sábado, março 12, 2022

Os filhos ilegítimos de Trump

Há cerca de dois anos, escrevi no “Jornal Económico” o artigo que a seguir reproduzo. Hoje, por razões de oportunidade, apetece-me repeti-lo. A grande diferença, face ao momento em que o publiquei, é que Trump já não está na Casa Branca, sendo hoje uma nostálgica saudade para as pessoas que retrato no texto:

”Não sei como se chamam, nem sei como chamar-lhes. É uma raça política estranha, que vive num registo cheio de contradições, se calhar em sintonia com este estranho e novo tempo – o qual, no discurso ácido de que agora se alimentam, chega a parecer velho. Às vezes, parecem de uma esquerda radical, outras vezes chegam a tresandar a uma direita velha e relha.

O fim do mito soviético, enterrado nas pedras do muro derrubado em Berlim, tornou muitos deles órfãos de um passado político do qual, curiosamente, nem sempre haviam sido seguidores incondicionais. Mas a desaparição ou falência de um certo tipo de partidos, em países onde a esperança já teve melhores dias, acabou por conduzi-los à “terra de ninguém” onde hoje vivem.

É difícil catalogá-los numa mesma prateleira, sendo que o único denominador comum entre todos parece ser a sua sedução por modelos autoritários, a recusa da globalização e a identificação caricatural que fazem das democracias liberais com o neo-liberalismo mais maléfico. Têm dois alvos de eleição: a Europa integrada, tida como símbolo do regresso da Alemanha ao lugar de comando, e um mundo ocidental sob a matriz da NATO.

O principal farol que os ilumina é a figura de Vladimir Putin, visto como o chefe da resistência a um mundo que diabolizam. Alguns alimentam uma discreta sedução por figuras como Orbán. Se lhes perguntarem por Lukashenko, dirão que é para manter no lugar, quase apenas e só porque o líder bielorrusso desagrada àqueles que eles detestam. O Donbass é um seu lugar de culto e o teste do algodão é a resposta à pergunta sobre se a Crimeia é ou não legitimamente russa.

Erdogan é simpático a muitos. Maduro a outros tantos. Apoiam quem mantiver Cuba “do outro lado”. Olham com bonomia divertida a Coreia do Norte, pela irritação que provoca em quem eles não gostam. No Médio Oriente, protegem Assad e o Irão. Mas não é isso contraditório com a simpatia por Ancara? A lógica não é o seu forte e mandam às urtigas a coerência.

A irónica novidade é que Donald Trump é o grande culpado da sua reconciliação episódica com os Estados Unidos – depois de uma vida que alimentaram contra o satã yankee. Por isso, detestam a América de Biden, os democratas, tidos por cúmplices de uma Europa feita à medida dos interesses que desprezam. Se pudessem, davam cabo de Schengen, recuperavam o sentido nacional, último bastião do novo “no passarán”. Por essa razão, bateram palmas ao Brexit, vendo o afastamento do Reino Unido como uma oportunidade para diluir uma União Europeia que já não têm como projeto redentor.

É bem revelador do estado a que chegaram as coisas ouvir e ler esse discurso de sobrolho cerrado, adjetivando duramente os adversários, numa onda de desespero que, há que reconhecer, deixou de ter um porto político seguro de abrigo. Alguns andam pelas graves trincheiras das redes sociais, outros palestram declarações chocantes.

Uma coisa me parece evidente. Esses órfãos políticos são hoje os filhos ilegítimos de Trump. Pelo menos, até ver.”

3 comentários:

Aguia disse...

"A irónica novidade é que Donald Trump é o grande culpado da sua reconciliação episódica com os Estados Unidos – depois de uma vida que alimentaram contra o satã yankee."
Não me parece que a "reconciliação" tenha sido genuína: se as notícias que nos são servidas pela nossa comunicação social não fossem filtradas em relação aos graves problemas dos Estados Unidos, mostrando apenas as vertentes boas, modernas e politicamente corretas, na ótica do Partido Democrata, provavelmente se constataria que a base de apoio de Trump tem muito mais em comum com a base de apoio dos partidos comunistas do que se imagina.
Os apoiantes de Trump que invadiram o Capitólio suscitam simpatias nos comunistas? Não sentirão os comunistas que esses militantes da extrema direita se revoltam contra o "deep state" norte americano que eles também desprezam? Pode perguntar-se: se os comunistas são genuinamente contra a guerra, será que não se terão sentido mais identificados com Trump, que durante o seu mandato não iniciou nenhuma ação militar dos EUA?

José disse...

Trump!

Lembram-se do que diziam quando o Trump exigia mais empenhamento da Europa na NATO?

Lembram-se do que diziam quando o Trump exigia que os países europeus respeitassem o compromisso de 2% d PIB em despesas de defesa?

As pessoas que andavam a dizer que ele queria destruir a NATO, agora, deviam ser confrontadas com tudo aquilo que disseram e escreveram.

Mas a memória...

Jaime Santos disse...

O ódio aos EUA é tal que apoiam todos aqueles que enfraqueçam a posição desse País no Mundo, sejam eles inimigos externos dos americanos, sejam isolacionistas como Trump.

Esquecem-se que o 'mundo multipolar' que defendem será um mundo em que os polos serão constituídos por democracias falhadas como os próprios EUA, estados autoritários como a Rússia (a caminho de se tornar uma ditadura tout court) ou mesmo ditaduras puras e duras como a China.

Ou talvez não se esqueçam de todo, porque nunca foram democratas, defendem uma coisa chamada 'democracia avançada', que se parece muito com o Estado cubano ou o venezuelano, por exemplo...

A nossa sorte é que eleitoralmente contam cada vez menos...

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