segunda-feira, abril 18, 2011

Carta a um diplomata finlandês

Caro Steinbroken

Por estes dias, recordo as noitadas em que nos cruzávamos nos salões dos Maias, no Ramalhete, às Janelas Verdes, nas tertúlias que o José Maria retratou no livro a que deu o nome daquela família.

Lembro-me da generosidade com que você, diplomata finlandês, era recebido naquele cenáculo, onde, com carinho lusitano mas cosmopolita, entre mesas de whist ou numa ronda de bilhar, ou ouvindo-o a si como "barítono plenipotenciário", procurávamos atenuar a sua nórdica solidão.

Muita água passou sob as pontes. Você regressou aos gelos da sua Finlândia, eu por aqui fiquei, com a escassa fortuna que Celorico me deixou.

Há uns anos, caro Steinbroken, você escreveu-me para Lisboa, dizendo do agrado com que vira Portugal apoiar, com entusiasmo, a entrada do seu país na União Europeia. Elogiou o facto de, ao contrário de outros, não termos achado que a "finlandização" havia sido um imperdoável pecado histórico de agnosticismo estratégico, um genérico triste da "realpolitik". E recordar-se-á de eu lhe ter respondido, na volta do correio, que, conhecendo-o a si, nunca o tivera por seguidor do "better red than dead".

Noutra ocasião, você veio bater-me epistolarmente à porta, pedindo que deixasse cair uma palavra nas Necessidades, com vista a evitar que Portugal cedesse a um compreensível egoísmo, por mor dos fundos estruturais, a ponto de poder criar obstáculos aos Estados bálticos, “primos” da Escandinávia, que queriam então aceder à NATO e à União Europeia. A resposta da nossa diplomacia foi, reconheça, soberba: embora o alargamento fosse um passo que tinha em Portugal um dos países mais prejudicados, adoptávamos uma visão solidária da Europa, pelo que entendíamos que um mínimo de respeito histórico nos obrigava a acolher aqueles Estados no nosso seio. Da caixa de vodka que você me mandou, com um cartão catita, a agradecer a diligência, ainda me resta uma botelha.

Pensava partilhá-la consigo, Steinbroken, numa sua próxima vinda a Portugal, à cata de sol e de olho nos corpos morenos, Chiado abaixo. Passaríamos pelo Grémio, jantaríamos no Tavares e iríamos degustar o resto dos álcoois no meu terraço, Tejo à vista. Eu contar-lhe-ia a poética aventura eleitoral do Alencar, a carreira como banqueiro da besta do Dâmaso, o folhetim da venda da “Corneta do Diabo” à Prisa, a colaboração do Cruges com os “Deolinda”, a agitação do Gouvarinho e de outros tantos, nas lides que levam às Cortes.

Mas, agora, o que me chega? Que você foi ouvido, num dos últimos dias, passeando sob as árvores onde o verde já brota, ali na Promenade, no centro de Helsínquia, recém-saído do spa do vizinho Kämp, de braço dado com um alemão, com tiradas muito pouco simpáticas sobre Portugal e os portugueses. E que dizia você? Que, afinal, o compromisso político que a Finlândia havia dado à estabilidade do euro, que servira para a Grécia e para a Irlanda, poderia já não valer para Portugal. Ao seu lado, o alemão ecoava coisas parecidas, quiçá esquecido que o meu país, como todos os outros parceiros europeus, andou anos a pagar elevadas taxas de juro, para liquidar a fatura da reunificação da Alemanha, que hoje é, como sempre foi, o grande beneficiário do mercado interno europeu. 

É triste, caro Steinbroken, é muito triste que a frieza do vosso egoísmo lhes faça esquecer que a solidariedade é uma estrada de dois sentidos. Aqui, por Portugal, estamos a atravessar uma conjuntura difícil. Outras já tivemos, todas ultrapassámos. Mais recentemente, cometemos alguns erros, revelámos fragilidades que a crise sublinhou. Pensávamos poder contar com os amigos. Ao longo dos tempos, aprendemos a ser gratos a quem nos ajuda, a ser-lhes leais quando de nós necessitam. Não somos rancorosos, porque alimentar ressentimentos mesquinhos não está na nossa maneira de ser. E sabe porquê? Porque, na vida internacional, mantemos alguns sólidos valores, os mesmos que nos permitiram sobreviver nove séculos como país, um dos mais antigos do mundo, sabia? 

A vossa atitude, a vossa quebra de solidariedade, porque revela o conceito instrumental que têm da Europa, para utilizar uma frase que você repetia, entre outras platitudes árticas, pelas noites do Ramalhete, “c’est très grave, c'est excessivement grave…”.

Receba um abraço, ainda amigo, orgulhosamente (quase) mediterrânico do

João da Ega

Sobressalto

História verdadeira. Foi-me contada ontem.

Um português residente em França combinou com um taxista, também seu patrício, um "frete" para Portugal. Partiram de noite, só os dois. O homem deitou-se no banco de trás e adormeceu. Tempos depois, despertou e quis chamar a atenção do motorista, dando-lhe um pequeno toque no ombro. O taxista sobressaltou-se, guinou o carro e saiu pela valeta. O acidente não foi muito grave, só lata amolgada.

Da conversa que se seguiu, basta reter isto:

- Ó homem, você assustou-se só por eu lhe tocar no ombro?

- Eu sou taxista só há uma semana. Antes, era motorista de uma agência funerária. Especializei-me em levar cadáveres para Portugal. Ser tocado no ombro, da parte de trás do carro, à meio da noite...

domingo, abril 17, 2011

La Lys (2)

Todos os anos, por este período, Portugal homenageia os mortos que deixou por terras da Flandres, na campanha do Corpo Expedicionário Português, em 1918.

É uma cerimónia de grande dignidade, em que as autoridades francesas e portuguesas, civil e militares, prestam tributo ao sacrifício de quantos perderam a vida na batalha de La Lys, muitos dos quais jazem no cemitério militar português de Richebourg.

No passado sábado, lá estive nessa evocação sempre muito tocante, tendo-me cabido, como é hábito, tomar a palavra diante do monumento aos soldados portugueses, no centro da localidade de La Couture.

Deixo registo do que disse na cerimónia (em francês e em tradução portuguesa).

La Lys (1)

É uma senhora baixa, sorridente, agora com 84 anos, que sempre encontro nas cerimónias comemorativas da batalha da La Lys, em terras da Flandres. 

Felícia Assunção é filha do soldado português José Manuel Assunção, que, em 1918, conheceu a francesa Mélanie Beugny, com quem teve 15 filhos.

Felícia é a mais popular porta-bandeira destas comemorações, tendo sido distinguida pela Liga dos Combatentes, durante uma recente deslocação a Lisboa.

"Bateau Feu"

Valeu bem a pena ter de chegar a Paris já de madrugada para poder ter tido a oportunidade estar presente no encerramento do festival de cultura portuguesa de Dunkerque, "Temps fort Portugal", organizado pelo "Bateau Feu".

A noite de ontem foi do belo espetáculo de bailado contemporâneo "Vale", de Madalena Victorino. Mas a semana portuguesa, com casas cheias, teve vários outros tempos de dança, de cinema e até de fado, com a presença de Kátia Guerreiro.

sexta-feira, abril 15, 2011

"La révolte des blogueurs"

Ontem, o "Le Monde" trazia um artigo curioso (infelizmente não permitindo reprodução), referindo a reclamação de bloguistas, que alimentam certos "sites" mais populares, no sentido de passarem a receber um pagamento regular pelas contribuições escritas que fornecem e com que alimentam esses mesmos suportes informáticos. O tema está a ser muito discutido nos Estados Unidos, onde os bloguistas que se expressam no famoso "Huffington Post" pretendem receber parte dos lucros da recente venda deste "site".

