisa, da alinhada opinião às notícias comentadas, e é um “vale de lágrimas”: tudo está mal, há um “finis patriae” ao virar da esquina. Diz-se que têm uma edição otimista, mas é longe para se ir comprar: parece que é em Massamá.

As palavras, o seu sentido e as vacinas

Perguntaram-me, de um jornal, se achava que António Costa devia suscitar na Europa, dada a sua qualidade de primeiro-ministro do país que tem a presidência, a possibilidade de virem a ser adquiridas as vacinas russa e chinesa. Achei a ideia muito bizarra. Tentei explicar que, depois da decisão política do Conselho Europeu de colocar em comum as aquisições, foi à Comissão Europeia, instituição executiva da União, que competiu negociar as vacinas e até financiar a investigação pelos laboratórios. Qualquer nova iniciativa no domínio do alargamento das compras seria assim da sua responsabilidade. Mas um Estado membro poderia suscitar isso? Por decisão “política”? António Costa, por exemplo, como “presidente” europeu? Sublinhei que António Costa chefiava o país que detinha a presidência europeia, mas que ele não era o presidente do Conselho Europeu. Achei estranha a insistência neste possível “papel” de Costa. Falei das dúvidas que, por muito tempo, tinham rodeado a fiabilidade da vacinas russa e chinesa, que parecia que se estavam a esbater. E que, de facto, parecia haver agora mais gente a pensar comprá-las. Mas a Comissão Europeia saberia, melhor do que ninguém, se isso era compatível com os compromissos que tinha com os outros laboratórios. Mas Costa poderia ter essa iniciativa? insistiu o meu interlocutor. Claro que, se assim entendesse, Costa teria ”autoridade” para isso. Para não ter contrariar, em absoluto, um raciocínio que ia por um caminho um pouco absurdo, lá disse que, naturalmente, se a questão eventualmente se colocasse à mesa do Conselho, se uma qualquer outra vacina (eu disse “da Rússia, da China ou até de Marte...”) pudesse resolver os problema da Europa, seria “criminoso” não aproveitar essa oportunidade, por mera questão “política”. Pronto e a coisa saiu assim! Nunca mais aprendo!



quarta-feira, fevereiro 03, 2021

Bastonários

Sou de um tempo, não muito longínquo, em que, como regra geral, quando se ouvia um bastonário de uma determinada ordem profissional, havia a quase certeza de estarmos perante uma pessoa equilibrada e sensata, um “espelho” do melhor da imagem da profissão. A regra passou a exceção.

Unidade

Um governo de ”unidade nacional”, além de democraticamente pouco saudável, poderia ter um efeito político muito negativo: polarizaria nos partidos de protesto, à esquerda e à direita, o descontentamento e mal-estar social que o agravamento da crise económica inevitavelmente irá criar no país nos próximos meses.

Amigos da onça

De um benfiquista amigo, para este sportinguista: “Parabéns! Chegar ao fim da primeira metade do campeonato nesta posição é obra! É como chegar ao topo da serra da Estrela. A seguir, é sempre a descer...”

Não percebi bem o que ele quis dizer com aquilo...

Francisco Ramos

A saída de Francisco Ramos da coordenação da “task force” das vacinas, por virtude de outro assunto, não nos deve fazer esquecer que ele é, em Portugal, uma das mais sérias e competentes personalidades na área da administração da saúde, com uma vida dedicada ao serviço público

Ajuda

No início da pandemia, a Itália recebeu muita ajuda internacional. 

Será que os piadéticos transalpinos - políticos e jornalistas - também por lá se entretinham a fazer graçolas nas redes sociais sobre a origem nacional dessa ajuda, apenas para chicana política interna contra o seu governo?

Mortos e mortos

Uma comparação que está na moda fazer é entre o número de mortos da pandemia e as vítimas da guerra colonial.

Note-se, porém, que as estatísticas sobre essas baixas são sempre “eurocêntricas”, referem-se ao “lado” português, não contando os guerrilheiros adversários mortos.

Draghi

Mario Draghi vai ser nomeado primeiro-ministro de Itália.

Draghi tinha um belo curriculum.

SEF

A acreditar no resumo das declarações dos agentes do SEF, sobre a morte do cidadão ucraniano, fica a dúvida sobre se, afinal, esses polícias não terão sido vítimas inocentes de uma feroz agressão, em que o verdadeiro culpado do incidente, no final, se mata a si próprio, com o único objetivo de deixar gente pacífica em maus lençóis e com a sua reputação beliscada. É que há quem tenha visto porcos a voar.

À flor da pele


Vivemos um tempo de tensões à flor da pele. O país responsável está visivelmente assustado com a pandemia, as pessoas vêem a sua vida subvertida, num horizonte que não conseguem limitar, e, não vale a pena esconder, paira uma erosão na confiança num poder público que, fazendo seguramente o melhor que sabe e pode, oferece um saldo efetivo de realidade pouco palpável. Morreu já muita gente, muita mais do que, há poucos meses, muito pensavam ser possível.

Politicamente, sente-se que as pessoas estão hoje acantonadas em trincheiras. As redes sociais, esses novos megafones da democracia, são disso um exemplo claro.

Os adeptos do governo, confortados pelas sondagens, entendem que seria impossível fazer-se melhor, que há razões externas e comportamentos sociais internos que ajudam a explicar o que se está a passar. Louvam as autoridades, a dedicação dos governantes, denunciam a falta de solidariedade subjacente às atitudes críticas, num momento coletivo desta gravidade, olham a comunicação social como abutres que exploram insegurança das pessoas, contribuindo para o desânimo coletivo.

Os críticos da governação apontam o lugar objetivo de Portugal no “ranking” triste da tragédia, sublinham as contradições e os vai-e-vem, denunciam a falta de rigor na questão das vacinas e dos seus fura-filas. E notam o caos em muitos hospitais, o que não foi feito e teria sido prometido. E porque o unanimismo, na sua perspetiva, nada resolve, acham que é democraticamente legítimo, e releva da transparência exigível, expor o que está mal e chamar à responsabilidade quem tem obrigação de responder pelo estado das coisas.

