segunda-feira, março 07, 2022

A tia Helena e a RTP


A RTP faz parte da vida de muitos portugueses. Da minha, por exemplo. Quando nasceu, há 65 anos, na Feira Popular, então situada no que é hoje o topo norte do jardim da Gulbenkian, em frente ao antigo Quartel-General de Lisboa, fez dali uma emissão, com um alcance mínimo e imagina-se quase que sem auditório à distância. A locutora de serviço era uma loiraça de belo porte, chamada Maria Armanda Falcão. O país conheceu-a como Vera Lagoa.

Lá por Vila Real, soubemos (o plural é majestático, porque eu andava na “primária”) pelos jornais. Até conseguir passar o Marão, a Radiotelevisão Portuguesa (hoje chama-se Rádio e Televisão de Portugal) deve ter esperado uns bons anos. Anos que as famílias aproveitavam para conversar, ouvir rádio e dar voltas, depois do jantar, na Avenida Carvalho Araújo ou no Jardim da Carreira, com “som ambiente”.

Os aparelhos de receção da televisão eram caros. As casas que os vendiam (na cidade, só o Dionísio e o Patinhas) colocavam um recetor na montra, desde a abertura da emissão, creio que pelas sete, até ao encerramento, que não excedia as 11 da noite. Muitos “populares” (nome com que a comunicação social quase sempre designa “ajuntamentos” de gente em localidades fora de Lisboa, para este último caso último utilizando-se o termo “pessoas”) plantavam-se, por horas, em frente àqueles écrans mudos. A imagem era péssima, vinha do “emissor da Lousã”, granulada, a preto-e-branco (para os mais distraídos, relembro que a cor demoraria 23 anos a chegar cá). Alguns adquiriam um plástico que colocavam em frente ao écran e que, pelos vistos, “dava cor”. A ansiada “antena do Marão” fez-se esperar. Quando chegou, foi um deslumbre! Vila Real era um mar de antenas, que era preciso “orientar”. Depois vieram os “estabilizadores de corrente” e os “potenciadores”, lembram- se?

A aquisição de “televisores” fez-se, com naturalidade, pela ordem social e de posses do burgo. Na sala de festas Clube de Vila Real e em alguns cafés havia um aparelho, neste último caso colocado num ponto alto, o mais das vezes sobre as portas de entrada, com o pessoal (só homens, claro) de pescoço esgalgado, usufruindo do serviço, pelo preço do café e do copo de água.

Depois, foi o que todos sabemos: o futebol, o festival da canção, e a Eurovisão, e um clássico na segunda metade de dezembro, que era o “Natal dos hospitais”, onde o nacional-cançonetismo desfilava para os doentes, sob o paternal apoio da “folha da Moagem”, o “Diário de Notícias”. Havia então, na RTP, muita música, muito fado, bastante teatro (é verdade!), declamação de poemas e programas de humor inocente. E, claro, era-nos mostrado o mundo a que tínhamos direito, do Portugal d’aquém e d’além-mar, feito em notícias secas da ANI, alambicadas em telejornais lidos com pompa e voz teatral por caras vindas da rádio, que logo passaram a ser vedetas nacionais, e cuja vida familiar, risonha e sem escândalos, a “Plateia” nos ia revelando. 

Anos depois, veio a guerra, os votos televisivos de “Natal cheio de prosperidades” de quem, de arma na mão e roído de saudades, era obrigado a tentar atrasar o fim do império, abençoado pelas prendas da “Cilinha” Supico Pinto e restantes damas do Movimento Nacional Feminino. Tudo aquilo, ano após ano, quase sempre muito igual ao que tinha sido ontem, porque os portugueses, como dizia o homem de Santa Comba, gostavam de “viver habitualmente”. Só o Zip-Zip, já bem mais tarde, arejou um pouco aquele écran.