Deixo-os com a tradução do último parágrafo deste longo artigo:

"Atenção! Ter um blogue é um ato de ascetismo. 'É preciso alimentá-lo todos os dias', insiste William Réjault (um bloguista de sucesso). 'É como lavar os dentes antes de ser deitar'. E, um dia, acontece um fenómeno bem conhecido como 'a fadiga do bloguista'. 'Sentimo-nos vazios. Dizemos para nós mesmos: 'Não tenho mais nada a dizer, já não tenho ideias', conta Caroline Franc, que mantém desde 2006 a crónica da sua vida em "Pensées de ronde". "Escrevemos então un post 'Acabou!'. E, depois, recomeça-se, motivado pela comunidade dos leitores. No final de contas, o blogue é uma droga."

Será?

Referências

A partir de hoje, ao fundo da coluna da direita deste blogue, passa a ser dada nota dos confrades que, simpaticamente, recomendam a nossa leitura. A seleção (pelos vistos, incompleta) e a ordem seguida nessa lista são dadas automaticamente pelo sistema técnico utilizado.

Em tempo: por se ter constatado que a listagem era feita com deficiências, ela foi anulada.

Lugares de Eça de Queirós em Paris (6)

Eça de Queirós era um frequentador regular da livraria Galignani, no nº 224, da rua Rivoli. 

Na que se orgulha de ser "the first English bookshop established on the continent", o escritor era visitante frequente e através dela assinava publicações periódicas britânicas.

"Rating"

É uma pena que a "Standard & Poor's", a "Fitch" e a "Moody's" não tenham suficiente flexibilidade para entender que há níveis de "rating" que devem ser medidos à luz dos critérios da UEFA.

quinta-feira, abril 14, 2011

Leitaria

Tem o nome curioso de "Leitaria Estrela de Celavisa" (o que, desde logo, me faz lembrar, imperativamente, a clássica "Leitaria Estrela d'Alva", de Ribeirinho e Vasco Santana, em "O Pátio das Cantigas). Fica na rua Tomás da Anunciação, em Campo de Ourique, em Lisboa.

Há dias, passando à porta, assisti a um sururu, com uma senhora e familares a tentarem retirar do estabelecimento um cavalheiro em elevado grau de etilização. A graça está na frase que a senhora, angustiadamente, repetia: "Nunca mais te vou deixar voltar à leitaria!".

O leite já não é o que era...

"Prove Portugal"

Há dias, pelo telefone, tive uma conversa com a TSF sobre a gastronomia e os vinhos portugueses, a pretexto do prémio "Prove Portugal", que o Turismo de Portugal teve a gentileza de me atribuir.

Essa conversa deu origem a um programa, da responsabilidade de Rita Costa e Herlander Rui, cujos 10 minutos podem ser ouvidos aqui.

Embaixador diminuído?

A pergunta surpreendeu-me: "sente-se um embaixador diminuído?". Tinha a ver com o papel dos diplomatas portugueses pelo mundo, em face da situação de crise que atravessamos. Foi-me colocada pelo jornalista Henrique Garcia, durante uma breve entrevista que dei no noticiário da TVI24, na noite de dia 12.

A minha resposta foi clara: como diplomata português, esperando poder refletir a atitude profissional de muitos dos meus colegas, sinto-me perfeitamente capaz para representar os interesses do país no quadro da presente crise. Naturalmente que tenho consciência de que a imagem que Portugal projeta, nos dias que correm, não é a que seria desejável, mas os profissionais da diplomacia não existem para assumir externamente os interesses do país apenas em momentos de glória. Pelo contrário, é nestes tempos, bem mais difíceis e exigentes, que nos é pedida frieza de espírito e capacidade de explicação sobre os esforços que estamos dispostos a fazer, enquanto país, com vista a reverter a situação que atravessamos. Recordei, aliás, que, nos meus tempos como diplomata, esta é a terceira vez que tenho o FMI "em casa" e, nem por isso, das outras duas, o país "fechou".

Alguns esquecem, mas eu achei por bem lembrá-lo, que há não muitas décadas, alguns daqueles que são hoje ricos países europeus, atravessaram situações de penúria que obrigaram a fortes ajudas internacionais, em virtude de crises muito graves, que envolveram fome, pobreza e grandes carências. Os tempos mudaram, e, se bem que o que nos deve importar seja o presente, acho decisivo que o saibamos sempre relativizar. É que o Portugal de abril de 2011, por muito que a sua imagem possa estar a sofrer, é exatamente o mesmo país que o mundo, há escassos meses, escolheu para membro do Conselho de Segurança da ONU, com uma votação quase histórica. A nossa imagem, de lá para cá, é, basicamente, a mesma. Portugal é um velho país que o mundo se habituou a respeitar, independentemente dos cifrões dos défices. Por isso, façamos o nosso trabalho e não nos deixemos deprimir por alguns artigos de imprensa porque, como dizia François Mitterrand, não há nada mais velho que o jornal de ontem. 

quarta-feira, abril 13, 2011

O "11 de setembro"

O Grémio Literário, em Lisboa, é uma instituição de grandes tradições na vida intelectual e social do país. Nunca tive a tentação de dele ser sócio, mas tenho sempre um grande prazer em passar por lá, como aconteceu na terça-feira, correspondendo a um simpático convite da administração da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, através do Dr. Mário Mesquita.

O pretexto, que me fez dar uma "saltada" de menos de 24 horas a Lisboa, era discutir o modo como o mundo se terá transformado, depois do atentado de 11 de setembro de 2011, acontecimento sobre o qual passa, este ano, um década.

O embaixador americano em Lisboa, Alan Katz, e eu próprio lançámos o debate com duas exposições. Ser americano ou ser europeu, na análise de um acontecimento como este, não é indiferente, como o tom de ambas as exposições o provou.

Confesso que me impressionou que uma das perguntas colocadas pela audiência, maioritariamente composta por estudantes universitários de Coimbra e Lisboa, fosse sobre a "possibilidade" do 11 de setembro não ter passado de uma mera montagem, com os atentados a serem planeados dentro dos Estados Unidos, para justificar muito do que se lhes sucedeu. É chocante verificar como teorias absurdas conseguem criar um mínimo aceitação e sobrevivem no tempo. Quem nelas acredita, e perde tempo a propagá-las, deve preparar-se, nas próximas férias, para ir visitar Elvis Presley na ilha onde alguns dos seus fãs pensam que ainda vive... Mas, nestas coisas ridículas, também temos a nossa quota-parte: quer eu quer o Dr. Macedo e Cunha, presidente da direção do Grémio, lembrámos, em conversa, os nossos cultores das teorias conspirativas, que, em tempos, registei aqui.

Para os mais curiosos, deixo a minha intervenção sobre o 11 de setembro aqui.

Lugares de Eça de Queirós em Paris (5)

Busto de Eça de Queirós, na avenue Charles de Gaulle, em Neuilly-sur-Seine.

Insuspeitos

Há dias, uma jornalista francesa perguntava-nos o nome de personalidades portuguesas que, simultaneamente, tivessem bom conhecimento do nosso setor económico-financeiro e do mundo político, que ela pudesse consultar para um artigo que estava a preparar sobre a situação no nosso país. Disse que não lhe interessavam figuras cujas posições estivessem já polarizadas no âmbito do nosso debate político interno.

Confesso que, depois de muito pensar e de grandes hesitações, lhe indiquei apenas três nomes que, na fogueira da polémica política interna, me pareciam ainda independentes e menos "usados". E, mesmo assim...