Até ver, a bissetriz possível, na terra de ninguém entre estas duas frentes, parece chamar-se Marcelo Rebelo de Sousa. Podemos imaginar que hoje, mais do que nunca, se sinta tentado a ser um verdadeiro provedor dos portugueses. Provavelmente, também ele se exaspera com as insuficiências evitáveis em alguns setores, mas igualmente se irrita com quem cavalga os percalços oficiais para alimentar a chicana política. Conhecendo, como bem deve conhecer, os erros cometidos, mas também as deficiências que pouco dependem das vontades, tendo ele próprio pisado o pé em ramo verde por palavras a mais, é dele que o país parece esperar alguma neutralidade, na abordagem, com a serenidade e equanimidade possíveis, do modo como a pandemia está a ser gerida. E o país parece entender que o seu papel tem sido positivo. Pelos vistos, seis em cada dez portugueses também terão achado isso.

terça-feira, fevereiro 02, 2021

Saudades do fumo


Tenho saudades de ir ao Brazen Head, em Dublin, quando o pub vivia cheio de fumo de tabaco. Como foi criado em 1198, alimentei a ideia de que, com um pouco de sorte, o dom Afonso Henriques quase podia ter passado por lá, numa aventura de turismo céltico. No Café Club, em Vila Real, que eu atravessava, fugidio e preguiçoso, para evitar dar a volta ao quarteirão, havia uma núvem de tabaco que quase escondia os cajados dos feirantes. Já para não falar da sala de dominó do Excelsior ou do Imperial do Lima, na noite de 24 de dezembro, também lá por Vila Real. Ou da sala de jogo por detrás dos bilhares no Montecarlo, ao Saldanha, em Lisboa, ou da cave com balcão do Montarroio, na Sampaio Bruno, no Porto, cidade onde a zona do strip da Candeia também pedia meças. Ou da zona do balcão do recém inaugurado Viana Mar, ou do Bar Oceano, lá por Viana do Castelo. Não guardei nenhuma imagem do Ronnie Scott’s, onde se ouvia bom jazz ou outro assim-assim, em Londres, sem estarmos todos a bufar uns para cima dos outros, com uma onda de fumo a encher o espaço. Havia também uma cave, em Luanda, abaixo do Trópico, cheia de “garinas” (connosco, os da embaixada, a portarmo-nos sempre bem, para que conste) com um ar quase tão espesso e irrespirável como o das noites da boîte do Méridien de Brazaville, onde histórias passadas (com outros, claro) não são para contar aqui. Já tive saudades (nos últimos anos, já não tinha, confesso) do branco fumarento do Procópio, nos tempos do Juvenal, quando a ASAE não nos poupava os pulmões, épocas em que ainda era “facilitado” tabaco ao balcão, em noites de carência extrema do Nuno Brederode. Para sempre, guardo na memória olfativa o cheiro do Blue Note, em Nova Iorque, onde o tabaco era “moderado” por alguma “green grass tea”. Curiosamente, o mesmo cheiro que havia no De Karpershoek, em Amsterdam e num restaurante abaixo de qualquer classificação, em Oslo, no final dos anos 70, local cujo nome esqueci (às vezes também tenho esse direito, caramba!), em que se passeava entre as mesas um tipo a tocar viola que, mal nos via, entoava o “¿ Ai Portugal por qué te quiero tanto?” 

Tenho saudades de todos aqueles fumos. Sei lá bem porquê! E, já agora, esclareço: eu não fumo nem nunca fumei!

Uma dúzia deles!


O avião chegou atrasado a Paris, nesse final de tarde do dia 2 de fevereiro de 2009. Os serviços do protocolo francês têm como regra receber na “sala VIP” os novos embaixadores. Naquele dia, no “Salão 500” de Orly, que eu bem conhecia das várias vezes que por ali tinha passado, em outras encarnações, até com a presença da simpática funcionária asiática que conduzia o carro dos aviões até lá, estava à minha espera o pessoal diplomático e técnico da embaixada e do consulado-geral, com quem eu iria trabalhar nos anos seguintes. Alguns conhecia, outros não. De todos fiquei amigo, diga-se.

Paris ia ser o meu último posto diplomático. Era interessante fazer parte de uma carreira na qual, no dia em que nela se entrava, se sabia a data exata de saída (hoje em dia, alguma coisa mudou nisso). Dali a quatro anos, quase dia por dia, sabia que regressaria a Lisboa.

Senti então pena, recordo-me, de que o meu pai, que tanto gostava da França e de Paris, já não pudesse ir lá visitar-me. Mas ele já se tinha ido “embora”, menos de dois anos antes.

Seguimos para a residência. Havia um jantar à nossa espera. Achei sempre muito curiosa a primeira refeição à chegada a uma nova embaixada: servem-nos o que entendem, o que há por lá resta, com o vinho simpaticamente deixado pelo antecessor. Só no dia seguinte é que vamos “às compras” e se começa a “orientar a casa”, como eu ouvia em criança.

Numa sala junto ao quarto, vi que havia um computador. Imaginei que houvesse. Ainda antes da meia-noite, abri-o, vi o meu correio e fiz aquilo que tinha pensado no avião: criei um blogue. Já tinha experiência disso e um blogue faz-se num minuto.

Em Brasília, de onde eu saíra algum tempo antes, tinha inventado um blogue “oficioso”. Era, creio, a primeira vez que uma embaixada fazia isso. Foi um sucesso: chegou a ter uma média de nove mil leitores diários. Escrevi-o, sozinho, durante dois anos. Depois, passei-o ao conselheiro de imprensa, que o continuou.

Em Paris, decidi que ia assinar um novo blogue com o meu nome. Seria um modelo diferente. Os textos iriam ser personalizados. Quanto ao estilo, logo se veria. Tinha intenção de falar das coisas da vida. Iria também contar algumas histórias da carreira, poucas. Enganei-me, afinal foram muitas, algumas centenas. Pensava ir escrever a um ritmo irregular, talvez de dois em dois dias. Por isso, subtitulei o blogue de “notas pouco diárias”. Enganei-me, também: iria escrever todos os dias. Todos? Todos. 4380 dias! Quase 8700 peças, quase dois posts por dia!

Dei ao blogue o nome uma parte do título de um filme de Jean-Luc Godard, que tinha muito a ver com Paris: “Deux ou trois choses que je sais d’elle”. Há tempos, o meu amigo Zé Ferreira Fernandes, mestre da escrita e “parisiense” a sério, lembrou-me cenas da fita, que eu já esquecera. E ali percebi melhor a razão subliminar da minha escolha.

Este blogue chega hoje, assim, à “dúzia” de anos. Se acharem graça, continuem a ler. Se se cansarem, não sejam piedosos. Amigos, amigos, blogues à parte!

Escrito em 14 de novembro!

 


segunda-feira, fevereiro 01, 2021

 


1 de fevereiro de 1908 - Uma vítima prematura da República



(Retirado do blogue “Memória de Saa” (www.memoria-de-saa.blogspot.com

”Entre os mistérios que atravessam os tempos conta-se o destino, por vezes trágico, de figuras que marcaram indelevelmente a sua época mas que a História, por acidentes inesperados, optou por não acolher no seu seio com a dignidade merecida. Augusto Maria de Saa está entre essas personalidades, para quem o destino foi cruel e a memória dos homens sumamente ingrata.

