Hoje, aqui em Angra do Heroísmo, tive uma sensação similar à que, por vezes, me ocorre em Vila Real. Levantei-me sem pressas, fiz três coisas que tinha para fazer durante a manhã e, de repente, dei-me conta de que ainda me faltava imenso tempo, antes da hora do almoço. Agora, com essa refeição acabada, sei que tenho uma boa pausa até ao primeiro dos dois compromissos que hoje ainda tenho, se bem que um deles seja algo distante, na Praia da Vitória.
Imagino que, para quem aqui vive em Angra ou para quem habita em Vila Real, isto seja uma conversa completamente sem sentido. Mas posso dizer que quem vive em Lisboa, com o estado atual do trânsito, percebe muito bem o meu sentimento. Aqui, nesta terra, parece haver tempo para tudo. Até o ritmo das pessoas parece adaptado a este doce deixa-andar. E, contudo, esteja eu onde estiver, Lisboa faz-me falta. Que coisa!
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o ritmo das pessoas parece adaptado a este doce deixa-andar
Quando visitei os Açores pela primeira vez, lá para 1986, disseram-me lá que os açorianos só têm duas velocidades: devagar, e parado.
Mais tarde, ao visitar o Corvo, disseram-me que os habitantes de lá usam a expressão "trabalhar a metade", para se referirem à metade do dia em que trabalham, uma vez que a maioria dos corvinos só trabalha durante metade do dia (ou de manhã, ou de tarde), passando a outra metade a descansar. Por exemplo: de manhã vão à pesca, à tarde ficam em casa sem fazer nada.
(É por isso que os corvinos adoram a sua terra e ninguém quer de lá sair.)
De regresso da ida à Baixa mais cedo do que esperava, a ida à FNAC foi fraca e o único restaurante em que aceito comer por lá tinha fila de espera (rara ali) passava das duas, filas de espera não muito obrigado quando tenho alternativa.
Acabei por apanhar o autocarro e vir almoçar por aqui (ninguém falava da Ucrânia).
Pois é como diz “Aqui, nesta terra, parece haver tempo para tudo. Até o ritmo das pessoas parece adaptado a este doce deixa-andar”.
Ora é exactamente por isso que nos piramos regularmente lá para outros lados, onde temos uma vida muito mais ocupada que em Lisboa, havendo tempo para tudo acabamos a fazer coisas que aqui nem nos atrevemos a programar, como fazer todos os dias 30, 40 ou até 60, 70 kms para ir almoçar como merecemos e por um preço que merecemos, demorando as viagens de ida e volta muito menos tempo que os 10 kms de ida e volta a qualquer sítio dentro de Lisboa (mesmo que de UBER, portanto sem ter que arrumar o carro).
Ora acontece que, também nós, nascidos e criados em Lisboa (eu há 3 gerações daqui) também “esteja eu onde estiver, Lisboa faz-me falta. Que coisa!”, ainda que a nós seja mais a soberba vista da cidade e do rio que temos a sorte de usufruir do que o bulício sem sentido das ruas, tudo cheio de pressa em chegar nem os próprios porventura sabem aonde.
Por isso tentamos aproveitar o melhor dos dois mundos, para isso se tem um casarão recuperado e um terreno arranjado numa localização onde nenhum de nós sequer tinha ido até á altura de os comprar (e com outra magnífica vista).
Claro que os planos sendo o que são, não tem sido aproveitado como devia, os planos de futuro de há 30 e até 20 anos saem quase sempre furados, não se pode perguntar à vida se nos vai deixar vivê-los num mínimo de paz e sossego (já nem se pede mais que um mínimo).
Mas para lá conto ir um dia destes, nos bairros antigos não se vive entre 1 e 15 de Junho desde que se possa fugir daqui, ficam cheios de pessoas que nos dizem que isto tem um ambiente bem catita para eles quando só cá vêm uma noite por ano dar cabo do ambiente bem catita que nós tínhamos.
Três semanas lá pelo menos e outras três cá pelo mais até Outubro é o plano (o que vai acabar por ser é outra conversa que não depende só da vontade de cada um, mas disso há larga experiencia).
O tempo é o nosso bem mais precioso.
E isso torna-se cada vez mais verdade com a idade, como é evidente.
Um dia da semana passada estávamos na Champalimaud ao meio-dia, às duas saímos e passámos por Campo de Ourique (que é logo ali) por causa de uns melhoramentos na decoração caseira, fomos depois à Avenida de Roma tratar de outro assunto, saindo de Campo de Ourique em direcção à Calouste Gulbenkian é sempre a direito até ao nosso destino.
Tudo isto a horas que se poderiam considerar “mortas” em termos de trânsito, tudo isto desligando o carro enquanto tratávamos da nossa vida.
Quando estacionei o carro na garagem de recolha onde o guardo fui, como sempre, ver o acumulado de tempo que tinha estado a trabalhar (3 horas e 8 minutos).