A situação que atualmente vivemos também tem como consequência a drástica redução dos "insuspeitos do costume".

terça-feira, abril 12, 2011

Abrilada

Há um segredo bem guardado nos governos portugueses: o mais bonito gabinete (aceito apostas!) de todos os membros do governo, de ministros a secretários de Estado, é aquele que o secretário de Estado dos Assuntos Europeus ocupa no palácio da Cova da Moura. Sei do que falo, porque trabalhei nele por mais de cinco anos!

No 25 de abril, quando por lá andei como adjunto da Junta de Salvação Nacional, era o gabinete do general Spínola e, depois, do general Costa Gomes. Antes disso, era aí que se situava o Secretariado-Geral da Defesa Nacional e foi nesse gabinete que teve lugar uma cena importante da história portuguesa, faz hoje, precisamente, 50 anos.

Não vou fazer aqui a história da chamada "abrilada" de 1961, uma tentativa de pronunciamento militar comandada pelo ministro da Defesa Nacional, general Botelho Moniz. A guerra em Angola havia começado semanas antes, a condução da política colonial era contestada em certos setores do regime, a preservação de Salazar à frente do governo era vista por alguns como um fator paralisante de uma evolução desejável do país, que caminhava para um impasse histórico. 

Provavelmente sob algum impulso americano, um grupo de oficiais generais decidiu colocar ao presidente da República, o contra-almirante Américo Tomás, a reivindicação "das Forças Armadas" de que deveria demitir Salazar. O chefe do Estado ouviu os conspiradores, não lhes deu qualquer resposta nem o sentido do que pensava e terá informado Oliveira Salazar. 

Na tarde do dia 13 de abril de 1961, nesse belo gabinete do palácio da Cova da Moura, os militares sediciosos, a que se juntou o marechal Craveiro Lopes (que, diz-se transportava a sua farda numa mala, para assumir a chefia do Estado), que se preparavam para concretizar o seu projeto, são surpreendidos pelo anúncio, feito pela comunicação social, de que Salazar... os havia demitido dos cargos que ocupavam. Numa imperdoável "naïveté", essas figuras cimeiras da estrutura militar, em lugar de terem previamente assegurado o controlo das unidades operacionais, partiram do princípio de que lhes bastava anunciar a sua determinação para fazerem cair o poder vigente. Enganaram-se redondamente: Salazar ficaria por mais sete anos no poder e o regime duraria ainda mais seis anos, depois dele. 

Sobre este interessante acontecimento histórico, leia-se aqui e consulte-se o livro com que abre este post, a "A Abrilada de 1961", Lisboa, 1978, do coronel Fernando Ferreira Valença, e "Duas Crises: 1961 e 1974", Lisboa, 1977, do coronel Viana de Lemos, figura que faleceu no passado dia 11 de Fevereiro.

Lugares de Eça de Queirós em Paris (4)

A chancelaria do Consulado de Portugal, durante todo o tempo em que Eça de Queirós trabalhou na capital francesa (1888-1900), esteve sempre situada na rue de Berri, entre a avenue des Champs Elysées e o boulevard Haussman, em Paris VIIIème.

Inicialmente, esse escritório esteve instalado no nº 16 da rua, neste edifício onde está hoje o Hotel Califórnia.


Terá sido neste primeiro escritório que Eça de Queirós se defrontou com a intransigência da mulher do Cônsul cessante, a Viscondessa de Faria ("odiosa megera"), que se recusava a abandonar o local, o que provocou "cenas extraordinárias" descritas numa carta a Oliveira Martins, datada de 19 de Setembro de 1888.

Posteriormente, o Consulado mudou-se para o nº 35 da mesma rua (imagem em baixo), onde está atualmente o Hotel Champs-Elysées Plaza, escritório que António Nobre, numa carta a Alberto de Oliveira, datada de 25 de Novembro de 1890, dia de aniversário de Eça, descreve como "muito pobrezinho".
 

segunda-feira, abril 11, 2011

Ingratidão

Agora que vamos entrar em campanha eleitoral, talvez valha a pena recordar uma historieta clássica, em torno de um conhecido político brasileiro, que fazia promoção política numa qualquer localidade.

Num certo momento, aproximou-se dele uma pessoa que lhe disse:

- O senhor não me conhece, mas eu sou filho de um seu grande apoiante - e disse o nome do progenitor.

O político não tinha a mais leve ideia da pessoa em causa mas, numa atitude de simpatia proselitista, dando-se ares, adiantou logo:

- Claro que me lembro bem de seu pai. Faz tempo que o não vejo...

Aí, o cidadão retorquiu:

- O meu pai morreu...

O político não se deu por achado e, com ar de alguma indignação, respondeu:

- Pode ter morrido para si, que revela ser um filho ingrato. Para nós, amigos de seu pai, ele permanece vivo nos nossos corações!

Lugares de Eça de Queirós em Paris (3)

Esta é a imagem (possível) da casa em que Eça de Queirós viveu, desde finais de 1893 (não há uma data exata), e onde morreu, em 16 de agosto de 1900. O escritor havia sido obrigado a sair da casa que ocupava na rue Charles Lafitte (ver aqui) e, depois de muito procurar, encontrou esta moradia numa zona de Neuilly, não muito distante. O prédio foi demolido nos anos 70.

Sobre ela, Eça escreveu a Oliveira Martins, em 1894: "Nós continuamos na remota província de Neuilly. A nova casa agora é metida dentro de um jardim, que é ele mesmo metido dentro dum terreno, que por seu turno está metido dentro de um largo prédio de rapport. Tens decerto visto disposições iguais em caixinhas chinesas". Foi no jardim dessa casa que Eça tirou esta conhecida fotografia, vestido com uma cabaia chinesa.

Em frente ao espaço onde existia a casa (da imagem a preto-e-branco), no que é agora o nº 38 da avenue de Roule, em Neuilly, havia já sido construído, entretanto, este prédio.



Na frontaria do edifício, foi aposta pelo embaixador Marcello Mathias, em 14 de setembro de 1950, uma placa de mármore, oferecida pela Escola de Belas-Artes do Porto.


O queirosiano Luís Santos Ferro tem vindo a lutar, com o meu apoio, pelo restauro da placa, cujos dizeres são atualmente ilegíveis.

Vae victis

As guerras não são um desporto, nem sequer podem ser confundidas com uma disputa política democrática, em que o derrotados saem de cena com alguma naturalidade. De qualquer forma, devo dizer que não fico nunca indiferente às imagens, sempre patéticas, de um guerreiro que chega ao fim da viagem, como as que, há pouco, as televisões mostraram de Laurent Gbagbo.

domingo, abril 10, 2011

La Lys e a Legião Portuguesa

No próximo fim de semana, vamos de Paris a La Lys, perto de Lille, rememorar, como anualmente fazemos, a batalha trágica em que morreram muitos militares portugueses, no termo da primeira Grande Guerra.

A batalha teve lugar em 9 de abril de 1918. Na minha infância, em Vila Real, a data era comemorada com uma romagem ao monumento a Carvalho Araújo, na avenida com o mesmo nome. Nas comemorações, tinha um papel mobilizador a Legião Portuguesa que, nas vésperas, vendia pela cidade miniaturas de capacetes militares, para pôr ao peito, financiando a Liga dos Antigos Combatentes.

As novas gerações desconhecem essa organização, criada num tempo em que o Estado Novo tinha uma vocação protofascista. A Legião era uma espécie de milícia armada, comandada por figuras políticas do regime ou por militares na reserva, que frequentemente era encarregada de levar a cabo algum "dirty work", muitas vezes em íntima ligação com a polícia política.