Augusto Maria de Saa teve a existência que hoje cada vez melhor conhecemos, nesse fresco renascentista que foi a sua vida de eleição. Da literatura à pintura, da filologia à música, da medicina à arte das viagens, da antropologia à ciência náutica, da agricultura científica à enologia, da astrologia às ciências ocultas, da física à matemática, por quase tudo passou o nosso Augusto, em todas essas áreas deixou a marca da sua inteligência e perspicácia. E tudo isto, imagine o leitor, para vir a morrer, de forma inglória, sobre a pedra fria da rua do Arsenal, na tarde fatídica de 1 de Fevereiro de 1908.

Este nosso relato, amigo leitor, poder-lhe-á parecer errático e incoerente, mas, depois de abordarmos, no texto anterior, as origens do nosso Augusto, talvez valha a pena, antes de detalharmos a sua existência, saber um pouco mais sobre as condições dramáticas da sua desaparição do mundo dos vivos. “Só a essência serena da morte é digna da graça efémera de uma vida”, diria, premonitório, esse grande clássico do nosso Augusto que foi Crabtree (*)

O apelo da família fizera Augusto regressar do Brasil a Portugal em finais de 1907, para ver, pela última vez, pelo Natal, a sua querida irmã Ephygenia, a esvair-se da vida, numa tísica sem remissão, no palacete à Junqueira, construído com os ouros do seu trabalho no Brasil. Tinha 54 anos, o nosso Augusto, e eles começavam a pesar-lhe, confessava. Nesse primeiro dia de Fevereiro, destroçado pelo espectáculo da crescente tragédia doméstica, Augusto toma uma caleche e decide apanhar o ar fresco do Terreiro do Paço, beber uma aguardente no Marinho da Arcada, que tanto alimentava as suas saudades nas tardes quentes das terras além do Atlântico. A essa hora, o Martinho regorgitava de caras que o nosso Augusto não reconhecia, figurões dos ministérios a fazer horas da preguiça, algumas personagens jovens com ar circunspecto, chapéu negro na mão e papéis no sovaco, graves nas suas bigodaças, em cujos murmúrios se pressentiam conspirações e incontáveis intrigas. A República rondava, a vida política sentia-se espessa.

Como que por contraponto, a certa altura, a notícia espalha-se: Suas Magestades estão a chegar de barca ao Terreiro do Paço, regressadas de Vila Viçosa!

O nosso Augusto vê, num segundo, o destino colocar-lhe perto, pela primeira vez, essas figuras que a História quisera símbolos do seu Portugal. No Brasil, o Império já se fora, a República estava vibrante, Augusto tinha ido com os ventos do tempo, mas a memória do Portugal eterno estava toda nessas personagens que breve iriam atracar ao Cais das Colunas. Segue o grupo que abandona o Martinho sob impulso da notícia e cruza, solitário, o Terreiro. Vai colocar-se, com alguns outros, na esquina com o Arsenal, na perspectiva poder gozar a passagem das Majestades por algum tempo mais. Do poste onde se encostara, via ao longe o Rossio, onde prometera encontrar-se ao fim da tarde com gente amiga, antes de uma jantarada no Grémio.

Do lado do cais, o movimento adensa-se. Suas Majestades avançam na carruagem, escoltada pelos guardas a cavalo. Alvoroçado com esse inesperado encontro com a História, Augusto logo descortina o recorte avantajado do Rei, nove anos mais novo do que ele próprio. Ao lado, a figura elegante da Rainha D. Amélia, acenando com estudada displicência. De costas na carruagem, uma figura jovem agita a mão em direcção de alguns populares que aplaudem. Deve ser o Príncipe D. Luiz Filipe, pensa. Eram os seus Reis, estava a vê-los pela primeira vez, com um orgulho patriótico de expatriado a agitá-lo por dentro.

Quase sem tempo para se descobrir, para saudar a sua Realeza, o nosso Augusto é impelido a abeirar-se da rua, por uma pequena multidão que largou o conforto da arcada para ver, ainda mais de perto, os passantes Braganças. É esse escasso grupo de pessoas, quiçá movidas mais pela curiosidade que pelo amor à Coroa, que agora faz quase alas à carruagem, roçadas pelos cavalos da Guarda, no curvar lento da saída do Terreiro.

O que se passa, de seguida, é tempo de segundos. Do lado contrário da rua, Augusto ouve o que lhe parece, distintamente, serem dois tiros, seguidos de um alvoroço surdo de gente. O Rei parece-lhe cair prostrado, a cabeça pendente sobre o encosto. D. Amélia soergue-se, lívida, do banco. Mais tiros, vindos sabe-se lá de onde, cruzam a esquina da praça, misturados com gritos e imprecações. Augusto vê surgir lesta, ao seu lado, uma figura esguia que avança com um revólver na mão, que aponta certeiro à figura de D. Luiz Filipe, que se deixa cair na base da carruagem. O homem continua, não desiste, aproxima-se mais das carruagem e D. Amélia, com a coragem da raiva, sacode-lhe o braço assassino com um ramo de flores. O braço desvia-se, o assassino desequilibra-se e do fuzil sai-lhe, enviezado, um último tiro, antes que um chanfalho da Guarda Real o atire ao solo. Esse tiro, o tiro errado, é o tiro certeiro que atravessa a nuca do nosso Augusto Maria de Saa.

A rua passa a um inferno de sangue e gritos. As Reais figuras são rapidamente recolhidas no Arsenal, o Buíça e o Costa – os regicidas que a História acolheria nas suas negras páginas – são trucidados, nos minutos seguintes, pela raiva impotente da Guarda, com a ajuda de populares enfurecidos. Ninguém se preocupa com o corpo exangue de Augusto Maria de Saa, com a face na pedra suja, a sobrecasaca cinza manchada pelo vermelho do sangue português que o Brasil alimentara. Na confusão trágica dessa tarde, o país perdera o Rei e o Príncipe herdeiro, mas a Monarquia continuava, pelo menos por ora. O que acabara, de vez, era o destino de uma figura ímpar que a História iria esquecer por muito tempo: Augusto Maria de Saa.”

[*] Crabtree, Joseph William, “The new global philosophy and the impact of the Cornwall school dissent”, London, Barley & Peacock, third ed, 1887, pg. 623

“Thriller”


Se se fizerem bem as contas, cá por casa, 70% do tempo passado em frente da televisão (e eu não coloquei um sujeito nesta oração, note-se) é para ver o 24 Kitchen e o Fox Crime. Neste último, se alguém se atrasa um minuto, é certo e sabido que já “perdeu” o primeiro morto. Se acaso houvesse no mundo aldeias como aquela que é pastoreada pelo padre Brown, já estavam no Guiness e a CMTV tinha lá um correspondente!

Para que é que estou a dizer isto? Para que fique bem claro que, hoje à noite, entre as nove e trinta e as 11 e picos, vou ver “thrillers” desses, em sequência: não atendo a telemóvel nem olho os alertas no iPad. Mais: vou ver filmes até às 11 e meia, porque, se o Benfica estiver a perder, é óbvio que vão prolongar o jogo até conseguirem um empate.