Para passarem temporadas a casa dos meus avós, vinham das Pedras Salgadas, por esses anos 60, umas tias-avós, uma viúva e outras solteiras. Dentre elas, empoada e sempre risonha, a tia Helena tinha pela televisão, que por algum tempo não tinha em sua casa, um fascínio particular. À hora que pressentia que a emissão ia iniciar-se, agitava-se a pedir que se ligasse o aparelho. E, o jantar passado, por ali ficava, especada, até ao fim, fosse a programação o que quer que fosse. O meu pai crismou uma frase que ficou na família: “A tia Helena aguenta desde o hino à Meditacão”. O hino da RTP, emitido na abertura da emissão, era então quase tão conhecido como “A Portuguesa”, embora não tivesse letra, como acontece com o hino nacional espanhol. E lembram-se o que era a Meditação? Eram umas frases de filosofia de trazer pelas casas que uma voz cava lia antes do encerramento noturno das emissão, para ajudar os portugueses a dormirem. Lá por casa, alguém dizia: “há ali mão de padre”. 

E os portugueses assim foram dormir, por muitos anos, até um dia, no final de abril de 1974. E eu tive a imensa sorte de por lá poder andar, por essa altura, pela RTP, vestido de verde, a ver a liberdade a passar por ali. E posso imaginar as olheiras da tia Helena, nesses dias prolongados pela noite, a ver as intermináveis emissões desses “homens sem sono”, com a “Mensagem” da época a ter como objetivo despertar as pessoas, em lugar de as ajudar a continuar a dormir. 

Não, meu caro Manuel Duran Clemente, nunca perguntei à minha tia Helena como é que ela se terá sentido quando, lá para o fim do ano seguinte, viu sair do écran a tua cabeluda imagem para passarem, “a partir dos estúdios do Porto”, o Danny Kaye que se seguiu. E agora, já é tarde. A única coisa que sei, porque ela me disse e não mentia, é que nunca votou em partidos que “tivessem ferramenta na bandeira”. Eu, por acaso, salvo um derriço pela obra autárquica do Severiano Falcão, também não.

5 comentários:

Maria Isabel disse...

É sempre com muito gosto que leio estas cronicas. Obrigada. Boa semana
Maria Isabel

Flor disse...

"Em janeiro de 1961 o paquete Santa Maria foi tomado de assalto por um comando liderado pelo capitão Henrique Galvão. A operação tinha por objetivo iniciar um golpe de estado capaz de derrubar o regime de Salazar."
Os meus pais ainda não tinham TV e fomos ver esta notícia a casa de uns tios. Eu era pequena e lembro-me que tive medo.k

Santiago Almasque disse...

Caríssimo Embaixador e distinto Leão.
A antiga Feira Popular esteve instalada efectivamente onde diz, em frente ao Quartel-General do GML onde este seu admirador e consócio prestou serviço Militar nos idos 60 e muitos.
No entanto, e se a memória não me falha, as primeiras emissões da RTP já foram feitas a partir da Feira Popular seguinte ou seja a de Entrecampos.
Se estou errado, perdoe-me.
Cordialmente
Santiago Almasqué

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Santiago Almasque. Do site da RTP Play com as imagens de Vera Lagoa: “ Compacto de imagens de arquivo, alusivas à primeira emissão experimental da RTP, na Feira Popular do Parque da Palhavã em Lisboa, no dia 4 de setembro de 1956. Imagens dos preparativos no local da Feira, dos bastidores da emissão, dos ajuntamentos de populares para assistir à transmissão televisiva, e de alguns momentos com os protagonistas da noite. Compacto de imagens sem som, reexibidas em 1957 no primeiro aniversário desta emissão experimental, numa altura em que a RTP já se encontrava a emitir regularmente desde o dia 7 de março desse ano.”

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Santiago Almasque. Do site da RTP Play com as imagens de Vera Lagoa: “ Compacto de imagens de arquivo, alusivas à primeira emissão experimental da RTP, na Feira Popular do Parque da Palhavã em Lisboa, no dia 4 de setembro de 1956. Imagens dos preparativos no local da Feira, dos bastidores da emissão, dos ajuntamentos de populares para assistir à transmissão televisiva, e de alguns momentos com os protagonistas da noite. Compacto de imagens sem som, reexibidas em 1957 no primeiro aniversário desta emissão experimental, numa altura em que a RTP já se encontrava a emitir regularmente desde o dia 7 de março desse ano.”

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