Nos anos 50, o regime pressionava fortemente os funcionários públicos a fazerem parte da Legião. Muitos aceitavam, as mais das vezes por temor a represálias do que por uma sincera adesão ideológica, outros recusavam, com dignidade e coragem. Após o desencadear da guerra colonial, a Legião desenvolveu, no seu seio, a Defesa Civil do Território, que tentou, sem grande sucesso, mobilizar esses setores oficiais do país para um cenário improvável de guerra no território europeu.

Com o tempo, com a desaparição do entusiasmo dentro do próprio regime pela "Revolução Nacional", a Legião foi-se "apagando" na província, embora subsistindo com algum vigor em Lisboa. A organização destacou-se em ações provocatórias perante a episódica emergência de movimentações democráticas, nos chamados "períodos eleitorais". Foi também responsável por algumas ações de vandalismo, como o ataque à Sociedade Portuguesa de Escritores (em 1965) ou à Comissão Democrática Eleitoral (CDE) de Lisboa (em 1969). A Legião, em especial através da sua FAC (Força Automóvel de Choque), levou ainda a cabo diversos atos de natureza repressiva e persecutória, alguns já no período do marcelismo.

Nessa fase terminal da "situação" (delicioso nome dado popularmente à ditadura, por contraste com a "oposição"), a Legião já se não sentia muito à vontade, tendo ainda como principais dirigentes figuras ligadas a setores de saudosismo salazarista, que contestavam a "primavera marcelista". Recordo, porém, em 1971, já na chamada "abertura" marcelista, o cerco feito por elementos da FAC a uma reunião do associativismo universitário, no Instituto Superior Técnico, que obrigou os integrantes da mesma a terem de saltar muros e a algumas corridas pela madrugada lisboeta.

Nesses últimos anos do regime, a Legião havia sido reforçada por algum "lumpen", por elementos da antiga OPVDCA (uma organização paramilitar criada em Angola, em 1961) e por militares desmobilizados. Ao que julgo saber, a ação da Legião Portuguesa concentrava-se então em ações de segurança de instalações petrolíferas na zona oriental de Lisboa. No 25 de abril, alguns dos revoltosos temiam, por mero desconhecimento, a força da Legião Portuguesa e a sua capacidade de resistência. Afinal, a organização viria a revelar-se um mero "tigre de papel", para usar uma expressão à época muito em voga.

Vale a pena reconhecer, em abono da verdade, que, ao menos no que respeitava às comemorações da batalha de La Lys, a Legião acabou por desempenhar um papel meritório. Era patrioticamente pedagógico, para as crianças das escolas, ver de perto o valoroso soldado Milhões, bem como os seus colegas veteranos da primeira Grande Guerra, orgulhosos com as suas condecorações ao peito, perfilados em frente ao monumento a Carvalho Araújo, ouvindo hinos e honras militares. 

Hoje, já não há velhos militares vivos dessa guerra e nem sei se alguém honra, em Vila Real, os mortos de La Lys. Aqui em França, e desde há muito, os embaixadores de Portugal e as Forças Armadas portuguesas cumprem, com empenhamento, esse ritual de respeito. No meu caso, regresso, com gosto, ao passado. Agora sem a Legião Portuguesa, claro.

Lugares de Eça de Queirós em Paris (2)

Situada no 32 da rue Charles Lafitte, esta moradia de Neuilly-sur-Seine foi habitada por Eça de Queirós da primavera de 1891 até (crê-se) finais de 1893. É a segunda casa, depois da da rue Crevaux (ver aqui), que foi ocupada em Paris por Eça de Queirós, durante a sua estada de cerca de 12 anos na capital francesa, como Cônsul de Portugal.

Segundo Luís Santos Ferro, profundo conhecedor queirosiano, nesta moradia "desenrolou-se um período feliz da família Eça de Queirós, muito fecundo na actividade literária do escritor". A casa foi frequentada por muitos amigos do escritor, como os portugueses Carlos Mayer, Ramalho Ortigão, Oliveira Martins, Batalha Reis, António Nobre, Alberto de Oliveira, António Feijó, Carlos Lobo d'Ávila e os brasileiros como o barão do Rio Branco, Eduardo Prado, Magalhães de Azeredo, Joaquim Nabuco, Domício da Gama e Olavo Bilac.

Os atuais proprietários, Philippe Mayer e a sua mulher, demonstram um grande e desinteressado empenhamento em conservar a memória queirosiana na sua moradia.

Por iniciativa de Luís Santos Ferro, foi inaugurada no exterior do edifício, em 25 de novembro de 1996, assinalando os 150 anos do nascimento do escritor, uma placa oferecida pelo Grémio Literário, descerrada pelo presidente da República, Jorge Sampaio. Uma das personalidades que esteve presente e tomou a palavra no ato foi o então "maire" de Neuilly. Chamava-se Nicolas Sarkozy.


Um compromisso nacional*

1. Portugal está a viver uma das mais sérias crises da sua história recente. Essa crise tem uma dimensão financeira e económica, que se reflete no défice orçamental, no desequilíbrio externo, no elevado grau de endividamento público e privado e nos baixos índices de competitividade e crescimento da economia, com grave impacto no desemprego, em especial nas gerações mais novas; mas tem igualmente uma dimensão política e social grave, que se exprime numa crescente dificuldade no funcionamento do Estado e do sistema de representação política e em preocupantes sinais de enfraquecimento da coesão da sociedade e das suas expectativas. 

2. A crise financeira e económica mundial que se iniciou em 2007,com origem nos Estados Unidos, gerou em 2009 a maior recessão global dos últimos 80 anos e transformou-se, mais tarde, na chamada crise da dívida soberana, que abriu no seio da União Europeia um importante processo de ajustamento político e institucional, afetando de modo especialmente negativo alguns dos Estados membros mais vulneráveis, entre os quais, agora, Portugal.

3. Nesta situação de grande dificuldade, em que persistentes problemas internos foram seriamente agravados por uma conjuntura internacional excecionalmente crítica, os signatários sentem-se no dever de exprimir a sua opinião sobre algumas das condições que consideram indispensáveis para ultrapassar a crise, num momento em que a dificuldade de diálogo entre os dirigentes políticos nacionais e a crescente crispação do debate público, nas vésperas de uma campanha eleitoral, ameaçam minar perigosamente a definição de soluções consistentes para os problemas nacionais. 

4. Essas condições envolvem dois compromissos fundamentais:

a) em primeiro lugar, um compromisso entre o Presidente da República, o Governo e os principais partidos, para garantir a capacidade de execução de um plano de ação imediato, que permita assegurar a credibilidade externa e o regular financiamento da economia, evitando perturbações adicionais numa campanha eleitoral que deve contribuir para uma escolha serena, livre e informada; este compromisso imediato deve permitir que o Governo possa assumir plenamente as suas responsabilidades para assegurar o bem público e assumir inadiáveis compromissos externos em nome do Estado. 

b) em segundo lugar, um compromisso entre os principais partidos, com o apoio do Presidente da República, no sentido de assegurar que o próximo Governo será suportado por uma maioria inequívoca, indispensável na construção do consenso mínimo para responder à crise sem a perturbação e incerteza de um processo de negociação permanente, como tem acontecido no passado recente; numa perspetiva de curto prazo, esse consenso mínimo deverá formar-se sobre o processo de consolidação orçamental e a trajetória de ajustamento para os próximos três anos prevista na última versão do Programa de Estabilidade e Crescimento; e, numa perspetiva de médio/longo prazo, sobre as seguintes grandes questões nacionais, relacionadas com a adaptação estrutural exigida à economia e à sociedade: a governabilidade, o controlo da dívida externa, a criação de emprego, a melhor distribuição da riqueza, as orientações fundamentais do investimento público, a configuração e sustentabilidade do Estado Social e a organização dos sistemas de Justiça, Educação e Saúde. 