Depois dessa hora, sem som (era só o que faltava ouvir gente a falar de futebol!), vou ver os golos do Sporting. “Olha lá! E se o jogo te trocar as voltas e o Sporting perder?” Nesse caso, só vejo o resumo amanhã e assisto a mais um filme. Ser sportinguista dá-nos um mundo interminável de opções.

Marcelo: venham mais cinco!*


O “Diário de Noticias” pediu ontem a 22 pessoas, um muito curto depoimento sobre o que elas esperam do próximo mandato de Marcelo Rebelo de Sousa.

Aqui fica o meu:

Nenhum governo sairia indemne de um trauma nacional como o que foi provocado pelos efeitos económico-sociais desta pandemia. Nesse contexto, um Presidente da República relegitimado por eleições tem excelentes condições para ser visto pela opinião pública como um fator de “acalmação” política. Marcelo Rebelo de Sousa pode vir a ficar na nossa História contemporânea como um presidente que soube fugir à tentação de sair de Belém arbitrando em favor da família política de onde é oriundo sem, para tal, necessitar de ser simpático ou acomodatício com os socialistas. Necessita apenas de ser percecionado pelos portugueses como alguém que, em cada momento, fez aquilo que o país sentiu como sendo o que era necessário.”

* Espero que os “velhoquistas” me não desiludam e mostrem a sua indignação pela “infelicidade” do título que escolhi.

domingo, janeiro 31, 2021

Uma entrevista de vida


Quem nisso tiver interesse, pode assistir a uma conversa, talvez mais do que a uma entrevista, onde se fala da vida e do papel que a diplomacia nela teve.

Pode ver, clicando aqui.

“Observare”


O último programa “Observare”, na TVI 24, onde se fala da Venezuela, do Brasil, das Primaveras Árabes e de alguns outros temas, pode ser visto clicando aqui.

Amândio Silva


Foi há menos de oito dias. Tinha no meu telefone nota de um telefonema do Amândio Silva. Como, muito pouco tempo antes, numa conversa com o Carlos Cristo, eu tinha perguntado se o Amândio não tinha ainda escrito as suas memórias - um relato, por mínimo que fosse, sobre a sua extraordinária vida - pensei que o circuito se tivesse “fechado” e ele me viesse falar disso mesmo. Foi nessa convicção que lhe liguei de volta!

Mas não! O telefonema era para me transmitir um convite para estar presente num debate ... que iria ter lugar em 10 julho próximo! Uma iniciativa organizada pelo seu querido “Mares Navegados”, um belo grupo de gente com farta memória democrática, para cujas publicações o Amândio já me tinha desafiado por várias vezes, ao longo dos últimos anos. Sem sucesso, porque a minha vida, feliz ou infelizmente, é o que é.

Depois do detalhe sobre o objeto da conversa, perguntei-lhe pela sua saúde. Senti-o hesitante, vago, como se fosse tema que não lhe interessava abordar. Respeitei e não insisti. Horas depois, relatei o episódio ao Carlos Cristo, seu grande amigo. E, comungando na pena de sentirmos o Amândio bastante “em baixo”, mudámos de conversa, porque a falta de saúde daqueles que estimamos é o pior assunto que se pode abordar.

Conheci o Amândio Silva no Brasil, numa visita que me fez na embaixada, depois da minha chegada, estimulado por amigos comuns. E amigos ficámos. Eu tinha o seu nome registado desde há muito, da História, da coragem da LUAR, do belo assalto ao avião da Tap entre Casablanca e Lisboa, de tantas outras saudáveis e corajosas aventuras contra a ditadura. O Amândio Silva fazia parte da minha memória admirativa dos combatentes pela liberdade. Pela nossa liberdade.

Pode dizer-se que o Brasil, que o tinha recolhido em tempos convulsos, nunca verdadeiramente tinha abandonado o Amândio. Ficara-lhe na fala, na fonética e na sintaxe. E na muita e vasta vida que teve por lá, que muitas vezes era evocada por quem o conhecia.

O Amândio era um homem grande, cordial, com um abraço apertado, imenso. Fazia parte de uma geração que, depois do 25 de abril, nunca se fixou bem nas prateleiras ideológicas com que o regime político se institucionalizou. Na luta contra o fascismo, houve alguma, não muita, gente assim. O Amândio era um democrata desalinhado. A LUAR, a sua LUAR, foi também isso mesmo. E ele tinha toda essa graça heterodoxa, a pairar sobre as convições profundas que o alimentavam. Como ele, houve várias outras pessoas que acabaram por ficar numa espécie de terra de ninguém, às vezes sujeita às diatribes dos ortodoxos e, claro, dos caluniadores daqueles que lutaram de armas na mão pela democracia. Tenho, porém, uma coisa por muito segura: ele esteve sempre do lado certo da História!

Passou uma semana sobre aquela minha conversa com o Amândio. Numa limpeza ao meu email, encontrei um texto que ele me tinha mandado, já há cinco anos. Era uma carta a José Pedro Castanheira, sobre uma questão de 1975, sobre a LUAR e a FUR. Um testemunho muito interessante, que não vem agora ao caso.

O texto ali ficou, sobre a minha mesa. Até hoje! Até à data em que soube, pelo Carlos Cristo, que o Amândio tinha morrido Apetece-me dizer um palavrão! Vou resistir. Vou apenas dizer o que agora me apetecia dizer-lhe: Adeus, Amândio! Muito obrigado por tudo quanto fez para que pudéssemos ser livres. E quem nos dera a nós ser tão livres como você sempre conseguiu ser.

O lixo político

As eleições presidenciais tiveram lugar há uma semana.

Acabaram mesmo? Anda-se pelas ruas do país e aí estão cartazes e mais cartazes, a poluir a paisagem, uns em cima dos outros. Ninguém obriga ninguém a retirar esse lixo. Há uma cobardia política coletiva que impede que acabe com esta vergonha!

Em Lisboa, no Marquês, no Saldanha ou no Campo Pequeno, é um mar de placards políticos. Já experimentaram ver se isso acontece na Praça da Concórdia, em Paris, na Trafalgar Square, em Londres, na Times Square, em Nova Iorque, ou junto ás portas de Brandeburgo, em Berlim?

Num livro há semanas publicado, um dirigente de um grupúsculo confessou que passou horas a andar de carro, para tentar encontrar um lugar “vago” para colocar um cartaz do seu bando. E até escreveu que achava a lei atual, na matéria, demasiado permissiva. Acabou por pôr o cartaz numa via rápida, embora com receio manifesto de criar acidentes.

Noutro episódio, contou que encontrou um lugar que achou adequado mas que a empresa de publicidade achou dasagradável ter de cortar vegatação para permitir a implantação do placard. 

