sexta-feira, maio 31, 2024

Tempos serenos


Como é sabido, nas regiões autónomas, existe a figura do Representante da República, antes designada Ministro da República. Veio-me há pouco à memória um episódio já com quase 30 anos - e é essa memória que me permite aproveitar as horas que tenho até à partida do avião das Lajes para Lisboa para o descrever aqui -, envolvendo um desses então Ministros da República.

Nas hostes do governo socialista recém-empossado, nessas semanas finais de 1995, vivia-se um ambiente de imenso otimismo. Embora não dispondo de uma maioria absoluta no parlamento, António Guterres chefiava um executivo que revelava uma grande unidade e projetava uma imagem de eficácia e de poder vir a apresentar soluções para a maioria dos problemas. O país, que tinha deixado uma década de cavaquismo, do qual se cansara, parecia conquistado pela dinâmica da nova equipa e a própria imprensa deu a esta, por muito tempo, o benefício da dúvida. 

Nesses primeiros meses, por razões de natureza técnica e política, que se prendiam com as implicações europeias de várias decisões e diplomas, e embora fosse apenas secretário de Estado, eu era chamado com frequência para estar presente nas reuniões do Conselho de Ministros. Elas começaram por ter lugar numa sala do primeiro-andar da residência oficial de S. Bento, antes de se transferirem para o edifício da Presidência do Conselho de Ministros, na rua Gomes Teixeira, aos Prazeres, com recurso alternativo a uma outra sala existente na cave de S. Bento, criada ao tempo de Cavaco Silva. 

O ambiente que se vivia no Conselho era de grande camaradagem, embora António Guterres, de forma discreta, tivesse cuidado em pôr um travão a formas de tratamento demasiado informais entre os membros do governo, à mesa do conselho. Recordo-me de um ministro, numa dessas primeiras reuniões, ter feito uma observação que começava por "Ó António, eu acho que tu devias...", com o chefe do governo, sorridente mas pedagógico, a retorquir-lhe: "Eu concordo com o senhor ministro quando diz que...". Sem um mínimo de formalismo, o ambiente de qualquer governo torna-se muito difícil de gerir, tanto mais que os episódicos momentos tensos criam a necessidade de alguma implícita disciplina, a que a familiaridade não ajuda. Guterres, que dispunha de uma autoridade natural que ninguém contestava, reforçada por um extraordinário domínio dos dossiês, mesmo os mais técnicos, rapidamente foi capaz de estabelecer um incontestado padrão de trabalho. 

Num determinado dia, desses primeiros tempos, o conselho tinha uma agenda muito carregada e teve que se prolongar pela noite dentro. À hora de jantar, foi feita uma pausa para sanduíches, cervejas e café, que se terá prolongado por uns bons 20 minutos. Durante esse tempo, embora cada um continuasse no seu lugar, a conversa soltou-se. 

Recordo-me das graças de António Vitorino, então "número dois" do governo, como ministro da Presidência e da Defesa, a que se somava o humor tonitruante de Fernando Gomes da Silva, os ditos humorísticos de Jorge Coelho, a fina ironia de José Mariano Gago, bem como as fabulosas intervenções, com sotaque inconfundível, do secretário de Estado da Justiça, José Matos Fernandes. Todos enchiam a sala de boa disposição, nesses intervalos de um trabalho intenso, gerando um ambiente alegre e barulhento. 

Ora acontece que, nesses primeiros tempos do governo socialista, havia dois convidados à mesa, remanescentes do governo de Cavaco Silva. Tratava-se dos dois Ministros da República para os Açores e para a Madeira, respetivamente o professor Mário Pinto e o vice-almirante Rodrigues Consolado. Todas as semanas, e até que uma decisão em contrário foi tomada, essas duas figuras iam sendo convidadas a estar nos Conselhos de Ministros das quintas-feiras, prolongando uma prática que vinha dos governos de Cavaco Silva, aliás o proponente dos seus nomes. Eram duas figuras muito respeitáveis, discretíssimas e com grande sentido de serviço público. Mas, obviamente, naquele ambiente de camaradagem e cumplicidade política, num outro tempo de governo, a sua presença destoava um pouco. 

Nesse intervalo do Conselho de Ministros, com as graças, as anedotas e alguns dichotes a atravessarem a mesa e a preencherem o ambiente na sala, essas duas personagens pareciam um pouco perdidas. Eu, que substituía Jaime Gama, estava sentado ao lado de Rodrigues Consolado, o qual, por sua vez, ocupava a cadeira à esquerda de Guterres. Para desanuviar o ambiente, ia falando com o vice-almirante, atenuando o seu isolamento, tanto mais que Guterres tendia a falar mais com Mário Pinto, que estava à sua direita e que, de há muito, conhecia bem. 

Rodrigues Consolado estava em funções nos Açores desde 1991. Durante quatro anos, os Conselhos de Ministro a que assistia eram presididos por Cavaco Silva. "Senhor Almirante. Posso fazer-lhe uma pergunta, um tanto indiscreta: como era o ambiente dos Conselhos no tempo do professor Cavaco Silva? Havia pausas e um ambiente solto deste género?", perguntei, consciente de que ele estaria um tanto surpreendido por aquele ambiente de "turma", em que muitos de nós nos tratávamos por tu. 

O nosso militar, sem entrar no detalhe, pela lealdade que entendia devida àquilo a que assistira por dever de ofício, retorquiu-me, em voz baixa, com um ligeiro sorriso: "Não, senhor Secretário de Estado, não me recordo de alguma vez se ter gerado um ambiente destes. Longe disso! Naquele tempo, era tudo muito mais sereno." E concluiu, com uma frase que pretendeu fazer soar como uma constatação de facto, da qual não consegui depreender uma crítica, mas também não o seu contrário: "Cada primeiro-ministro tem o seu estilo, não é?". E mais não disse.

4 comentários:

Unknown disse...

Tenho a convicção de que a excessiva informalidade se revela prejudicial para o bom funcionamento dos trabalhos de um Conselho de Ministros. A autoridade dilui-se e os mais extrovertidos e, por vezes menos competentes, impõem-se aos mais discretos e reservados. Ouvi, aliás, dito por comentadores que uma das causas da erosão do último governo PS teve também a ver com as relações entre os membros do governo, que se "tuteavam" todos uns aos outros. Num contexto desses, como é que o PM exerce depois a sua autoridade?

João Cabral disse...

Foram os últimos tempos de um PS frequentável.

Flor disse...

Tonitruante = ATROADOR :)

Anónimo disse...

Entretanto caminhávamos alegremente para o fundo, até à fuga em 16 de Dezembro de2001

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