5. As próximas eleições gerais exigem um clima de tranquilidade e um nível de informação objetiva sobre a realidade nacional que não estão neste momento asseguradas. A afirmação destes compromissos, a partir de um esforço conjunto dos principais responsáveis políticos, ajudará seguramente a construir uma solução governativa estável, que constitui a primeira premissa para que os Portugueses possam encontrar uma razão de ser nos sacrifícios presentes e encarar com esperança o próximo futuro. 

* Documento subscrito por um conjunto de cidadãos, oriundos de áreas muito diversas da opinião, publicado ontem pelo jornal "Expresso"

República portuguesa em Paris

Achei muito interessante a ideia da Caixa Geral de Depósitos, em ligação com a Câmara Municipal de Espinho, de promover, de dia 9 até ao final do mês de abril, uma exposição intitulada "Portraits de la République", na sua sede em Paris.

Esta mostra destaca, em particular, o papel que algumas mulheres desempenharam nessa aventura política, que, com todo o contraditório das suas diversas facetas, inaugurou um tempo importante na modernidade da nossa história recente.

As comemorações do centenário republicano, que, entre nós, tantos engulhos criaram em alguns espíritos que ainda sonham com os dias de ontem - alguns dos quais, aliás, os confundem com os tempos negros da ditadura -, foram um momento decisivo para revisitar, com seriedade e profundidade, uma época complexa, mas muito rica, do nosso século XX. Não obstante uma conjuntural prevalência editorial em Portugal de uma onda historiográfica conservadora, parte da qual se esforça por branquear o período da decadência monárquica, o debate em torno do centenário republicano conseguiu trazer à tona o percurso dos homens e das mulheres que souberam, com muitos erros mas com um generoso voluntarismo patriótico, construir a nossa República.

sábado, abril 09, 2011

Lugares de Eça de Queirós em Paris (1)

Prédio no nº 5 da rue Crevaux, entre a avenue Foch e a avenue Bugeaud, no XVI ème, onde Eça de Queirós viveu, da primavera de 1889 até à primavera de 1891.

sexta-feira, abril 08, 2011

Uma nota triste

Aqui e ali, e desde há semanas, surgem comentários críticos de responsáveis europeus sobre a situação político-económica portuguesa. Algumas dessas figuras destacam-se pela adjetivação sonora com que se permitem qualificar, quer essa mesma situação, quer opções tomadas no âmbito do nosso sistema democrático.

Devo dizer que, como português, me sinto muito pouco confortável ao deparar com esses discursos, às vezes algo paternalistas e que, em bom europês, sinto vontade de responder-lhes: "mind your business".

A triste verdade, porém, é que não podemos dizer-lhes isso, num tempo em que dependemos da vontade e da solidariedade alheia para resolver os nossos problemas. É nestes momentos que entendemos melhor que a nossa conjuntural fragilidade económico-financeira acarreta alguns efeitos indesejáveis sobre a imagem do país no quadro internacional, que a todos nos vai competir recuperar, nos anos que aí vêm. Por ora, não há almoços grátis.

Radio France Internationale

Há semanas, falámos aqui do serviço português na BBC e das ameaças que se projetam sobre o respetivo futuro.

Agora, acabo de saber que, na Radio France Internationale (RFI),começa a desenhar-se uma evolução similar. 

Esta questão tem duas vertentes autónomas.

A primeira prende-se, naturalmente, com a importância que Portugal, bem como os países de língua portuguesa, atribuem à manutenção de espaços mediáticos falados em Português. É o que poderíamos chamar o nosso interesse "egoísta". No caso francês, esse interesse liga-se à constatação, que me parece óbvia, de que o Português é uma das línguas da "diversidade" francesa.

Uma segunda vertente tem a ver com o interesse de um país como a França, com uma ambição de influência à escala global, de ver a sua "mensagem" chegar, em língua portuguesa, a "mercados" de ouvintes em países com a importância do Brasil ou de Angola - apenas para mencionar dois espaços que, somados, congregam mais de 200 milhões de pessoas e cuja riqueza não é indiferente ao quadro de relacionamento bilateral com a França.

Lembro esta segunda vertente apenas porque ela se cumula à primeira. Julgo, assim, que há uma objetiva coincidência entre os interesses de Portugal (e dos países que falam português) e os interesses da França em garantir a permanência dessas emissões internacionais da Radio France Internacionale. 

Pedro Catarino

Contrariamente ao que acontece em outros países, não há, em Portugal, uma tradição de regular utilização de funcionários diplomáticos credenciados em outras áreas de atividade, onde sejam aproveitados a sua experiência e o sentido de Estado que a profissão, quando bem exercida, neles ajudou a sedimentar. Por essa razão, e contrariamente a algumas invejas que, por vezes por aí deteto, eu só me felicito quando vejo colegas a ser escolhidos para outras funções, públicas ou privadas. Esses convites, para além da sua natureza pessoal, acabam, indiretamente, por ser um elogio à própria função diplomática.

Vem esta nota a propósito da escolha, pelo presidente da República, do embaixador Pedro Catarino como ministro da República para os Açores. Pedro Catarino é um nome que honrou a carreira em todos os lugares onde exerceu funções, de que destaco as tarefas como embaixador em Pequim e Washington e, em particular, de representante permanente na ONU, onde foi o principal responsável pela campanha que conduziu Portugal ao Conselho de Segurança, em 1997.

A sua seleção para um lugar com a delicadeza institucional de ministro da República numa região autónoma constitui o claro reconhecimento das suas qualidades. Nada que nos surpreenda, mas algo com que as Necessidades se devem regozijar.

Deixo aqui um forte abraço ao Pedro, com votos de boa sorte.   

O caso

Um amigo brasileiro contou-me, há dias, uma história conhecida na sua carreira diplomática, envolvendo um embaixador português, ao tempo em que a capital permanecia ainda no Rio de Janeiro. O nosso representante era então o embaixador António de Faria, figura muito conhecida da diplomacia portuguesa, que foi também chefe de missão em Londres e aqui em Paris. 

Num jantar social no Rio, uma noite, veio à baila, numa conversa, que Faria teria uma ligação romântica com uma determinada senhora. Alguém, da Embaixada de Portugal, confirmara a um dos presentes que Faria desaparecia do serviço por longas horas, o que só credibilizava mais o rumor.

O chefe do Protocolo (no Brasil, diz-se Cerimonial) brasileiro afirmou então, para espanto geral:

- Não pode ser verdade, meus amigos. Vou revelar um segredo: Faria tem "um caso" mas comigo.

Os olhares cruzaram-se, de incredulidade, tanto mais que quer Faria quer o diplomata brasileiro tinham um historial de comportamento que tornavam pouco plausível tal cenário, além de que, à época, os "outings" ainda não estavam na moda.

E logo o diplomata explicou:

- É comigo que esse Faria passa a maioria das horas do dia.

E, numa diatribe contra o diplomata português, o brasileiro revelou que António de Faria ia todos os dias vê-lo ao Itamaraty, ficando horas infindas no seu gabinete.

À época, estava em curso de preparação uma importante visita oficial portuguesa ao Brasil. Como sempre acontece nessas ocasiões - e sei bem do que falo -, as Embaixadas são bombardeadas com pedidos crescentemente mais preciosistas da parte de Lisboa, o que, à medida que as datas se aproximam, obriga a contactos cada vez mais intensos com as autoridades locais. Faria, que era conhecido por ter um caráter meticuloso e detalhista para as questões da logística, exasperava assim o seu colega brasileiro, que só ansiava vê-lo porta fora.