Aconteceu-lhe alguma coisa? Foi multado? Qual quê! A selva da propaganda política permite isto! E o conluio objetivo das autoridades faz o resto.

Platitudes


Mais do que o cansaço que sinto nas pessoas, preocupa-me o desânimo. É que a falta de perspetivas não é boa conselheira.

Esta pandemia tem vários tempos e já percebemos que nenhum nos garante o sentido do seguinte. Todos experimentámos a descompressão que o fim do primeiro grande confinamento nos trouxe. O ar livre, as esplanadas, com mais ou menos erros. Os restaurantes abriram, o negócio retomou, adaptámo-nos a um tempo que, longe de ser livre, parecia promissor.

Depois, de súbito, surgiram números pouco sossegantes. Dados contraditórios. E novas preocupações. Fechámo-nos mais. Em muitos casos, (confessem lá!), já com menos uso de gel nas mãos, com menor cuidado com o calçado.

A esperança na vacina que aí vinha dava-nos, contudo, um horizonte, embora sem datas. (Mas a vacina, salvo para alguns poucos, já se percebeu, vai demorar. Há que saber viver sem ela, até ver. Até vir.)

Depois foram as festas, o Natal, o discurso voluntarista sobre o prazer da reunião, com cuidados ao sabor do bom senso de cada um. (Confesso que tive logo um mau pressentimento). E o amigo que nos dizia que a prima chegava ao aeroporto sem lhe perguntarem nada.

Agora, isto. E o presidente já avisou: está para durar. Imagino que alguns digam: ele sabe tanto como nós. Esse enfraquecimento nas certezas que o poder nos comunica também não ajuda muito. Não ajuda nada!

Olho para a cara das pessoas e, por detrás das máscaras, imagino empregos perdidos ou em risco, negócios arruinados ou em desespero, empréstimos com prestações apenas adiadas, miúdos em casa, em casas pequenas, sem condições, com nervos em franja, vontade de sair, o medo à doença, tensões à flor da pele. E, sempre e até ver, a falta de um horizonte, a reforçar o tal desânimo.

Isto não está fácil! (Ora bolas, ele está para aqui a escrever o óbvio! Filosofia barata, como antes se dizia, é o que isto é!). Caramba! Também tenho direito às minhas platitudes, ou não? Durmam bem, se puderem.

sábado, janeiro 30, 2021

“Observare”


Na TVI, depois do jornal da meia noite, de sábado para domingo, poderá ver o ”Observare”, um programa sobre temas internacionais.

Com uma convidada especial, iremos falar da Venezuela, do Brasil, dos 10 anos das primeiras “primaveras” árabes. Eu lembrarei ainda a crise política na Itália e a luta dos democratas na Bielorrúsia.

Chinas

Ninguém de bom senso pode dizer que o sonho chinês de unificação com aquilo que é hoje Taiwan é uma ideia ilegítima. Ninguém com um mínimo de respeito pela democracia deve aceitar que isso possa ser feito sem ter em conta a vontade expressa de quem vive hoje em Taiwan.

Lei eleitoral

Quando não se quer fazer uma coisa, utiliza-se o estafado argumento de que há coisas mais prioritárias para fazer. José Magalhães já denunciou: os partidos vão uma vez mais arrastar os pés para não rever a lei eleitoral: voto da emigração, voto eletrónico, etc. Ninguém reclama?

Salvação?

Miguel Sousa Tavares, que tem muitas vezes razão, desta vez, no “Expresso”, não tem nenhuma: o PR criar um “governo de salvação nacional” é uma péssima ideia. Daria, a quem dele ficasse de fora, à esquerda ou à direita, uma arma demagógica e populista muito perigosa.

sexta-feira, janeiro 29, 2021

Já agora...

Nos Bilhetes de Colares, José Cutileiro falava muito do seu amigo Lowater, o “sábio de Kew”, um liberal que andava cá por Portugal, sem sucesso aparente, a sugerir a privatização dos cemitérios. Estranho muito que nenhum liberal da nova fornada tenha ainda avançado com a ideia.

Vacinas

Devo confessar que estou espantado - para dizer pouco - com a decisão de alargar a vacinação a um tão largo número de cargos públicos. Quem decidiu isso não se deu conta da polémica que ia criar? Não há um mínimo de bom senso?

Lei do mercado

Se Adolfo Mesquita Nunes assumir a liderança do CDS, uma “start-up” política que por aí anda vai entrar em falência rápida.

Decência

Gente que tenho por decente diz esta barbaridade: a única maneira de afastar o PS é, por muito que custe ter de concluir isso, fazer uma aliança com o “diabo”, isto é, com o Chega. É falta de confiança em conseguir vir a conquistar o eleitorado do PS e falta de ética política.

Escumalha

A melhor punição para a escumalha que “fura fila” na hierarquia de aplicação das vacinas é muito simples: assegurar que não tomam a segunda dose. Ficariam depois à espera da sua vez...

Liberais

Na história das ideias, o liberalismo foi uma doutrina política muito estimável e bem útil à fundação das democracias. Desde há uns anos, a sua filosofia foi praticamente capturada pela direita e vive um percurso extremado e radical, muito distante dos seus princípios fundadores.

Governo

Já aqui disse que tenho a profunda convicção de que, nas atuais circunstâncias, ninguém faria melhor à frente do governo do que António Costa. Mas não quero deixar de lamentar que o governo não assuma abertamente onde falhou e por que falhou, pedindo desculpa por isso.

“Pega na lancheira...”

A um comentário “escandalizado” por os deputados terem refeições, quando trabalham fora de horas, perguntei por aqui se se esperava que levassem lancheiras. Caiu o Carmo e a Trindade, como se fosse um insulto a quem usa lancheira! O miserabilismo é a doença infantil da demagogia.

Alertas

Àqueles “alertas” na internet do género “já há um golo na Mata Real”, com a espertalhice de nos quererem obrigar a abrir o link, para poderem contabilizar o clickbait, já tenho uma resposta: desligo a origem dos alertas. Há mais quem nos diga de quem foi o golo.

Eutanásia

Há questões, óbvias para muitos, que para mim o não são. A eutanásia é uma delas. Aceito sem dificuldade o princípio, mas interrogo-me sobre os possíveis abusos. Porque não sei, confio em quem tem obrigação de saber ou toma decisões bem informado. E não mando “bitaites”.

Liberdade, liberdade...

Olhando a comunicação social, fica a ideia de que qualquer titular de uma chefia no SNS se sente como o inalienável direito se queixar dos meios de que dispõe ou das orientações oficiais. Um embaixador ou um cônsul que experimente atuar assim e logo verá que há uns mais iguais do que outros...

Ainda Marcelo

Marcelo Rebelo de Sousa deu-se ao luxo de se “estar nas tintas” para aqueles que, sendo embora do campo político de onde ele era oriundo, estavam imensamente furiosos com o seu primeiro mandato. Não é segredo revelar que foi também por isso que muita gente de esquerda votou nele.