Dava-me e sobrava-me para chegar ao Porto nunca passando dos 130 kms/hora.
A 10 minutos do centro da cidade, dizem os anúncios imobiliários, só não dizem que isso é às 4 da manhã (se tudo correr bem).
Um dia destes voltei a descer das Portas do Sol para o Martim Moniz.
A Rua dos Cavaleiros com os seus estreitíssimos passeios cheios de turistas que não se desviam só incomoda quem quer andar, é sempre agradável “forçar” a passagem e constatar que ao turista que por aí anda não passa pela cabeça que o cidadão a que acaba de chamar nomes lhe responde na língua dele e na mesma moeda, tal é a cara com que ficam.
Como isso me tira algum prazer do passeio, enfio por dentro das ruelas da Mouraria, caminho do Largo da Severa e da Rua do Capelão para desembocar no Martim Moniz.
Como tenho dito tenho bastante cuidado no vestir, primeiro porque gosto, depois porque as represálias conjugais seriam terríveis (se calhar inverti a ordem).
Portanto não entro em pormenores do meu “outfit” mas nunca é discreto para aquelas paragens (às vezes nem noutras, cada vez as pessoas estão mais descuidadas a arranjar-se, não é uma questão de dinheiro pois pode-se andar muito decente com pouco, é mesmo abandalhamento geral).
Vou então por ali, cruzando-me muito pontualmente com os novos habitantes locais, alguns sentados à porta das casas, dizendo eu bom dia a toda a gente sem excepção, que por delicadeza ou por surpresa responde sempre.
Naqueles pequeníssimos largos já estão montadas mesas, cadeiras e balões de arraial, mas são os de sempre, começam a ter um ar “gasto”, vale que quem vem às sardinhas e à sangria não liga.
Já ao fundo da Rua do Capelão um rapaz dos seus 30 anos com a mãe talvez com o dobro da idade, é difícil avaliar idades em gente que se vê ser sofrida (só soube depois que era a mãe, claro), gente muito modesta mesmo.
Quando eu estava aí a uns 10 metros grita o rapaz “Ó mãe, vem ali o homem que te convém”.
A espontaneidade do grito foi tal que parei logo, de gente afectada armada em fina estou eu até aos cabelos (que já não são muitos).
Diz-me ele “O senhor desculpe mas a minha mãe anda à procura de alguém bem-apessoado e vejo que é o ideal para ela, não pode é chamar-se Carlos porque ela tem alergia a eles”.
Lá lhes comuniquei que não estava disponível apesar de não me chamar Carlos, desejámos um resto de bom dia uns aos outros e eu entrei no Martim Moniz mais bem disposto.
(Cont. porque não cabia tudo)
(Continuação com o que não coube)
Contava eu esta história a um vizinho que encontrei à vinda e diz-me ele “Mas tu andas por ali assim vestido, olha que isso é perigoso”.
A conversa estragou-se logo quando eu lhe disse “Mas não és tu que andas sempre a falar da inclusão e agora chateias-me porque eu a pratico?”.
Lembro-me sempre que há quase 50 anos eu vivia no que na altura era um subúrbio e agora é um escândalo imobiliário, como andava de autocarro que me deixava onde deixava, ou fazia mais de um quilómetro a pé para entrar por um sítio movimentado, ou atravessava um acampamento cigano e só fazia 200 metros.
Claro que atravessava o acampamento, onde ia cumprimentando e sendo cumprimentado, as sociedades de minorias já estabelecidas não permitem que haja complicações à porta dos sítios onde vivem com as suas famílias, como é óbvio.
O mesmo se passa na Mouraria e noutros sítios, não podemos é esperar que às 3 da manhã não apareçam por lá outros que não os dali a arranjar chatices.
Mas eu estou a falar de gente estabelecida e, para isso, não chegam boas intenções, mas não são os que berram muito que fazem mais.
Há que regulamentar tudo isto, não pode nem deve ser à balda, o que não me parece difícil.
O que me parece difícil é que se saiba fazer regulamentos suficientemente claros e práticos para que aqueles que deles querem usufruir e aqueles que os devem aplicar os percebam.
Continuamos com o "Para quê simplificar se podemos complicar?" e os burocratas da UE não ajudam grande coisa.
Um dia destes falo da situação junto à Igreja dos Anjos, onde pessoas “vivem” entaladas entre os serviços do Centro Nacional de Apoio à Integração de Migrantes na Rua Álvaro Coutinho e o Centro de Apoio Social dos Anjos outro lado da Av. Almirante Reis, conhecido como “Sopa dos Pobres” há 110 anos.
Pessoas que não se importam de falar com um tipo bem-apessoado.
Pessoas que só querem poder falar com alguém.
Eduardo Mendoza é um escritor catalão, bem conhecido desde “A cidade dos prodígios”, de quem devo ter lido quase tudo, a forma irónica como se aplica a expôr os ridículos da vida contemporânea diverte-me.