O falso "affaire" de Faria passou assim a constar dos anais de memória dos corredores diplomáticos brasileiros. Quanto ao eventual outro, a ser verdadeiro, não sobreviveu na farta tradição oral daquela nossa Embaixada. Posso garantir.

quinta-feira, abril 07, 2011

Balsemão

Um colega diplomata, durante uma conferência que Francisco Pinto Balsemão proferiu ontem no centro cultural Gulbenkian, aqui em Paris, revelou-me que foi o antigo primeiro-ministro português quem, durante a tentativa de golpe militar de  23 de fevereiro de 1981, deu instruções telefónicas ao então embaixador de Portugal em Espanha, João Sá Coutinho, para dar asilo, se necessário fosse, a figuras políticas espanholas que procurassem refúgio nas instalações diplomáticas portuguesas. Essa decisão respondia a uma sondagem feita, junto das nossas autoridades, por democratas ameaçados pela sedição armada da extrema-direita espanhola. O gesto de Balsemão integra os atos de grande dignidade na história da política externa portuguesa.

E foi também de liberdade, no plano político e de informação, que Balsemão ontem nos falou, analisando a importância dos meios informáticos e o papel dos media à escala global, partindo de Karl Popper e tratando casos tão atuais como as revoltas no mundo árabe.

FT

O "Financial Times" é um barómetro da política económica à escala global. Procuro lê-lo diariamente, há bastantes anos, e não me recordo do mesmo país ter sido objeto de três títulos principais de primeira página, durante três dias consecutivos. Aconteceu com Portugal, de anteontem até hoje. Infelizmente. Dias melhores virão.

Mas o "Financial Times" não escapa à política da "barata tonta". Nos últimos meses, deu acolhimento entusiasta a todos quantos achavam que Portugal deveria pedir imediatamente ajuda externa. Hoje, o seu anónimo editorial termina desta forma: "O momento certo para optar por uma ajuda externa teria sido o termo de um debate nacional. A campanha eleitoral oferecia aos políticos portugueses a possibilidade de explicar publicamente o que necessita de ser feito e obter um mandato para tal."

Vá-se lá perceber estes tipos!

Jaime Gama

Ontem, ficou-se a saber que Jaime Gama, presidente da Assembleia da República e figura proeminente na vida política portuguesa, desde antes da revolução de 25 de abril de 1974, não vai recandidatar-se a deputado à Assembleia da República, abandonando a vida pública.

Conheço Jaime Gama há mais de 40 anos, dos tempos de tertúlias no café Grã-fina, um lugar de encontro de universitários, em Entrecampos. Ele era então líder clandestino dos jovens socialistas e viria a ser preso pela polícia política, tal como já acontecera nos Açores, anos antes. Social-democrata assumido, esteve na primeira linha da atividade da oposição democrática e na génese daquilo que viria a ser o Partido Socialista. Foi professor e jornalista profissional no "República", com escritos publicados também em "O Tempo e o Modo". No 25 de abril, estava, como eu, a cumprir serviço militar obrigatório. Em democracia, foi ininterruptamente deputado, desde a Assembleia Constituinte, tendo assumido cargos ministeriais na Administração Interna, Negócios Estrangeiros e Defesa. Por duas vezes à frente da diplomacia portuguesa, Jaime Gama fica na história como um dos políticos que, em Portugal, mais tempo ocuparam esse posto.

Em 1995, fui convidado por Jaime Gama para seu secretário de Estado, funções que exerci por mais de cinco anos. Reconheço nele a figura que mais marcou a política externa portuguesa em democracia, em que muito prestigiou o país e onde contribuiu para afirmar uma doutrina de relações externas que faz hoje parte do nosso património político.

Pessoalmente, Jaime Gama é uma figura muito diferente da imagem que algum país dele fixou. É um conversador excecional, imensamente divertido, com uma cultura enciclopédica e profunda, apreciador requintado das boas coisas da vida. Tem ideias próprias muito arraigadas, que às vezes se chocam com algum convencionalismo, o que o não preocupa minimamente. Tenho muito orgulho em me considerar seu amigo. 

A saída de Jaime Gama - a mais bem preparada figura política da minha geração - da cena pública constitui um imenso empobrecimento para a nossa vida cívica.

quarta-feira, abril 06, 2011

Poema


Se tanto faz que eu suponha
Uma coisa ou não com fé,
Suponho-a se ela é risonha
Se não é, suponho que é.

Fernando Pessoa (1930)

Nada se cria

Neste lado do mundo
há um mistério:
as vozes murmurantes da noite
o sol logo amanhecido
o teu corpo moluscular crescente
o sal do tempo infalível

memória - os cães loucos
os pavores animais - a degola
assim vegetamos (minerais? )
acontecido o tempo - as vísceras
elas estão onde supomos
fervilhantes , quentes , vaporosas

    -adjectivando:
indeferentes      aplicadas
masturbam       caducam
exprimem         indiferentes

Vamos conciliar os opostos
Sorver o ar    a ponta do horizonte
Bastar o instante de um período aéreo
Devastar as sementes  alucinar o dia.

                       Carlos Eurico da Costa (1982)

Astérix

Ao lado da Bíblia de Gutenberg, de incunábulos e de outras obras raríssimas, a Biblioteca Nacional de França acaba de acolher, na sua secção de acesso mais reservado, três valiosos originais de obras de Uderzo e Goscinny, entre os quais o mítico "Astérix le Gaulois", que abriu a série magnífica de álbuns.

Histórias com um final feliz: uma certa aldeia gaulesa, completamente cercada do exterior, garantia a sua sobrevivência graças a uma poção mágica...

Sombras

Nos dias 11 e 12 de abril, no Téâtre de la Ville, aqui em Paris, será apresentado "Sombras", um espetáculo de "téâtre musical/fado", uma criação de Ricardo Pais, originária do Teatro Nacional de S. João, do Porto.

Neste ano em que tentamos que o fado possa ser consagrado como "património imaterial da humanidade", pela UNESCO, saúda-se o empenhamento de Emmanuel Démarcy-Mota na divulgação da canção portuguesa ao público parisiense.

terça-feira, abril 05, 2011

Confiança

Estávamos nos anos 80, em Luanda.

Eu e um colega da embaixada tivemos de nos deslocar a um departamento oficial angolano, protegido por uma barreira de segurança. À entrada, com ar displicente, estava sentado um soldado, com a kalashnikov ao lado. O meu colega saudou-o da forma que era rotineira no tratamento local: "Boa tarde, camarada!".

O homem não respondeu, o que levou o meu amigo a lançar, para o "animar", num tom demasiado provocatório para o meu gosto, o moto do MPLA: "A luta continua, a vitória é certa!".

Aí, sem sorrir, a sentinela lá disse: "É... pode ser".

"Maigret voit rouge"

Que pensaria o inspetor Maigret* se, saído do 36 do quai des Orfèvres, a caminho da sua ritual "blanquette de veau" na Brasserie Dauphine, deparasse com o Palais de Justice envolto pela publicidade da Dior, como ontem o encontrei?

Talvez puxasse uma baforada no seu cachimbo e, para Janvier ou Torrence, soltasse o seu tradicional: "Je ne sais rien du tout!".