Brasil

Atenção à política brasileira: para Bolsonaro conseguir “emplacar”, como por lá se diz, o seu candidato à presidência da Câmara de Deputados, garantindo alguém que não aceitará o processo do seu “impeachment”, terá de abrir o governo à “velha política”, renegando o prometido.

Venezuela

Há um tema de aberta dissonância entre a UE e os EUA. O novo “MNE” americano, Blinken, anunciou, no Senado, que Washington continua a considerar Juan Guaidó “chefe de Estado“. A Europa já não lhe reconhece esse estatuto e trata-o apenas como “interlocutor privilegiado”. A seguir.

quinta-feira, janeiro 28, 2021

A vida relativa


Eu andava nos últimos anos do liceu. Uma noite, a rádio, no dia seguinte a televisão, no outro dia ainda os jornais do Porto que se liam lá por casa, em Vila Real, trouxeram o relato dramático do desastre. 

As fotografias, no preto e branco da época, mostravam as imagens de uma parte de um comboio que embatera contra uma ponte. Era em Custóias, junto ao Porto. Morreram 90 pessoas, que vinham da Póvoa e de Vila do Conde, depois de um domingo de praia.

Para mim, esse número pareceu-me sempre uma monstruosidade. Quase 100 pessoas! Caramba!

No ano anterior, a cobertura de cimento da estação do Cais do Sodré, em Lisboa, tinha caído, provocando meia centena de mortos. Um número impressionante! Mais ou menos o mesmo número de pessoas (o número exato nunca se soube, ao certo) que, duas décadas depois, não muito longe de Viseu, em Alcafache, viriam a morrer num acidente com o Sud Expresso, a caminho de França.

Trago comigo na cabeça esses números, desde sempre, como uma espécie de “benchmark” negativo das nossas tragédias coletivas. 

Hoje, ao ouvir que, só no dia de ontem, a pandemia levou mais de 300 vidas, não tive nenhum arrepio, só senti imensa pena. Como a gente se habitua às coisas, como tudo se torna tão relativo!

quarta-feira, janeiro 27, 2021

Um outro país que aí existe


Numa destas noites, para escapar ao debate político nas televisões, nas margens das regras de confinamento, saí a pé uns quarteirões. Deparei, numa porta iluminada, com uma loja de produtos de alimentação e de primeira necessidade. Não precisava de nada, mas entrei. Uma cara escura, com uma máscara negra, deu-me um “boa noite” com sotaque. Para justificar a incursão, comprei qualquer coisa, de que, verdadeiramente, não sentia falta. Ao contrário do que costumo fazer com os estrangeiros com quem calha cruzar-me no mundo do comércio, nos restaurantes ou nos Uber, não perguntei de onde era. Sri Lanka ou Bangladesh ou Paquistão seria, com certeza, a resposta. Mas podia ser o Nepal, mas raramente a Índia.

Desde que me conheço, tenho um sentimento muito sincero de simpatia pelos estrangeiros que trabalham entre nós. Sinto-me feliz por ser parte de um país que acolhe gente vinda um pouco de todo o mundo, fazendo nós assim, sem o assumirmos, uma espécie de retribuição pelo facto de, desde há séculos, muitos compatriotas nossos terem andado fora de fronteiras à procura de melhor vida e de aí terem tido, com maior ou menos dificuldade, oportunidades para navegar o seu destino.

Quando por aí me cruzo com caboverdeanos ou angolanos ou santomenses, a esses quase que os não coloco nesse mundo de forasteiros imigrados. São “da casa”, tal como muitos brasileiros. Mas acho imensa graça ao facto de haver chineses um pouco por todo o lado, de ter migrantes do Leste europeu quase confundidos connosco, de poder ter gente do Industão no nosso comércio de bairro. Encontrar gente diversa a partilhar a nossa vida, saber interagir com eles, respeitá-los e dar-lhes oportunidades de mostrar que são bem vindos e que gostamos de os ter por cá torna-nos um país melhor.

Por que é que falo disto agora? Porque Portugal, gostemos ou não de ouvir isto, vai entrar numa crise económica, e que, por muitas “bazucas” que houver, elas só terão efeitos a prazo pelo que, no imediato, virá por aí algum desemprego. E o desemprego que, como é sabido, afeta, em prioridade, os imigrantes, cria pobreza, instabilidade social e criminalidade, não sendo de excluir que alguns estrangeiros possam ser apanhados nessa malha. E como sabemos que a imprensa do crime não tem a menor ética anti-xenofóbica ou anti-racista, sendo mesmo atiçada pela onda nacionalista que agora chega, as pessoas decentes vão ter a obrigação de assumir uma resposta política a uma rejeição dos estrangeiros, que pode estar aí ao virar da esquina.

terça-feira, janeiro 26, 2021

Já é azar!


Conseguir um estacionamento perto do oculista, com uma farmácia em frente, onde “aviei” uma receita que trazia à mão desde ontem, prenunciava um bom início de tarde. Esta Lisboa pandémica, tem uma vaga em cada esquina. Função executada, regresso ao carro. Não abre! Não abre? Não abre! Ó diabo! Será a pilha?

O Smart tem 10 anos, 20 mil quilómetros e faço trinta por uma linha com ele, nesta quarentena, pelos altos e baixos da cidade. A chave tem essa idade e a pilha, imagino, não é, com certeza, mais nova. Comprei-o em Paris, um ano e pouco antes de regressar a Lisboa. Foi num stand junto ao Trocadéro, a um luso-descendente simpático e falador (em francês), satisfeito por vender um carro ao embaixador da terra dos pais. Nunca nos deu problemas. Só hoje!

Ainda bem que a EMEL está de férias! Se o carro não arrancar, fica mesmo ali. Há, lá por casa, outra chave. Se não, avança o reboque do ACP. De qualquer forma, é uma chatice! Agora, lá tenho de ir à vida de Uber ou de táxi. Usar o mínimo possível transportes alheios tem sido a minha regra nesta época. Mas lá terá de ser!

À lisboeta clássica, chega-se um transeunte, pelo passeio. “Então não abre, é? Deve ser da humidade”. Sei lá se é! Só sei que o carro não dá sinal! Vou à porta contrária, forço a fechadura. Nada! Passaram-se, entretanto, cinco minutos, comigo a hesitar sobre o que fazer.

Aproxima-se, entretanto, outro cidadão, este atravessando a Avenida António Augusto de Aguiar: “É capaz de ser da chave!”. Olha o espertalhote! Até aí chegou o Neves! “Com esta deve dar!”, diz o homem, com o que devia ser um sorriso por detrás da máscara: “É que este é o meu carro. O seu deve ser aquele, que está ali, um pouco mais acima, farto de acender as luzes...”

