Acabo de ler que morreu, há poucas horas, Alain Krivine. Tinha 80 anos.
"Sabes quem é aquele tipo, ali na mesa do canto? É o Alain Krivine". A mesa onde Krivine estava sentado era a mesma da histórica fotografia de Sartre e de Simone do Beauvoir, no Café de Flore, em Paris. O amigo que me fazia a revelação, nessa noite de há cerca de 10 anos, era o António Silva, com quem a estúpida lei da morte me não deixa agora comentar este episódio, que me trazia à memória outros tempos.
As tardes no Parlamento Europeu, em Estrasburgo, respondendo aos deputados, durante a presidência portuguesa da União Europeia de 2000, tinham alguma graça.
O secretariado-geral do Conselho preparava-nos umas respostas em "langue de bois", para as perguntas enviadas por escrito pelos deputados, com antecedência. A "emoção" estava, assim, nas réplicas a que os parlamentares perguntadores têm direito, feitas de improviso, muito mais "livres" e, às vezes, fugindo claramente ao tema da pergunta.
Devo confessar que me dava um certo gozo exercitar a minha criatividade discursiva nas respostas a essa segunda parte de cada intervenção. Quase tanto como olhar, de viés, para as caras ansiosas dos funcionários do Conselho, que tão ciosamente haviam preparado as respostas "by the book" e que viviam esses momentos de liberdade do representante da presidência com clara expetativa e burocrática angústia.
Entre os deputados eleitos para o PE houve e há figuras gradas da política passada de vários países, muitos ministros e até primeiros ministros e presidentes da República - como Mário Soares. Mas aqueles que me "saíram em rifa", nesse semestre de 2000, foram quase sempre obscuros parlamentares, com nomes algumas vezes muito estranhos, de sonoridades gregas, eslavas ou nórdicas. É que esse tempo é utilizado, quase sempre, para afirmação da devoção desses deputados a causas muito específicas, o que lhes permite uma saliência mediática de que os seus colegas mais conhecidos já não necessitam.
Numa dessas longas tardes de Estrasburgo, ouço o presidente do parlamento anunciar: "Dou a palavra ao deputado Alain Krivine". Acordei do marasmo com aquela menção e, de imediato, procurei, no imenso areópago quase vazio, colocar um retrato no nome acabado de anunciar. O nome de Alain Krivine dizia-me alguma coisa. Figura histórica do trotskismo francês, havia sido candidato à presidência da República, não me passando a mim pela cabeça que fosse então deputado europeu.
Três décadas antes, no início da década de 70, numa visita a Paris, eu fora levado por amigos a assistir a um comício da "Ligue Comuniste Revolutionnaire", que teve lugar na "Mutualité", perto da Sorbonne. (O Joaquim Pais de Brito e o António Belém Lima, estavam então comigo e lembrar-se-ão. Tal como o faria o José Carlos Serras Gago, se, entretanto, não tivesse partido).
A LCR era um grupo trotskista com certa expressão na esquerda francesa e, embora as teorias de Trotsky pouco me dissessem, achei graça assistir a um comício dessa extrema-esquerda - num tempo em que, em Portugal, apenas a União Nacional e a sua sucessora Ação Nacional Popular reuniam em público sem medo de vigilância policial.
A pergunta que Krivine fez à presidência portuguesa foi, como era de esperar, violenta e agressiva, sobre uma temática que já não recordo. Devo confessar que tenho ideia de que a minha resposta foi mais "soft", nostalgicamente atenuada pela memória de um passado no qual, embora de forma menos radical, eu também acreditava em que os "amanhãs" poderiam vir a cantar. Depois, infelizmente, foi o que se viu...
Naquele final de tarde, no Flore, perguntei ao Francis, que vagueava patronalmente entre as mesas, o que é que Alain Krivine estava a beber. Era um Chablis. Pedi outro para mim. Afinal, como dizia Voltaire, "les beaux esprits se rencontrent".
Hoje, na noite chuvosa de Vila Real, não tenho um Chablis à mão. Sirvo-me de um Bushmills! Salut, Alain Krivine!
1 comentário:
À votre santé Monsieur l'Ambassadeur!
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