* Nem mesmo as adaptações para o cinema (com Jean Gabin) me garantem que muitos leitores deste blogue conheçam a figura criada pelo escritor Georges Simenon, que deu origem a dezenas de romances e novelas que animaram a minha geração dos amantes da literatura policial.

segunda-feira, abril 04, 2011

Mário Viegas

Alguém lembrou que acabam de passar exatamente 15 anos desde a morte de Mário Viegas. Viegas foi um grande ator e um excecional "diseur", a quem se fica a dever um trabalho muito importante na divulgação da poesia portuguesa. Vi-o pela última vez no curiosíssimo "Europa não, Portugal nunca", onde construía um diálogo criativo com a assistência e punha em causa algumas das coisas adquiridas do nosso quotidiano político.

Conheci pessoalmente Mário Viegas em 1973, durante o serviço militar. Recordo-me de ele ser já alferes, ao tempo em que eu era aspirante. Um dia desse ano, num juramento de bandeira na parada da EPAM, meses antes do 25 de abril, coube-me fazer o discurso às tropas, na minha qualidade de oficial de Ação Psicológica da unidade militar. O meu texto tinha sido construído de forma equívoca, com diversas ambiguidades, que tentavam compatibilizar a solenidade da ocasião com algumas mensagens que eu tinha por subtis (lido hoje, confesso que acho o discurso gongórico e algo pretensioso). No final, a figura militar que presidia à sessão levantou-se na tribuna e lançou, com voz forte: "Nosso aspirante, aproxime-se!". Lembro-me que fiquei gelado e lá avancei para o palanque. Afinal, era para me felicitar pela "elevação" do texto... Minutos depois, Mário Viegas comentou-me: "Quando o brigadeiro te chamou, achei que era para te dar voz de prisão". Eu também.

Aqui deixo o som de Mário Viegas no genial "Manifesto anti-Dantas", de Almada Negreiros.

Europa política

"Pequenalmocei" hoje, em trabalho, com o braço-direito de Catherine Ashton, o embaixador Pierre Vimont. Ele é o secretário-geral executivo do Serviço Europeu de Ação Externa.

Perguntei-lhe as impressões sobre o seu regresso a Bruxelas. Em 2002, Vimont saiu de representante permanente (embaixador) de França junto da União Europeia para chefe de gabinete de ministros dos Negócios Estrangeiros e, mais tarde, para embaixador em Washington.

- A União Europeia de hoje é um mundo em tudo diferente do que existia ao tempo em que ambos por lá andávamos. Tudo mudou imenso, depois da Europa "a quinze", em que todos nos conhecíamos uns aos outros. Só ias identificar alguns contínuos...

Canalhices


Um blogue publicou, há dias, o facsimile de um telegrama do Ministério dos Negócios Estrangeiros. O blogue está no seu pleníssimo direito de tentar ter acesso a correspondência interna do MNE. Alguém lha facultou.

Há semanas, um jornalista referiu-se, a meio de uma conversa ao telefone comigo, ao teor de um telegrama recebido no MNE, assinado por um nosso embaixador. Perante o meu espanto e a pergunta de como obtivera o texto, replicou: "Foi alguém do MNE que mo deu...", disse, já um tanto arrependido de me ter falado no assunto. Também aqui, o jornalista fez apenas o seu trabalho.

A questão é conosco. Quando integramos o serviço público comprometemo-nos, "solenemente, pela nossa honra, que cumpriremos com lealdade as funções que nos são confiadas". Dessa lealdade faz parte o dever de confidencialidade, nomeadamente face a dados a que tenhamos tido acesso por virtude das funções que ocupamos.

Na diplomacia, os telegramas são a essência da profissão. Através deles, frequentemente, dizemos a nossa opinião sobre coisas muito sensíveis e transmitimos ao poder político informações de grande delicadeza, tendo como finalidade a defesa dos interesses do país na ordem externa. Se os diplomatas começarem a pressentir que, um destes dias, as suas avaliações ou pareceres recolhidos através de terceiros, que legitimamente não querem ser identificados, vão acabar por surgir nos blogues ou na imprensa, naturalmente que passarão a "fechar-se em copas" e a limitar drasticamente a utilização dos meios oficiais de correspondência.

Dir-se-á que ambos os telegramas a que aqui faço referência são inócuos - um é de natureza administrativa e o outro pouco longe disso. Porém, isso é completamente irrelevante. Trata-se de um telegrama e os diplomatas aprendem, no "bê-á-bá" profissional, que um telegrama é um documento "sagrado", que se lê se a isso temos necessidade profissional (na regra do "need to know") e que, depois, o "esquecemos".

Quem se sente tentado a passar para o exterior um telegrama administrativo é sempre capaz de ir bastante mais longe. Quem transmitiu os telegramas ao blogue e ao jornalista quebrou um dever de Estado. E quem infringe um compromisso que, perante o seu país, jurou "pela sua honra" só tem um qualificativo: é um canalha.

domingo, abril 03, 2011

Porto

Vitória suada, mas merecida, na Luz, onde o Porto mais gosta de ganhar. Uma magnífica época.

( Em tempo: diálogo de alguém, hoje, com um portista: 
- Foi muito triste ver o Benfica desligar a eletricidade no estádio...
- Não foi o Benfica! Fomos nós que apagámos a Luz... )

Revejo-me no canto superior esquerdo da imagem.

Gilberto Gil

O Chatelet esteve ontem a abarrotar para ouvir Gilberto Gil, acompanhado pelo filho e por esse génio do violoncelo que é Jacques Morelenbaum. Há mais de 20 anos (desde Londres) que não ouvia Gil cantar ao vivo e, devo confessar, fiquei rendido ao seu profissionalismo, num espetáculo onde, da música brasileira tradicional, ele saltou frequentemente para o rock e para o jazz, criando uma sonoridade apelativa para faixas muito alargadas de auditório.

No tempo em que vivi no Brasil, fui testemunha da imensa popularidade de Gilberto Gil. Um dia, o assessor internacional de Lula, Marco Aurélio Garcia, comentou-me que "Gil é o Lula de Lula" - querendo com isso significar que o cantor aparecia aos olhos do presidente como uma figura carismática, quase mítica, no cenário brasileiro. Por esse tempo, e para escândalo de muitos, Gil, embora mantendo-se ministro da cultura, continuou a fazer concertos pelo mundo, a ganhar dinheiro. "Não existe pecado do lado de baixo do Equador"...

sábado, abril 02, 2011

Comemorações

Há cerca de um ano, escrevi por aqui isto:

"Em Portugal, o 25 de abril é oficialmente celebrado com uma sessão de discursos políticos e partidários na Assembleia da República. Todos os anos, para além da aturada observação jornalística de quem leva ou não um cravo ao peito, a atenção pública volta-se para o tom e exegese dessas intervenções, que invariavelmente utilizam a comemoração abrilista para tratar a realidade da conjuntura política do presente. Assim, aquilo que poderia ser um espaço de proclamação de elegias à liberdade conquistada nessa data acaba por se transformar numa arena de severo combate político, com as diversas leituras de "abril" a servirem de arma de arremesso, mais ou menos subliminares. Julgo que ninguém, com sinceridade, acreditará que essa maratona declaratória contribui minimamente para louvar as virtualidades da Revolução e para cativar novas gerações para o culto desse momento fundacional da nossa democracia."

A decisão de, este ano, não organizar a sessão solene na Assembleia da República, devido a razões de natureza conjuntural, é uma excelente notícia.

Offshore

Há dias, a propósito de uma opinião que expressei, um amigo, vindo de Portugal, comentava: "dizes isso porque estás 'offshore' "...

Gostei da metáfora, nesta fase em que todos somos beatos do petróleo que não temos.