E lá fui para o meu carro.

segunda-feira, janeiro 25, 2021

Rosalina Machado


Era uma mulher-sorriso, uma presença muito agradável, a simpatia em pessoa. Conheci-a, há muitos anos, através de amigos comuns. Era uma figura solidária, uma empresária corajosa. Na última década, encontrámo-nos na tertúlia “Grupo Amizade”, sob o simpático acolhimento do João Flores, que há meses desapareceu. A Rosalina, no dia seguinte ao seu marido Francisco, sai hoje de cena. Muito triste.

Para os próximos anos

Já muita gente disse isso, mas acho que é importante repetir que os fascismos e populismos são respostas erradas para problemas reais. Se não se perceber isto, os Venturas e quejandos continuarão a progredir e a ser vistos como a solução.

Uma leitura (útil) de Paulo Querido

“A recomposição da direita portuguesa não se fica pelo Chega. O partido Iniciativa Liberal tem feito um caminho praticamente simultâneo. 

Ambos nasceram dentro de um período de dois anos a tempo de disputar as eleições de 2019, ambos elegeram um deputado à Assembleia da República, ambos sangram os outros dois partidos da direita, ambos têm crescido em reconhecimento e em intenções de voto. 

O IL tem tido uma subida menos acentuada, refletindo a diferença entre populismo e responsabilidade, bem como a diferença entre grunhice e educação. Por cada eleitor educado que o IL tirou ao CDS, o Chega tirou três eleitores arrivistas e topa-tudo ao PSD. 

Mas o IL é um poço de equívocos. Muitos vêem nele uma movimentação tão ou mais perigosa para a democracia que o Chega. A hiper-valorização do capitalismo enquanto valor é a principal responsável por essa visão redutora. Os valores sociais que estão presentes no IL raramente ou nunca afloram no confronto de argumentos. Os mantras do “mercado”, do “capitalismo” e da meritocracia e a aversão, ódio mesmo, ao setor público conspurcam de tal forma as conversas que o liberalismo de costumes não tem a menor hipótese de comparecer na mesa. 

Socorro-me da Wikipedia para estabelecer que as ideias e partidos que adotam o liberalismo social são considerados de centro. Assim, os liberais sociais encontram-se entre os mais fortes defensores dos direitos humanos e das liberdades civis, embora combinando esta vertente com o apoio a uma economia em que o Estado desempenha essencialmente um papel de regulador e de garante do acesso de todos (independentemente da sua capacidade económica), aos serviços públicos que asseguram os direitos sociais considerados fundamentais. Todavia no liberalismo social, o Estado não tem obrigatoriamente de ser o fornecedor do serviço público, tendo apenas de garantir que todos os cidadãos têm acesso a serviços públicos básicos, independentemente da sua capacidade económica. 

Ora, o Iniciativa Liberal nasceu agrupando liberais puros e impuros. Estes dois grupos têm um passado pouco recomendável: ambos estiveram na fissão do PSD, empurrando o cabide sublimemente formado na juventude do partido para todas as ideologias, Pedro Passos Coelho, para a liderança, encomendando-lhe uma cartilha neo-liberal bem robusta. (A troika diz mata? Meninos do coro! Moles! Nós dizemos esfola! Nem mais um feriado para a corja!)

O neo-liberalismo — a desregulação selvagem somada à destruição de direitos do trabalho e, em países sem tradição liberal como Portugal, à canalização dos recursos públicos para a iniciativa privada — dominou os primeiros passos da geração de liberais impuros, empolgados com o empoderamento que a blogosfera lhes concedeu no início do século.

Os que andaram com Passos ao colo nos media e chegaram ao tristemente célebre governo de desnorte nacional de Passos/Portas, entre ministros, secretários de Estado, gabinetes e comissões de serviço na Imprensa, eram mais thatcheristas e reaganistas que os próprios mãe e pai do neo-liberalismo. Finda, com traumático estrondo, a irrepetível deriva neo-liberal do PSD, os que não se tinham comprometido demasiado na aventura foram à procura de nova saída. Como deviam. 

À sua espera de braços bem abertos estavam os liberais puros — tão puros que não se tinham metido no comboio de assalto ao PSD e à Assembleia da República. Outros nem sequer andaram alguma vez com o crachá da esfinge de Reagan nem com o pullover estampado com o icónico rosto de Thatcher a vermelho e azul. 

Um pouco como o Bloco de Esquerda a reunir tribos com práticas divergentes, o partido Iniciativa Liberal reuniu tribos liberais com passados divergentes: liberais sociais misturados com neo-liberais duros. 

Ora, enquanto na direção (da fundação aos atuais corpos) pontificam os puros, o combate nas ruas tem estado a cargo dos impuros, muitos dos quais não conseguiram despir a tempo o fato-macaco passista. O grosso da imagem do partido resulta da atividade destes nas redes sociais. Os cartazes irreverentes não se sobrepõem, muito menos o discurso ponderado do presidente do partido e deputado à AR — e do candidato à Presidência da República, já agora. 

Não admira, portanto, a confusão. E a desconfiança.”


https://pauloquerido.medium.com/

10 “tweets” da noite eleitoral


* A direita não ganhou esta eleição. O vencedor matemático desta eleição chama-se bloco central e concorreu sob o heterónimo de Marcelo Rebelo de Sousa.

* Muito a sério: é importante que Ana Gomes tenha ficado à frente de André Ventura. (Porque há prioridades em política, não contribuí para isso). Pode ser só simbolismo, mas o simbolismo é significativo em política.

* Marcelo Rebelo de Sousa (31.5.19). ”Há uma forte possibilidade de haver uma crise na direita portuguesa nos próximos anos. (Por isso é que) “o Presidente (...) é importante para equilibrar os poderes”.

* No dia em que Rio sair (o que pode acontecer com um resultado desastroso nas autárquicas), o “passismo” (com o próprio ou alguém por ele) regressará. Nessa altura, a IL desaparecerá e o balão Ventura desinflará. Mas o Chega veio para ficar e será com certeza aliado desse PSD.

* Com sincera pena o digo: o CDS é, nos dias de hoje, uma mera realidade virtual.

* O discurso de Rui Rio é das maiores ficções políticas desta temporada.

* Ventura teve um excelente resultado mas isso não deve ser lido em termos de eleições legislativas. Nele votou muita gente PSD que quis punir não só Rio mas também Marcelo, na certeza que tinha de que este último ganharia. Em legislativas, tudo será diferente.

* O PCP tem hoje um dia histórico, mas não pelas melhores razões.

* Ventura deve fazer parte dos “homens de bem” que o slogan do Chega apregoa. E, como é sabido, as pessoas de bem cumprem sempre a sua palavra. Assim, se ficar atrás de Ana Gomes, o seu partido fica esta noite sem líder, porque vai demitir-se, não é?