Há tempos perguntaram-lhe o que o levava a começar um romance, respondeu que era "para descobrir como acaba”.
É mais ou menos o mesmo que acontece com os meus textos longos.
Senhor embaixador, se calhar nunca lhe perguntaram, mas pergunto eu: nunca se se sente nervoso ou ansioso antes dessas intervenções para um público? E não há encontros desses que são verdadeiramente chatos e aborrecidos?
João Cabral. Isso do "nervoso" já passou há muito tempo. Só fico apreensivo quando falo de assuntos que não domino muito bem. Sendo temas em que estou "por dentro", é bastante fácil. Quanto à "chatice", só aceito coisas que me apetece fazer. Pode sempre dizer-se que não - e já o tenho feito.
Gostei muito da sua aguarela da Mouraria, Manuel Campos.
Viveram lá uns tios-avós e por inerência o meu tio materno mais velho (mais 19 anos e meio que a minha mãe) também lá viveu, assim a minha mãe em pequenina ia lá passar uns dias com frequência e as memórias são muito engraçadas. O ambiente do fado, as alcunhas, as varinas pela manhã, os comércios...
O meu tio, aliás, é o típico bairrista (apesar de há muito se ter mudado para Famões, Odivelas).
Mais tarde, o Bar Anos 60 mais tarde também era local de frequência, nos tempos de Lisboa da minha mãe.
E eu gostei muito de saber que para si era uma aguarela, é uma ideia bonita.
Note que o ambiente não está muito mudado, pois aquelas ruas não atraem a cobiça nem dos estrangeiros nem dos hoteleiros.
Sei que há ali uns AL (conheço até o dono de um), mas nada de grave no sentido de ter alterado seja o que fôr.
Está rejuvenescido, isso sim, pessoas também muito modestas, provavelmente família de quem lá viveu, ali morreu, ficaram filhos e agora netos.
Mas não se vê muita gente nas ruelas ainda que se ouçam muitas televisões quando se passa, pelo tipo de programas se imagina a idade dos que os vêem.
O ambiente é limpo como é habitual nestas circunstâncias, os moradores tratam de que o seja, assim como tratam de dissuadir outros maus hábitos, como ontem contei.
Claro que temos as evitáveis inevitáveis (foi mesmo isso que quis dizer) pichagens.
As grandes modificações por assim dizer “sociais” estão na Calçada de Santo André e na Rua dos Cavaleiros, onde já não se encontra praticamente nenhum negócio que não esteja em mãos de pessoas de origem asiática, o que também implica que no fundo o negócio já não seja bem o mesmo que foi porque a clientela tem outros gostos e interesses.
Restam dois cafés que ainda o não estão, quando vou por ali bebo sempre um café num deles, há muitos anos que conheço o proprietário, homem extremamente correcto e fluente em línguas (isso é outra história, a vida dele), que acaba por ser o ponto de encontro de toda aquela gente que ali tem os seus pequenos negócios e/ou por ali trabalha.
O ambiente geral daquelas duas ruas que levam do Largo Rodrigues de Freitas ao Martim Moniz é do mais calmo que há (ou deveria dizer “lento”, dada a origem oriental da maioria?).
O Bar Anos 60 fechou mas não lhe sei dizer quando.
Nota fundamental- Depois de escrever isto tudo (que reitero), leio que houve hoje uns desacatos entre duas mulheres na Rua do Benformoso, portanto por ali.
Mas isso são outros fados, talvez “dor e ciúme”, não é invulgar ao passar por ali sermos apanhados numa de “agarrem-me senão eu mato-a, esta … quer roubar o meu homem” e outras que tais.
Não se perdeu o lado castiço daquele bairro.
Manuel Campos,
Já vi que a Mouraria merece uma visita guiada em modo revivalista. Quando estudava passei por ali uma ou outra vez, já lá vão mais de 14 anos.
Os meus tios-avós viveram inicialmente na Calçada de Santo André e depois mudaram-se para o Largo do Terreirinho.
Pelo que vi o Anos 60 fechou algures em 2016.
Francisco de Sousa Rodrigues
Merece decerto se acompanhado por alguém que lhe conheça os cantos e recantos e os consiga associar às histórias do passado, já não haverá muita gente para esse efeito.
Eu gosto de a atravessar por aquelas ruelas, são uns 10 minutos de caminho, é um mundo que já não está aí, não volta e que nem sequer me pareça que valha a pena preservar para além da memória, se possível escrita, dos que lá viveram e se sentiram “fregueses” dali no sentido mais lato de paroquianos.
Vejo que a mudança dos seus tios-avós não foi para muito longe, dado o espírito bairrista ainda existente à época é de imaginar que se juntou a vizinhança toda para ajudar a levar a mobília aquele bocado de caminho.
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