Costa do Marfim

O sentido dos acontecimentos na Costa do Marfim parece apontar, finalmente, para que Allassane Ouattara venha a assumir a presidência, depois de um ato eleitoral em que a comunidade internacional reconheceu a sua vitória sobre Laurent Gbagbo. São boas notícias, para aquele país, para a África e para as Nações Unidas.

Por uma vez, o Conselho de Segurança da ONU foi unânime na fixação de sanções a Gbagbo, reforçando e impondo a legitimidade do sufrágio e, muito em particular, evitando a "salomónica" partilha do poder, como havia acontecido no Quénia e no Zimbabué. Ou, o que seria ainda pior, a divisão do país, como aconteceu no Sudão - neste caso sob o inconsciente júbilo internacional, que, uma vez mais, deitou para o caixote do lixo da História a sábia regra de ouro da Carta da OUA (a qual, pelos vistos, é desprezada pela União Africana).

Esta crise deixou evidente que se vive em África um tempo de ostensiva tentativa de implantação de novos poderes regionais, que, sem surpresa, parece colocarem em segundo plano a preservação das regras democráticas, para garantirem a fixação da sua influência nacional, mesmo em zonas geopolíticas que, à partida, lhes seriam alheias. Isso aconteceu na Costa do Marfim, convém dizê-lo, devido à conjuntural auto-limitação de um vizinho poderoso (a Nigéria). E é importante que fique também dito: a teimosia de Gbagbo, com as milhares de vítimas e o custo económico e social que acarretou para o seu país, ficou muito a dever-se à esperança que colocava na sua proteção por parte de alguns poderosos amigos africanos, os quais, felizmente, perderam a parada.

O caso da Costa do Marfim suscita também, e uma vez mais, a eterna questão do que é, ou pode ser, a democracia em África. Com exceções tão escassas que já as tomamos como alheias ao próprio continente - como é o exemplo de Cabo Verde -, a grande maioria dos modelos políticos africanos funciona na lógica do "ou tudo ou nada": quem está no poder acapara o aparelho de Estado e os recursos do país, quem perde as eleições tem, as mais das vezes, como destino o exílio, a prisão ou ainda pior. Num modelo intermédio, alguns regimes "cooptam", para melhor neutralizar, personalidades da oposição, através da partilha da apropriação patrimonialista em que assentam o seu poder.

Uma conhecida escola de pensamento "do Norte", que se quer "compreensiva" com a necessidade de "evolução" desses modelos "do Sul", tidos como eternamente protodemocráticos pelas leis do destino, defende que se deve "respeitar" o gradualismo da evolução institucional desses Estados, que é necessário "compreender" algumas vantagens estratégicas, em termos de "estabilidade", que justifica a perpetuação dos seus dirigentes no poder, que há que ter "compreensão" pelas limitações que neles sofrem alguns direitos de cidadania - de acesso aos media, das mulheres, das confissões religiosas, etc. Às vezes sem se dar conta, quem assim pensa acaba por revelar um paternalismo racista e eurocêntrico, na assunção implícita de que a democracia é só para alguns eleitos, não querendo entender que só se aprende a nadar na água. Coincidem nesta escola "compreensiva", curiosamente, algumas correntes da esquerda "multiculturalista" e "porto-alegrista" e, claro!, os usufrutuários liberais das vendas de armas, das negociatas e da corrupção. E mais não digo, para não estragar o fim-de-semana. 

sexta-feira, abril 01, 2011

A cadeira

Os tempos hoje serão outros, mas sou do tempo em que o exercício discricionário da hierarquia permitia a certas chefias assumirem atitudes de forte autoritarismo. A certeza de que a opinião dos dirigentes dos serviços era uma incontornável chave para promoções ou colocações colocava os respetivos subordinados numa dependência quase humilhante. 

A memória da carreira diplomática portuguesa, aliás como de qualquer outra, está cheia de historietas de autoritários chefes. Famoso, entre nós, era um embaixador que sempre obrigava o respetivo secretário, numa capital do Médio Oriente (em que, curiosamente, já não temos embaixada), a ficar de pé, ao lado da sua mesa de trabalho, enquanto despachava a papelada do dia, às vezes por mais de uma hora. Há quem diga que o secretário deverá a essa penitência algum distúrbio psicológico que veio a revelar.

Estas patéticas expressões de autoritarismo não se ficavam pelos postos no estrangeiro, também se praticavam em Lisboa. Num verão do final dos anos 70, durante as férias de um subdiretor-geral (na altura, a designação oficial no MNE era "adjunto do diretor geral") da área económica, o lugar foi interinamente preenchido por um diplomata mais velho que, por uma qualquer razão, transitava pelas Necessidades, desde há alguns meses, sem ocupação fixa.

Aquele nosso chefe interino compensava a sua manifesta irrelevância profissional, que o mantinha oficialmente sem destino, com uma soberba de atitude de onde destilava uma importância que só ele se atribuía. Além do mais, a sua postura contrastava vivamente com o colega que estava a substituir - um homem cordial, muito apreciado pelos colaboradores.

Logo no segundo dia da presença desse episódico chefe, fui ao seu gabinete, para lhe entregar um documento. Mal levantou os olhos à minha chegada, apenas grunhindo um relutante "bom-dia" à saudação que lhe dirigi. Notei, então, que tinha desaparecido a cadeira que sempre estivera em frente à secretária. Decididamente, o homem era dos que queria ter as pessoas de pé, durante o despacho.

Passei a "boa nova" a quem comigo assegurava a permanência na Direção-geral dos Negócios Económicos, nesse verão, que já se anunciava curioso. Ao contá-la a um colega um pouco mais antigo do que eu, figura alta e com voz tonitruante, notei-lhe um brilho irónico no olhar, acompanhado de um "logo veremos!".

Na tarde desse dia, o nosso grupo de jovens diplomatas das "Económicas", que regressava do tradicional almoço nas "Espanholas" (um restaurante vizinho, onde a densidade de pessoal diplomático costuma ser superior aos níveis recomendados pela OMS...), foi surpreendido por um desafio desse nosso colega: "Vocês não querem ver a minha ida a despacho?" Porquê? "Logo verão!", disse, críptico. 

Um tanto artificialmente, colocámo-nos à conversa no "hall", para o qual dava o gabinete da chefia. Um minuto depois, o nosso colega emerge da sua sala de trabalho com uma pasta de papelada na mão, pisca-nos o olho e, decidido, entra no gabinete do nóvel chefe. Nem trinta segundos eram passados e já a porta se abria de novo, com o jovem diplomata a sair, sem papéis na mão, e a dizer alto, lá para o fundo do gabinete: "É um minuto, já volto!". E vimo-lo avançar decidido para a sua sala de trabalho.

Perplexos, interrogámo-nos sobre a cena. Ter-se-ia esquecido de alguma coisa? Algum papel? Mas, afinal, o que é que esta ida a despacho tinha de tão especial?

Tudo ficou mais claro, quando, instantes depois, o vemos regressar, a sorrir, com uma cadeira na mão, que introduziu no gabinete onde iria a despacho.

Não ouvimos, embora possamos presumir, a reação do chefe à entrada da cadeira. Mas ficou-nos para sempre no ouvido a voz muito forte do nosso colega, ainda a porta não estava totalmente fechada, a dizer: "Então não vê? É uma cadeira, para eu me sentar!".

Desde essa tarde, e pelo tempo que durou o interinato da chefia, passámos a poder contar com uma cadeira no gabinete desse esquecido chefe interino, onde sempre nos sentávamos para o despacho. Às vezes, para grandes males...

Petróleo

Para melhor se entenderem algumas decisões tomadas pelo mundo. A fonte é insuspeita.