* Brinquem, brinquem, mas se não fosse o apoio do CDS, Marcelo estava agora a lutar pelo segundo lugar. Essa é que é essa!

domingo, janeiro 24, 2021

“Observare”


Pode ver aqui o último “Observare”, o programa de relações internacionais da TVI 24.

Dias de presidenciais


Baptista-Bastos tinha, como pergunta sacramental das suas entrevistas, o “onde é que você estava no 25 de Abril?”. Hoje, deu-me para perguntar a mim mesmo onde estava nas datas das nove eleições presidenciais até hoje realizadas em democracia.

Em 1976, estava em Lisboa, já era funcionário diplomático, e a vitória de Eanes não me sossegou nada. Achei que poderia vir aí o pior. O futuro veio a provar que estava errado! Cinco anos depois, votei nele, sem entusiasmo mas com convicção, contra um Soares Carneiro que - esse sim! - me assustou muito. Hoje, tenho grande consideração por Ramalho Eanes, não obstante algumas críticas que nunca escondo.

Com Mário Soares, em 1986, na disputa contra Freitas do Amaral, a noite da sua vitória foi uma imensa alegria. O pessoal de chapelinhos de palha à volta do candidato da AD causava-me forte urticária política. Eu, que nem sequer era então um soarista, senti um grande alívio ao vê-lo entrar em Belém. Não tenho memória de ter tido a menor reação aquando da sua natural reeleição, em 1991, comigo já a viver em Londres.

Verdadeiramente empolgante foi, para mim, a campanha de Jorge Sampaio, em 1995/96. Tinha-me envolvido no lançamento da candidatura, entrara entretanto para o governo e lembro-me bem da grande satisfação que senti nessa noite! Se a vitória de Soares, uma década antes, era quase “existencial” (porque achei, sem razão, que a democracia podia estar a correr riscos), a de Sampaio representava colocar mais uma pedra sobre o cavaquismo, o qual, três meses antes, já tinha sido afastado do poder executivo. Para pessoas como eu, eleger Sampaio era o culminar de um projeto geracional. Mais tarde, a sua reeleição, em 2001, foi um “passeio”. Nem recordo essa noite, num tempo em que eu estava a mudar de vida e de geografia, com problemas familares graves a preocuparem-me muito.

Em 2006, estava embaixador no Brasil quando Cavaco Silva chegou a Belém. Não era uma data feliz, mas era a democracia a ser cumprida. Recordo, nessa tarde, ter encerrado as urnas, na embaixada em Brasília, e ter partido para o Amapá, no extremo norte do país, onde tinha uma cerimónia no dia seguinte. Cheguei lá de madrugada e esqueci o sufrágio. Meses depois, passei por Lisboa, e fui o primeiro embaixador a ser recebido por Cavaco Silva, com quem tive um relacionamento sempre muito correto, durante a sua década em Belém. Mas não esqueço, em 2011, comigo embaixador em Paris, o incrível discurso azedo de Cavaco no CCB, na noite da sua reeleição. Costuma dizer-se que há candidatos que não sabem perder. Cavaco provou, nessa noite, que não sabia ter grandeza na vitória.

Em 2015, não votei em Marcelo Rebelo de Sousa. A minha aposta foi Sampaio da Nóvoa, que fez uma campanha com grande dignidade, tal como a minha amiga Maria de Belém Roseira. Nunca tive dúvidas sobre o sentido de Estado de Marcelo, pelo que, sem hesitação, lhe dei o benefício da dúvida, desde a posse. E ele mereceu em pleno essa minha confiança, por muitas críticas que se possam fazer ao exercício do seu mandato. Por isso, é com satisfação que hoje vejo a sua reeleição.

Carlos Antunes


Não sei exatamente quando conheci o Carlos Antunes. Ele era, para mim, uma figura quase mítica, desde antes do 25 de abril, na oposição violenta contra a ditadura.

Nos “anos da brasa” de 1974/75, não me recordo de nos termos cruzado alguma vez, embora isso pudesse ter acontecido. 

Tenho, assim, quase a certeza de que foi o Nuno Brederode Santos quem nos apresentou, numa noite dos anos 80, na Mesa Dois do Procópio, na primeira das vezes em que o encontrei por lá, quase sempre com a Isabel do Carmo.

A partir daí, nas ocasiões em que por acaso nos juntávamos, belas conversas pela noite dentro fomos tendo! O Carlos era um conversador magnífico, tinha um estilo, ao mesmo tempo empolgado mas com grande serenidade, de contar histórias, sempre com um sorriso a acompanhá-las! E que vida para contar que ele tinha!

Seria também no Procópio, em inícios de 1995, e isso recordo muito bem, que o Carlos se envolveu numa discussão acesa com o Agostinho Roseta, a propósito de um episódio passado em 1975, cujos pormenores não vêm para o caso. Seria essa, aliás, a última noite em que eu vi o Agostinho, um grande amigo, antes dele morrer.

O Carlos e a Isabel passaram a fazer parte da lista de convivas que, desde 2004, eu convocava para o jantar anual da Mesa Dois, uma organização que assegurei por uma década. Lembro-me de, por duas vezes (no “Manel” e no “Vírgula”), o ter deliberadamente colocado ao lado do Caetano da Cunha Reis, testando assim a convivialidade obrigatória do grupo: o Carlos vinha das pontas extremas da esquerda política, o Caetano havia sido fundador da Juventude Centrista. Deram-se lindamente! Tenho prova fotográfica disso! Essa era uma das “artes” da Dois!

Guardo, em especial, um almoço magnífico com o Carlos, organizado pelo António Dias, também com o José Manuel Correia Pinto, no restaurante do Teatro Aberto, numa data do início do século que não consigo precisar. Foram quase três horas memoráveis (o restaurante queria fechar e nós continuávamos vidrados na conversa), com o Carlos, naquele seu jeito suave e envolvente, a contar-nos os seus tempos da clandestinidade, de Bucareste a Paris, de Argel a Moscovo, com histórias passadas em reuniões com Álvaro Cunhal, em países do Leste europeu, quando ainda andava nas águas do PCP. Fiquei com pena de não ter ali um gravador, porque só aquilo tinha dado um livro muito interessante. Depois disso, várias vezes o estimulei a um exercício desse género, com o qual a história da oposição à ditadura e das dissidência do PCP muito ganhariam. Não sei se o fez.

Vi o Carlos, pela última vez, no Chiado, já há uns tempos. Meia hora de conversa na rua do Carmo soube a pouco. Ficámos de marcar, para um dia futuro, mais um almoço. Afinal, não há futuro para esse almoço. Acabo de saber que o meu amigo Carlos Antunes morreu do vírus que por aí anda. Começo a ficar muito chateado com o destino!

B & B

Há bastantes anos que ouvia falar daquele restaurante, situado numa certa capital de distrito, onde não vou muito e onde tinha escassas refe...